MAGAZINE CEN / Fevereiro 2012 “PROSA“
4º BLOCO
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Edição de Carlos Leite Ribeiro
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Efigênia Coutinho
Balneário Camboriú
ÉTICA E VIRTUDES EM WEB
Neste Universo WEB,
pouco se tem visto sobre "ética e virtudes".
Tantos são os atalhos para confundir o leitor, pessoas que se dizem
bem-intencionadas, podem terminar se perguntando se vale a pena ser
"ético". Ou quem sabe, se a ética não nos torna mais lentos diante das
agressividades que somos submetidas. As ambigüidades são tantas, que
pode parecer meio impensável comungar desta ética com resultados.
Acredito ser os mais avançados conceitos do ser Humano, colocando a
ética, não como um sonho de ordem moral, mas como uma virtude normal de
gestões bem-sucedidas, ao lado de valores como a transparência do ser
Humano.
A ética define um conceito de equilíbrio sobre a pessoa, de forma que
prevaleça sobre os interesses de seus amigos ou grupos.
Lembrando que a falta de ética, pode estar vinculada a má formação
oriunda duma cultura de muitas gradações.
Do tipo "vou levar vantagem em tudo""ou vou dizer o que penso". Sutis, ou
conscientes, são atitudes levianas, que mantém um certo ocultismos
interior naquilo que deseja ofender.
É incrível como pessoas se comportam, com ciúmes, suas invejas, broncas e
ambições desmedidas no ataque.
E, essa nebulosa gama de sentimentos negativos, que fogem a qualquer
ética virtuosa,que, ás vezes, travestidas de "profissionalismo, termina
influindo no leitor.
Assim, muitas vezes um comentário estúpido pode ser aprovado por razões
pouco defensáveis,pela simples agressividade que é levado ao leitor,
onde muitos o aprovam sem mesmo se questionar, enquanto um belo texto,
muitas vezes é rejeitado, somente porque iriam propiciar muita
sensibilidade a alguém.
Quando a fundo de tudo, o
real motivo é o tamanho do Ego do ofensor.
Mas o que há de Ético ou Antiético? Em boa parte dos casos, nossas razões
secretas podem ser até inconscientes. Essa é a nossa WEB de hoje, um
grande desafio Ético, e não mero código de conduta, que equivale-se a um
conjunto de comportamentos aceitáveis, obrigatórios para o ser pensante
e vivente deste Universo!
Efigênia Coutinho
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Angelino Pereira
Guimarães
Criança do meu tempo
Manel! Anda comer o caldo.
Já vou! Ainda estou a chegar, carregado como venho, grande fome tenho!
O caldo! Qual caldo qual quê, toucinho ninguém vê!
Umas couves mal lavadas, que em vez de segadas, foram esfarrapadas.
De azeite cegou, arroz quase não tem mas, mesmo assim faz-me bem!
Criança cresce porque Deus favorece. Na bênção de quem não tem, o horizonte
vislumbra além.
Família pobre de haveres, em Novelas feliz cresceu.
Podia ser um canto, uma cantiga, para embalar o menino que cresce com muito
carinho.
Mas o Manel não tem tempo para receber uma carícia sequer de alguém. Pai
tem, mas não vem!
O pai, do menino que cresce nesta aldeia de pé descalço, está longe. Está na
cidade grande, à procura do sustento da família. Cinco filhos, é muita boca
a pedir pão!
Os ordenados são tão pequenos, nem dão para o pai regressar a casa todos os
dias! Fica na cidade grande. Chega na quarta-feira, no comboio de madrugada
mas, tem apenas um dia de folga. Para estar a horas no trabalho, ainda antes
que o dia termine, volta para o Porto.
Com Chaves nasceu o Manel mas, em toda a sua Novelas cresceu, embora isento
de mazelas, não achou chave para a sua pobreza material; já que o povo da
sua infância sempre apoiou a criança!
No tempo do Manel, havia amor e solidariedade, amizade de verdade. Pobre não
deixava de ser mas, todos conheciam o menino moreno.
