Fico
pensando, Senhor, quão mísera é a nossa miserável condição humana. Quão
covardes somos, raça humana, que criaste à tua imagem e semelhança e,
mais que isto, a encarnaste, seja te fazendo um de nós, seja escolhendo
um ventre, santuário perfeito, mas humano, de teu verbo que se fez
carne. Oh! Senhor, como somos incrédulos, homens de pouca fé, como foi
possível sequer reagirmos? Como foi possível nos disfarçar, esconder, em
meio à turba, nos escaninhos das vielas, apenas para fugir ao temor de
sermos reconhecidos como um dos teus. Nós que a pouco nos orgulhávamos
em sê-lo, que vaidosos, qual narcisos ungidos, rogava-nos do direito de
nos nomearmos um dos teus, um dos escolhidos, quando aqueles outros
pregavam em teu nome?
Sabes
Senhor, lembro bem daquela Quinta-Feira. Nós todos, sentados à tua
volta, esperando ansiosos que àquela ceia, nos anunciaste: é chegado o
Reino! Um reino onde vocês serão parte importante, meus ministros, meus
mandatários. Um reino onde os súditos nos obedeceriam. Quão idiotas nós
fomos! O Teu Reino era muito mais que isto. Sabíamos, já escutáramos o
zum-zum-zum, os mal falares dos fariseus e sacerdotes. A voz ferina dos
que contra ti tramavam soava, qual trombeta inimiga a anunciar a
vitória, nos nossos ouvidos. Nosso coração temia – e tremia – de pavor e
medo, ao ouvirmos as barbáries que de ti diziam os doutores da lei, os
sacerdotes do Templo. Logo eles, incumbidos pelo Teu Pai de guardar as
Leis e aguardar o dia em que o Salvador viria. Nunca, na sua arrogância,
compreenderam!
No
fundo, nem nós entendíamos direito. Judas, Felipe e outros zelotes
encheram nossas cabeças confundindo nossas ambições com um reino
temporal. E tu ainda, para nossa maior confusão, antes da ceia, te
puseste a nos lavar os pés. Tu, que chamávamos e queríamos conclamar
Mestre, Senhor dos Senhores, Rei dos Reis! Porque isto? Porque este
gesto de humildade, de serviço, de desvelo? Não eras Tu, Jesus, o
Senhor? O Filho de Deus? Como ousaste te menosprezar tanto, fazendo-te
criado de quem deveria ser Teu escravo?
E
aquela Tua sentença a nos ferir a mente qual ferro em brasa: um de vós
haverá de trair-me! Quem Senhor? Serei eu? Não! Não foi só Pedro quem
teve dúvidas! Eu também, todos nós! Afinal, sabíamo-nos fracos, capazes
de atos covardes, frutos do temor e da angústia.
“Na
verdade Pedro, tu haverás de negar-me esta noite por três vezes”. E nós
Senhor? Quantas? Quantas vezes Te negamos ao permitir Tua prisão? Aquela
estocada que te quebrou o nariz com o cabo da lança e que, covardemente,
nos fez recuar? Éramos onze - àquelas alturas, Judas, o traidor, já
havia se esgueirado – contra dez soldados. Contávamos com a escuridão e
com aquele jardim, tão conhecido de todos nós, tantas vezes trilhados
nos Teus momentos de oração ao Pai. Ah!? Estavam armados? E daí? Porque
não desabamos sobre eles, como qualquer soldado o faria ao ver atacado
seu comandante? Mesmo que fosse para nos esvair em sangue ao fio da
espada? Não valeria a pena morrer por Tua causa? Não, Senhor, não está
fácil de aplacar minha consciência humilhada pela vergonha.
E na
flagelação? Quantas vezes eu, nós, Te negamos?! Poderíamos ao menos
começar uma reação. Que nada! Medíocres, apavorados e aparvalhados, nos
esgueiramos por trás do povo, juntamo-nos aos curiosos. Nem a coragem
que alguns demonstraram ao chorar, nós a tivemos, Senhor. Sabes porquê?
Para não pensarem que éramos dos Teus... E o silvo da chibata, como um
zumbido a ferir os tímpanos, era lancinante, fazia latejar nossa mente.
Calava nossa voz e feria de dor nosso coração. Víamos aqueles ossinhos
irregulares tirados das patas dalgum cordeiro, dispostos na ponta do flagrum, aquele terrível açoite, a dilacerar
Tuas carnes, penetrar Teu
corpo - o corpo de um outro cordeiro, o Cordeiro de Deus! Uma, duas,
três, trinta e nove chibatadas, como se cada uma trouxesse naquele
barulho seco, como se Teu grito de dor balbuciasse o nome de cada um de
nossos pecados, um... cobiça, dois... inveja, três... ódio, quatro...
luxúria, e haja açoites... e haja gritos de dor... e haja sangue
derramado, ali misturado à urina dos cavalos, ao imundo chão. O Sangue
de Deus lavado a iniqüidade de nossos passos ao pisar esta terra. Um
horror!
