F E L I C I D A DE
Luiz Eduardo Caminha
Esta me foi narrada
pelo querido amigo Padre Francisco de Salles Bianchini. Pode ser que muitos,
como eu, já conheçam, mas faço questão de registrá-la, haja vista a profunda
lição de vida que nos oferece.
Era um dia de semana qualquer, um grupo de estudantes de Filosofia se
embrenhou pelo interior de Ouro Preto, Minas Gerais, a fim de realizar uma
pesquisa de campo. O mote era saber o que o povo comum entendia consistir a
felicidade.
A manhã primaveril trazia o frescor da brisa e o céu límpido fazia antever
um dia de calor, porém propício para atividades externas. Eram sempre
recebidas com entusiasmo pelos estudantes as pesquisas de campo. Afinal era
um meio de burlar o ritmo monótono da clausura e das salas de aulas.
Pergunta para um, questiona outro e as mais diferentes respostas iam
enriquecendo as anotações do grupo. Comprar uma casinha, adquirir uma roça,
ver um filho se formar doutor, comprar uma boa parelha de jumentos para arar
a terra, viajar, conhecer a cidade grande (Belo Horizonte), deixar aquele
lugar pobre onde viviam e por aí foram-se sucedendo um rosário de concepções
sobre a felicidade.
A quase totalidade das respostas levava a crer que a gente simples, humilde,
pensava que felicidade estava muito ligada à posse de um bem material, que
significasse, por menor que fosse, uma melhoria na qualidade de suas vidas.
Parecia incrível que pessoas do interior, não habituadas ao espírito
consumista das cidades tivessem uma noção tão materialista de um sentimento
tão profundo. É preciso registrar que, naquela época, ainda não havia
televisão e o mundo chegava aos ouvidos apenas de poucos privilegiados que
dispunham daqueles velhos rádios elétricos, de válvulas etc... que levavam
alguns minutos para “esquentar” e funcionar até que a voz d’algum locutor
aparecesse entremeada por chiados da estática.
Será que, em meio àquela bondosa gente, não haveria ninguém, que num mínimo
resquício de luz, exprimisse felicidade como algo vindo de dentro, do
coração, do sentimento humano, dos valores de solidariedade e fidelidade?
Estas interrogações perpassavam a mente dos estudantes, cheios de ideais, um
tanto frustrados com o resultado, até então, daquela pesquisa.
Um deles chegou a levantar a hipótese de que não estavam entendendo, gente
de pouca cultura, o sentido da pergunta. Não seria o caso de mudar a
abordagem? Perguntavam nervosos ao professor da disciplina.
~ Uma pesquisa, para retratar a verdade dos fatos, não pode mudar de curso
em virtude de nossa pré-concepção, de nosso desejo de resposta, sob pena de
vê-la manipulada. E, na pior das hipóteses, jogaríamos por terra todo o
trabalho desenvolvido até aqui, portanto, vamos continuar com a mesma
abordagem - falou a voz do experiente mestre.
Lá pelas 10 horas da manhã, os estudantes encontraram três homens,
trabalhadores braçais da Prefeitura, destes que ficam a tapar os buracos da
estrada poeirenta, ajeitar o meio fio, carpir o mato que volta e meia
cismava em ocupar o leito da via entre outras tarefas rotineiras.
Estavam dando um tempo à sua faina, sentados à beira da estrada. Dois deles
bebiam um café preto servido na própria tampa da velha garrafa térmica,
encarquilhada, companheira inseparável de suas jornadas diárias. O outro
homem, de tez morena, imitava os dois companheiros com uma caneca de
alumínio. Mastigavam um pão, com queijinho branco e mortadela, que trouxeram
de casa para o lanche que precedia, em duas horas, a bóia do meio-dia. A
pequena toalha, quadriculada de azul e branco, servia de mesa postada na
relva beira estrada, ao lado de uma cerca de arame farpado.
~ Bom dia, senhores!
~ Bons dias, seu padre!
Era o tempo em que os seminaristas ainda usavam, cotidianamente, sua batina.
Explicado o porquê de suas andanças por aquelas bandas, um dos seminaristas
fez a pergunta objeto da pesquisa.
Aquele de cor negra, olhar profundo, ajeitou-se, ficou de cócoras, pegou um
graveto e começou a riscar a terra, como se fosse escrever a resposta no
chão barrento. Ato seguinte, sorveu um gole da bebida quente, engoliu o
pedaço de pão que mastigava e num gesto, espontâneo e natural, esfregou a
boca na manga da camisa, limpando o excesso de café e queijinho branco, que
lhe marcavam os lábios. Tirou o chapéu de palha, que protegia seu rosto do
sol, àquela altura escaldante e foi dizendo, naquele português brejeiro,
cheio de sotaques e erros gramaticais, típico de quem não teve a
oportunidade de cursar um ano sequer de escola:
~ Óia, seu padre! Eu num sei muito dessas coisa”, uai! Mas acho qui essa tar
felicidade, qui o sinhô qué sabê, é uma coisa mais ou menos ansim. O sinhô
tá vendo aquela casinha de madeira, lá encima da istrada? Aquela amarelinha
de porta e janela marronzada, uai?
Os estudantes viraram suas cabeças, os olhos na direção que o dedo em riste
do caboclo apontava.A estrada sofria, duzentos metros a frente, um aclive
suave, onde se desenhavam quatro a cinco pequenos casebres, todos
delimitados por cercas de bambus. De três delas via-se a chaminé a expelir,
céu acima, uma tênue fumaça branca, sinal do fogão de lenha aceso para a
cozinhada do meio-dia.
~ Pois o sinhô tá vendo aquela muié, estendendo roupa no vará, uai? ,
continuou falando o caboclo.
~ Aquela lá, seu padre, é a minha zéfa. Minha muié. Nóis vivemo junto a uma
beirada de tempo. Botemo mais de oito fio no mundo e vivemo aqui, toda a
nossa vidinha. Os amigo aqui pode comprová si é verdade ou mentira, uai.
Pois o sinhô suba lá e pregunte a Zéfa si ela si senti feliz aqui com seu
véio. Si ela tem prazê em vivê cumigo. Si ela gosta de ficá do meu lado, no
fim da tarde a oiá nossa vaquinha vortá pro rancho, a passarada se aninhá, o
sol se botá por trás dos monte, e tudo mais, as agrura da vida qui passêmo
junto, a morte de nossos dois fio, as alegria, as tristeza ... Si ela lhi
dizê que sim, aí eu posso falá pro sinhô : isso prá mim é essa tar
felicidade, que ôces priguntaram no começo de nossa prosa, uai. Porque si
ela dizê qui não, eu vou lhi dizê uma coisa, seu padre. E vou sê o homi mais
triste e mais infeliz do mundo, uai!!!
~ Eu num sei si mi fiz intedê direito, seu padre. Mas prá mim é isso :
felicidade é sabê qui minha Zéfa é feliz por vivê cumigo,uai! É sabê qui
meus filhos são felizes pelo pai qui têm.
Precisava falar mais? Os ideais se acabavam naquele jeito simples de sentir
o que seria felicidade. A aula prática de Filosofia podia acabar por ali.

Fundo Musical: Felicidade
Composição: Lupicínio Rodrigues
FUNDO DE PÁGINA: OURO PRETO -
MINAS GERAIS

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