A sua lide diária era demasiado pesada para tão tenra idade. Temos que
sobreviver! O pai não ganha o suficiente mas, quer-nos honrados. Então temos
que nos virar...
A mãe anda ao jornal. Vende jornal? Não, a mãe trabalha ao dia. Quer dizer,
por cada dia que presta um serviço o patrão paga-lhe um preço.
São 2$50, a seco, não é muito mas dá para pagar a renda à senhoria! Se a mãe
trabalhar vinte dias por mês, são 50$00, ainda sobram dez escudos.
Eu como na escola mas tenho que levar a comida antes à minha mãe! À pressa,
cozo algumas batatas com couves que irão com certeza calar o estômago
durante várias horas. Convém até ficar um pouco duras, mais tempo demorará a
sua digestão.
O pai trabalha na cidade grande. Julgo que lá não há tanta pobreza. Talvez
um dia, quando for maior, vou também para lá trabalhar, numa casa mais
abastada.
Minha mãe deixara a casa onde eu nasci. Cortou relações de amizade com a
senhoria e, viver zangada com alguém, é vida que não serve à espontaneidade
da Carolina "Calceteira".
Junto aos moinhos da ponte é bom viver. De verão é mais fresco!
Uma das minhas tarefas tornara-se mais leve. A fonte onde irei agora buscar
a água está mais próxima e, para dar banho, vou diretamente ao rio que passa
aqui mesmo juntinho. Que bem cheira o rio Sousa nas manhãs de verão. Se
algum tempo sobrar das minhas tarefas diárias, vou arranjar um tempinho para
pescar.
Ah! Se eu tivesse sorte na pesca, melhorava com certeza a ementa num dia
destes. Que grande surpresa fazia a minha mãe, quando lhe fosse levar as
habituais batatas cozidas!
Vou tentar. Amanhã vou faltar à escola. Vou arranjar um pau, uma linha. E o
anzol? Ah! Já sei, tenho na caixa de cartão dois tostões que recebi do
sapateiro que mora ao nosso lado, quando lhe fui fazer uma entrega de
sapatos à D. Teresa.
A D. Teresa gosta muito de mim. A sua neta anda comigo na catequese. É tão
bonita! Fico minutos seguidos a olhar para a Celeste; até já pensei casar
com ela! Mas, a Celeste é rica, não vai gostar do menino pobre.
A D. Teresa é boa cliente das nossas pinhas.
Das minhas principais tarefas, destaca-se a recolha de pinhas que procuramos
nos pinheiros das matas mais próximas.
É um combustível muito procurado nesta década cinquenta. Os mais abastados
têm fogões a lenha, onde queimam as pinhas como ponto de inflamação. Atear
o fogo por este processo é mais fácil.
A D. Teresa sempre me ajuda a descarregar o saco, umas calças velhas
amarradas nas pernas e cinta, bem atestadas de sementes de pinheiro.
As pernas, das calças, encaixam no pescoço, tornando-se mais fácil o
transporte de meio cento.
A 2$50 o cento, consigo ganhar para a família 1$25!
Bem! hoje já tudo saiu. A mãe já foi trabalhar.
Vou buscar o anzol.
- Oh! Sr. Joaquim dê-me cá um anzol.
- Para quê Manel?
- Para pescar, com certeza.
- Menino vê lá se te picas. Olha que entrar, é num instante. Sair é bem mais
difícil!
- Está bem, eu já vi o meu irmão a pescar.
Paguei o anzol e corri para o rio Sousa. - Adeus Sr. Joaquim!
Eh! tanto peixe, ali ao fundo, Deus queira que saia um a tempo de o levar à
minha mãe.
Lancei a linha com a minhoca pendurada no anzol, carne para peixe. Se
aparecer um peixe dos pobres com fome, vai pegar no isco e, eu vou fazer
refeição de rico!
Oh! Mãe do céu, dá peixe à minha mãe.
Eh! milagre! Pegou! Tenho peixe na cana.
Puxo com força de sete anos. O Divino ajudou! O peixe é muito grande! Tem
para aí meio quilo! Ena! Grande peixe!
