CÍRCULO VICIOSO
Ivone Boechat
Um dia, milhões de bebês
choraram na liberdade uterina do
milagre da vida: nasceram. Não
vestiram seus corpos, não lhes
calçaram sapatos nem lhes deram
o conforto do seio materno,
antes da posse do sonho
infantil, foram rejeitados, ao
rigor do abandono.
Um dia, mãozinhas
trêmulas, inseguras, sem afeto,
bateram na porta do vizinho,
procurando abrigo. Não havia
ninguém ali para oferecer afeto
nem portas havia na pobreza do
lado. O menino escorregou na
direção da rua.
Um dia, a criança
anêmica foi eleita à
marginalidade da escura noite e
disputava papelões e pães no
lixo do depósito público. Aos
tapas, cresceu como grão perdido
no vão das pedras, sem a mínima
possibilidade de sobreviver: sem
teto, sem luz, sem chão.
Um dia, o
adolescente esperto teve
alucinações de vida e o desejo
de conferir a sociedade:
candidatou-se à luta amarga do
subemprego. Alvejado pela falta
de habilitação, foi condenado
como vagabundo, recebendo
etiqueta oficial de mendigo.
Um dia, o adulto
desiludido, amargurado, sem
emprego, sem referencial, saiu à
procura do amor. No escuro, mas
cheio de esperanças, foi
colecionando portas fechadas
pelo caminho. Sem Deus, sem
nome, sem avalista, sem
discurso, acreditou no "slogan"
das campanhas sociais.
Um dia, o menino mal nascido,
mal amado, mal educado, não
soube cuidar do filho que nem
chegou a ver. Não ouviu seu
choro. Imaginou apenas que, após
nove meses de duríssima
gestação, alguém brotara de um
rápido encontro, irresponsável,
assustado e vazio que sempre
ouviu dizer que se chamava amor.