Paixão de Jesus Cristo -

 

Crônica de um covarde espectador

 

Luiz Eduardo Caminha

 

 

 

 

Tenho pensado muito, Senhor, naqueles dias. Dias atrozes que dilaceraram teu corpo e toldaram minha mente com o Teu sangue escarlate. Dias que nunca esqueci, pela covardia, pela insanidade, pela demência que corrompe, pela frivolidade, o orgulho e a inveja de uma raça criada pelo Pai, o Criador do Universo. Como pude ficar calado? Como ousei sepultar minha voz? Como consenti aquilo tudo traindo meus ideais? Como, na minha omissão, concordei com a ira sanguinária dos hipócritas, pactuei com aquele levante contra Ti, um inocente. Não consigo me entender. Especialmente depois daquela dádiva do dia anterior onde nos mostraste – melhor, nos ofertaste – claramente memorizado aquela comunhão, comum união, cuum panis, de teu corpo, de teu sangue com os insondáveis mistérios de Vosso, Nosso, Pai?

 

Fico pensando, Senhor, quão mísera é a nossa miserável condição humana. Quão covardes  somos, raça humana, que criaste à tua imagem e semelhança e, mais que isto, a encarnaste, seja te fazendo um de nós, seja escolhendo um ventre, santuário perfeito, mas humano, de teu verbo que se fez carne. Oh! Senhor, como somos incrédulos, homens de pouca fé, como foi possível sequer reagirmos? Como foi possível nos disfarçar, esconder, em meio à turba, nos escaninhos das vielas, apenas para fugir ao temor de sermos reconhecidos como um dos teus. Nós que a pouco nos orgulhávamos em sê-lo, que vaidosos, qual narcisos ungidos, rogava-nos do direito de nos nomearmos um dos teus, um dos escolhidos, quando aqueles outros pregavam em teu nome?

 

Sabes Senhor, lembro bem daquela Quinta-Feira. Nós todos, sentados à tua volta, esperando ansiosos que àquela ceia, nos anunciaste: é chegado o Reino! Um reino onde vocês serão parte importante, meus ministros, meus mandatários. Um reino onde os súditos nos obedeceriam. Quão idiotas nós fomos! O Teu Reino era muito mais que isto. Sabíamos, já escutáramos o zum-zum-zum, os mal falares dos fariseus e sacerdotes. A voz ferina dos que contra ti tramavam soava, qual trombeta inimiga a anunciar a vitória, nos nossos ouvidos. Nosso coração temia – e tremia – de pavor e medo, ao ouvirmos as barbáries que de ti diziam os doutores da lei, os sacerdotes do Templo. Logo eles, incumbidos pelo Teu Pai de guardar as Leis e aguardar o dia em que o Salvador viria. Nunca, na sua arrogância, compreenderam!

 

No fundo, nem nós entendíamos direito. Judas, Felipe e outros zelotes encheram nossas cabeças confundindo nossas ambições com um reino temporal. E tu ainda, para nossa maior confusão, antes da ceia, te puseste a nos lavar os pés. Tu, que chamávamos e queríamos conclamar Mestre, Senhor dos Senhores, Rei dos Reis! Porque isto? Porque este gesto de humildade, de serviço, de desvelo? Não eras Tu, Jesus, o Senhor? O Filho de Deus? Como ousaste te menosprezar tanto, fazendo-te criado de quem deveria ser Teu escravo?

 

E aquela Tua sentença a nos ferir a mente qual ferro em brasa: um de vós haverá de trair-me! Quem Senhor? Serei eu? Não! Não foi só Pedro quem teve dúvidas! Eu também, todos nós! Afinal, sabíamo-nos fracos, capazes de atos covardes, frutos do temor e da angústia.

 

“Na verdade Pedro, tu haverás de negar-me esta noite por três vezes”. E nós Senhor? Quantas? Quantas vezes Te negamos ao permitir Tua prisão? Aquela estocada que te quebrou o nariz com o cabo da lança e que, covardemente, nos fez recuar? Éramos onze - àquelas alturas, Judas, o traidor, já havia se esgueirado – contra dez soldados. Contávamos com a escuridão e com aquele jardim, tão conhecido de todos nós, tantas vezes trilhados nos Teus momentos de oração ao Pai. Ah!? Estavam armados? E daí? Porque não desabamos sobre eles, como qualquer soldado o faria ao ver atacado seu comandante? Mesmo que fosse para nos esvair em sangue ao fio da espada? Não valeria a pena morrer por Tua causa? Não, Senhor, não está fácil de aplacar minha consciência humilhada pela vergonha.

 

E na flagelação? Quantas vezes eu, nós, Te negamos?! Poderíamos ao menos começar uma reação. Que nada! Medíocres, apavorados e aparvalhados, nos esgueiramos por trás do povo, juntamo-nos aos curiosos. Nem a coragem que alguns demonstraram ao chorar, nós a tivemos, Senhor. Sabes porquê? Para não pensarem que éramos dos Teus... E o silvo da chibata, como um zumbido a ferir os tímpanos, era lancinante, fazia latejar nossa mente. Calava nossa voz e feria de dor nosso coração. Víamos aqueles ossinhos irregulares tirados das patas dalgum cordeiro, dispostos na ponta do flagrum, aquele terrível açoite, a dilacerar Tuas carnes, penetrar Teu corpo - o corpo de um outro cordeiro, o Cordeiro de Deus! Uma, duas, três, trinta e nove chibatadas, como se cada uma trouxesse naquele barulho seco, como se Teu grito de dor balbuciasse o nome de cada um de nossos pecados, um... cobiça, dois... inveja, três... ódio, quatro... luxúria, e haja açoites... e haja gritos de dor... e haja sangue derramado, ali misturado à urina dos cavalos, ao imundo chão. O Sangue de Deus lavado a iniqüidade de nossos passos ao pisar esta terra. Um horror!