Com muita luta e força, quase partira o pau que suporta o anzol, mas puxei o
animal para terra.
Ele salta com as barbatanas a dar a dar...
Quase me escapa de novo para o rio..... Atiro-me para cima do bicho...
Tão boa refeição não posso deixar fugir!
Dominado o peixe, já quase não respira, já posso leva-lo para casa.
Como hei-de cozinha-lo para o levar à minha mãe?
Vou cozer as batatas, como habitualmente e frito o peixe.
A garrafa tem tão pouco azeite!
Chega, se não ficar frito fica assado!
Um bocado de sal e já vai para o tacho...
São onze e meia, se a mãe precisa comer ao meio dia, tenho que andar lestro.
- Oh! mãe já cheguei.
- Anda filho, o patrão só dá uma hora para comer.
- Toma mãe as batatas do costume.
- Mas cheira a outra coisa! Um peixe! Como conseguiste isto?
- Pesquei para ti.
- Tu?
- Sim eu!
- Eu não quero que andes junto ao rio. Meu Deus, se tu caías para o rio!
Oh! filho eu não quero peixe, prefiro somente as batatas, mas antes saber
que nada te acontece!
Lembra-te daquele dia que ias afogar junto aos moinhos!?
- Oh! mãe desculpa, eu só queria fazer-te uma surpresa, para não comeres só
batatas com couves!
- Obrigada filho, mas que adianta ganhar um peixe com o risco de te perder?
Não voltes ao rio.
- Está bem mãe.
A minha mãe não gostou, mas eu vi que lhe soube tão bem aquele peixe!
Mesmo assim foi tirando aquelas fevras para mim, enquanto chuchava aquelas
espinhas sofregamente..
A mãe tem razão. Ainda me lembro daquele dia: meu irmão, quatro anos mais
velho, nadava naquela presa, junto aos moinhos da ponte, enquanto eu, e o
irmão mais novo, atravessávamos a levada que ligava as duas margens, para
vermos o mais velho a nadar.
De repente, um de nós escorregou, arrastando consigo o outro.
Caíram as duas crianças ao remoinho daquelas águas, que apontavam para as
condutas, que faziam o movimento das hélices, que moviam as mós, para a
trituração do milho, que transformava em farinha.
Meu irmão alertado pelo bater aflito e desesperado nas águas, apercebeu-se
que os pequenos estavam em direção à morte.
Nadou na sua força máxima e conseguiu ainda atravessar as suas pernas junto
à entrada do canal, até que barrasse a nossa passagem.
Quando batemos nas suas pernas, arrastados pelos águas, então meu irmão
gritou por socorro, antes que a torrente fosse superior às suas forças.
Assim pudemos sair ilesos quando a morte nos esperava...
Este episódio ficou marcado na memória da minha mãe e, fazia a sua vida
ansiosa, quando pensava na nossa aproximação do rio.
Prometi à minha mãe não voltar ao rio. Vi que a surpresa não lhe trouxera
felicidade, mas antes apreensão.
Alguns dias depois, meus pais resolveram mudar a nossa residência para outro
lugar, dentro da mesma freguesia.
Saímos da Ponte e fomos para o lugar da Igreja Velha .
A nossa casa continuava a ser térrea e ampla, sem quartos, dividida por
cortinados que resultava no mesmo efeito.
Dos cinco irmãos, os três mais velhos, já haviam partido para a cidade
grande.
Por cá, nesta aldeia de poucos ricos e muitos pobres, ficaram três pessoas
na melhor casa de sempre.
A nova vizinhança já nos conhecia. Quase toda a gente se conhecia nesta
Novelas dos anos cinquenta.
Deixamos de morar junto ao rio mas ficamos muito perto do fontanário.
Aqui temos a água mesmo junto à porta, o fontanário quase faz parede com a
cozinha e, o tanque mesmo ali para minha mãe lavar a roupa.
A mãe anda tão cansada. Trabalha tanto!
O rio Sousa passa agora mais longe, a cerca de quatrocentos metros.