Depois
Pilatos: “Ecce homo”. Eis o homem!! Coitado! Nem sabia que tinha à sua mão o Homem! O Filho de Deus. Mas
nós? Nós sabíamos. Ah! Sabíamos, sim! Ele, o ateu romano, ainda tentou
negociar com a multidão, a Tua libertação, Tua troca por Barrabás, um
assassino. E nós? Os crentes, os crédulos, os Teus seguidores tementes a
Deus? Muito antes dele, lavamos nossas mãos e deixamos que Te
entregassem à morte.
Quando
recebeste a trave para carregar até o Gólgota, onde supliciarias o teu
calvário, nem ai, eu ou qualquer um de nós teve coragem de oferecer
ajuda. Nem mesmo quando caístes, com a face deitada por terra, o
escárnio a humilhar-te, fomos presentes. Assistimos boquiabertos Simeão,
que sequer andava conosco, Te amparar e Te ajudar a carregar o lenho de
nossas próprias faltas. Tua mãe Maria, Verônica, Maria de Cléofas e
Maria Magdalena, até elas, mulheres, irromperam a barreira imposta pelos
soldados para Te oferecer água e aplacar tua sede, limpar o suor e o
sangue que Te turvavam a visão. Mesmo sujo, humilhado, escarrado, elas
oscularam tua face, sabendo os riscos que corriam. Nós, parvos,
amedrontados, nem aí, intervimos, quando deitar-nos ao solo para te
servir de tapete era o mínimo que poderíamos fazer para aliviar teus
passos, trôpegos, vacilantes fruto do cansaço da noite de suplícios e do
sangue derramado que tingia aquela via crucis.
Percebemos, sim, aquele teus olhos fixos em Pedro. Para mim, e tenho
certeza para os outros também, aquele olhar dizia-nos claramente: porque
me abandonaram? Porque me negaram? Não fui amigo o bastante? O choro de
Pedro, creia Senhor, fazia escorregar por suas faces, as nossas
lágrimas. Entretanto, apesar de tudo, continuávamos lá, acovardados,
ocultando-nos entre a horda de insanos. Só aos pés da cruz, depois que
sofreste o resto dos sofrimentos da humanidade, depois que perdoaste o
ladrão, um de nós, justamente o mais novo, amparado e amparando Maria,
teve coragem. Afinal, tudo estava quase se consumando, não?! Mesmo assim
temíamos. Tremíamos com o medo de que nos prendessem e fizessem conosco
um pingo do que Te fizeram. Não aguentaríamos! Pelo menos isto sei que
compreendes, não?
Pois
foi assim, Senhor, Tua agonia. Foi assim que reagimos. Meros humanos em
quem confiaste, em quem depositaste as promessas do Reino, pessoas que
escolheste para enviar como apóstolos. Sim, Senhor, eu entendi, nós
todos entendemos! Não estavas Te dirigindo apenas aos soldados, àquela
multidão cega pelo ódio e insufladas pelo maligno, quando rogaste a
Deus: “Pai, perdoa-os. Eles não sabem o que fazem!” Era por nós, também,
que pedias. Eles, de fato, não sabiam. Nós sim! Sabíamos nossa covardia, mas não
entendíamos nosso medo. Aliás, não compreendíamos nada, tão aturdidos estávamos! Porque
Te faziam aquilo?! Tu que sempre foste tão puro,
tão bondoso. Porque Senhor? Perdoa-nos! Nós também pouco sabíamos!!!
Por
isso, Senhor, hoje eu Te rogo, e todos os que Te seguem também, o pedido
de Tomé: aumenta-nos a fé e permita-nos jamais voltar a sermos covardes,
medrosos. Dai-nos a chance, mínima que seja Senhor, de Te ver no
perseguido, no marginalizado, no desvalido, no doente, no faminto. Nem
que seja, Senhor, para reparar um pouco, nestes excluídos, o nada que
fizemos por Ti naqueles dias. Que estes, Senhor, possam ser a nossa
Páscoa, para que, fazendo a Ti, por eles, possamos ressurgir como homens
novos, despidos daqueles homens sem fé e sem coração. Permita-nos não
nos envergonharmos de Ti e jamais Te negarmos. Pois... Já o fizemos
bastante, como covardes espectadores de tua paixão! Como homens
corrompidos pelo pecado e pelo egoísmo de nos preservarmos antes da
menor possibilidade de sofrer qualquer humilhação. Permita-nos um
coração voltado para a fé, o amor e a esperança!!!
Amém!!!