 

Depois Pilatos: “Ecce homo”. Eis o homem!! Coitado! Nem sabia que tinha à sua mão o Homem! O Filho de Deus. Mas nós? Nós sabíamos. Ah! Sabíamos, sim! Ele, o ateu romano, ainda tentou negociar com a multidão, a Tua libertação, Tua troca por Barrabás, um assassino. E nós? Os crentes, os crédulos, os Teus seguidores tementes a Deus? Muito antes dele, lavamos nossas mãos e deixamos que Te entregassem à morte.

 

Quando recebeste a trave para carregar até o Gólgota, onde supliciarias o teu calvário, nem ai, eu ou qualquer um de nós teve coragem de oferecer ajuda. Nem mesmo quando caístes, com a face deitada por terra, o escárnio a humilhar-te, fomos presentes. Assistimos boquiabertos Simeão, que sequer andava conosco, Te amparar e Te ajudar a carregar o lenho de nossas próprias faltas. Tua mãe Maria, Verônica, Maria de Cléofas e Maria Magdalena, até elas, mulheres, irromperam a barreira imposta pelos soldados para Te oferecer água e aplacar tua sede, limpar o suor e o sangue que Te turvavam a visão. Mesmo sujo, humilhado, escarrado, elas oscularam tua face, sabendo os riscos que corriam. Nós, parvos, amedrontados, nem aí, intervimos, quando deitar-nos ao solo para te servir de tapete era o mínimo que poderíamos fazer para aliviar teus passos, trôpegos, vacilantes fruto do cansaço da noite de suplícios e do sangue derramado que tingia aquela via crucis.

 

Percebemos, sim, aquele teus olhos fixos em Pedro. Para mim, e tenho certeza para os outros também, aquele olhar dizia-nos claramente: porque me abandonaram? Porque me negaram? Não fui amigo o bastante? O choro de Pedro, creia Senhor, fazia escorregar por suas faces, as nossas lágrimas. Entretanto, apesar de tudo, continuávamos lá, acovardados, ocultando-nos entre a horda de insanos. Só aos pés da cruz, depois que sofreste o resto dos sofrimentos da humanidade, depois que perdoaste o ladrão, um de nós, justamente o mais novo, amparado e amparando Maria, teve coragem. Afinal, tudo estava quase se consumando, não?! Mesmo assim temíamos. Tremíamos com o medo de que nos prendessem e fizessem conosco um pingo do que Te fizeram. Não aguentaríamos! Pelo menos isto sei que compreendes, não?

 

Pois foi assim, Senhor, Tua agonia. Foi assim que reagimos. Meros humanos em quem confiaste, em quem depositaste as promessas do Reino, pessoas que escolheste para enviar como apóstolos. Sim, Senhor, eu entendi, nós todos entendemos! Não estavas Te dirigindo apenas aos soldados, àquela multidão cega pelo ódio e insufladas pelo maligno, quando rogaste a Deus: “Pai, perdoa-os. Eles não sabem o que fazem!” Era por nós, também, que pedias. Eles, de fato, não sabiam. Nós sim! Sabíamos nossa covardia, mas não entendíamos nosso medo. Aliás, não compreendíamos nada, tão aturdidos  estávamos! Porque Te faziam aquilo?! Tu que sempre foste tão puro, tão bondoso. Porque Senhor? Perdoa-nos! Nós também pouco sabíamos!!!

 

Por isso, Senhor, hoje eu Te rogo, e todos os que Te seguem também, o pedido de Tomé: aumenta-nos a fé e permita-nos jamais voltar a sermos covardes, medrosos. Dai-nos a chance, mínima que seja Senhor, de Te ver no perseguido, no marginalizado, no desvalido, no doente, no faminto. Nem que seja, Senhor, para reparar um pouco, nestes excluídos, o nada que fizemos por Ti naqueles dias. Que estes, Senhor, possam ser a nossa Páscoa, para que, fazendo a Ti, por eles, possamos ressurgir como homens novos, despidos daqueles homens sem fé e sem coração. Permita-nos não nos envergonharmos de Ti e jamais Te negarmos. Pois... Já o fizemos bastante, como covardes espectadores de tua paixão! Como homens corrompidos pelo pecado e pelo egoísmo de nos preservarmos antes da menor possibilidade de sofrer qualquer humilhação. Permita-nos um coração voltado para a fé, o amor e a esperança!!!

 

Amém!!!

 

 

 

P.S.: Que a Páscoa, nos tenha sido uma passagem para uma vida nova, revivida a cada dia, agora e para sempre. Que ela nos infunda a coragem de proclamarmos a boa nova que, segundo o Apóstolo Paulo é a razão de ser do cristão: “Se Cristo não tivesse ressuscitado, vã seria nossa fé” (1ª. Carta aos Coríntios 15,14)

 

 

 

 

 

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