Sempre que se lembrava dela,  a via como saindo de um denso nevoeiro; feições desfiguradas, em um constante  pranto. Sobressaiam-se, em suas memórias, apenas suas longas unhas vermelhas.
           Lembrava-se, vagamente, da expressão alheia em seus olhos e de que eram ligeiramente esverdeados. Às vezes, chegava a pensar que  também pudessem ser amarelos ou castanhos.
           Os cabelos variavam entre o castanho-claro e um louro esmaecido. A pele, com certeza, era branca, decorrente da ausência do  sol por longos anos, parecia-lhe  que ela estivesse saindo de uma penosa enfermidade.
           O sentimento que nutria por ela oscilava entre o carinho e o pesar, a afeição e o desprezo. Não era amor nem ódio.
            Talvez, fosse essa neutralidade que o incomodasse, essa sensação de que tudo permaneceria igual no decorrer dos próximos séculos, a despeito dos buracos na camada de ozônio e dos desmatamentos das florestas tropicais. Ele nem sequer sabia se ela tinha tomado conhecimento dos últimos acontecimentos, se lera o jornal do dia, se ouvira as notícias veiculadas através da televisão. Parecia-lhe que ela se deixava existir no meio do nevoeiro com a preocupação única de polir as unhas, impecavelmente vermelhas.
            Há anos que a conhecia, que lhe dava o bom dia todas as manhãs,  que lhe pagava as despesas, porém não a via como uma pessoa inteira. Sua voz ressoava cansada e repetitiva. Seus atos mecanizados, seus sentimentos embotados, sua expressão amorfa. De tudo que conhecia dela, somente as unhas vermelhas tinham personalidade própria, como que desafiassem as forças do universo para continuarem existindo, ameaçadoras, fortes e brilhantes. Parecia-lhe também que unhas vermelhas poderiam desafiar os perigos, infiltrando-se na carne do inimigo, arrancando-lhe a alma, assim como faziam com os tomates recém- saídos da água fervente. Muitas vezes julgava que continuava com ela  somente para ter o prazer de vê-la lustrar as unhas, como se fosse o único tesouro que lhe restasse...
           Mas não fora sempre assim.
          Houvera um período em que as unhas apenas faziam parte da pessoa que gargalhava sonoramente, que vibrava com as pequenas emoções que a vida oferece, que prendia os cabelos no alto da cabeça, para depois soltá-los  num único golpe até que caíssem sobre os ombros e fossem chacoalhados, vigorosamente, para brilharem contra o sol.
          Os olhos já tinham sido verdes e soltavam faíscas de indignação ou lágrimas ternas. Não havia sulcos profundos em sua face e nem os cantos dos lábios eram voltados para baixo, numa demonstração de constante mau humor. Os ombros também não eram encurvados, como se carregassem a humanidade nas costas e a pele tinha o tom saudável de quem estava de bem com a vida.
           Ele  não saberia precisar quando e por  que as coisas começaram a se modificar. Se foram os olhos que perderam o brilho ou se foi a pele que perdeu o viço. Talvez tivesse sido o primeiro corte nos cabelos longos ou o par de óculos de lentes grossas escondendo a cor e a primeira ruga ao redor dos olhos. Os primeiros fios de cabelos brancos ou quem sabe,  a última lágrima derramada em solidariedade, o último riso sem motivo aparente, o derradeiro afago no cachorro morto. Quem sabe, ainda, tudo tivesse decorrido da geada que matou os brotos da roseira, do vendaval que arrancou as roupas do varal, da enchente que inundou a sala e destruiu os móveis...
           O fato é que ela nunca mais gargalhou ou se indignou. Nunca mais prendeu os cabelos, nunca mais chorou ...
           Há algum tempo ele tinha plena convicção que algo aconteceria. Mas, não tinha a menor noção  de que quando acontecesse iria causar tamanha surpresa, a ponto de deixá-lo, por horas, sem ação ao vê-la imóvel no caixão, com a expressão tranqüila e com as unhas cortadas rente, sem esmalte, ligeiramente arroxeadas. A mulher que jazia inerte não era ela, a dona das unhas vermelhas. Pensou ter enlouquecido ou que tudo não passasse de uma farsa. Tantos anos convivendo com as unhas vermelhas e presenciar que elas simplesmente tinham desaparecidos num toque de mágica ou de acetona... Que fim levaram as tesouras hereges que ousaram aparar o que dela restara de personalidade ?
          Sabia que iria deixar os presentes atônitos. Possivelmente alguém tentaria lhe impedir de concretizar seu derradeiro ato de amor, mas ele lhe devia isso, pelo que tomara dela durante toda a vida. E cuidadosamente, ignorando as reprimendas dos demais, colou nos dedos da morta, uma a uma, longas e vermelhas unhas postiças, que reluziam ao reflexo das velas. Agora sim:  "Requiescat in pace".

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