Há quatro lavradores abastados à nossa volta onde minha mãe pode trabalhar.
O Sr. Mota já nos convidou: “Sempre que possam venham cá para casa. Os
miúdos também podem ser aproveitados, no tempo da poda apanham as lenhas. Há
sempre que fazer na lavoura e, sempre vos espera, no mínimo, uma boa malga
de caldo com broa. Nesta casa há sempre que comer”
Minha mãe agradeceu a gentileza e passamos a viver como uma família.
Crescemos juntos, em família e com amizade.
Até que um dia, minha mãe começara a sofrer da barriga...
Ouvi dizer que tivera muitos abortos que lhe deixaram marcas físicas.
Então meu pai arranjou-lhe uma consulta de ginecologia no Porto.
Minha mãe depois de algumas viagens à cidade Invicta, para exames médicos, é
obrigada a fazer um tratamento prolongado que exige a sua presença diária
naquela cidade.
Ficaram duas crianças (oito e seis anos) entregues ao seu destino.
Durante o dia, depois da escola, regressávamos às tarefas diárias: alguns
animais domésticos continuavam em casa à espera de alimentação; um porco
cego que nos fora oferecido tornara-se tão dócil e meigo que só lhe faltava
falar. Ouvia a nossa voz e vinha ao meu chamamento. Por tino corria a trás
de nós..
As galinhas comiam farelo amassado com couves e os coelhos esperavam a erva
que segávamos pelos campos.
Se o tempo nos sobrasse íamos até casa do senhor Mota, executávamos alguma
tarefa e comíamos o caldo.
À noite regressávamos a casa.
Algum medo se instalava em nós.
Se alguém nos quiser assustar não será difícil! Mas não deve ser possível,
numa aldeia onde todos nos estimam.
Chegara o carnaval de 1957.
Minha mãe ficava no Porto por períodos mais longos. Há oito dias que não vem
a casa.
Naquela quadra especial aproveitara alguém da freguesia, que fazia
habitualmente viagem diária para Novelas e, enviou um quilo de “boches”
“miúdos” de boi para eu melhorar o prato nesse dia especial.
Naquele dia, por volta das onze horas ouviu-se gritos de desgraça lá para os
lados da estação.
Corremos, como muita gente, para saber o que havia acontecido.
Foi junto à passagem de nível da estação da CP de Penafiel (Novelas), um
automóvel bateu numa menina de seis anos, matando-a contra as grades da
cancela.
Visto o resultado do acidente, regressamos a casa para cozinhar os boches,
mas grande foi o meu espanto, sobre a trempe na lareira, estava uma grande
travessa de barro contendo grande quantidade de comida: cozido à portuguesa,
rojões e sarrabulho.
O Sr Mota havia feito a matança do porco em vésperas do carnaval e, neste
dia abundara a nossa refeição numa verdadeira festa da comida.
Que Deus lhe dê o céu, jamais vi tanta comida e tão boa!
De tarde dois irmãos “órfãos” passeavam a freguesia na direção da Ponte para
observar os jogos de carnaval, nas fantasias e disfarces dos mascarados.
- Oh! Manel vem cá, já almoçaste?
- Já sim senhora.
- Anda cá, vem comer....
Mais adiante, outro convite e mais outro convite...
Por favor, não me obriguem mais a comer, eu vou morrer de tanto comer!
A minha aldeia dos anos cinquenta!..
Que terra linda de encanto! A solidariedade, o amor entre as pessoas, a
fraternidade entre os homens.
Todos se conheciam, todos se ajudavam.
Meu rio Sousa de amieiros e choupos, de searas que o povo mundara, de pão
que Deus abundara.
Esta terra é um paraíso, até os pobres alcançam o céu.
Deus gosta de nós!
Um dia, no primeiro ano que viemos morar para a Igreja Velha, fui à missa
das seis e meia, como era habitual aos domingos.
Era uma daquelas manhãs de inverno, frio e ainda escuro.
Tinha feito a primeira comunhão, à relativamente pouco tempo e, naquela
missa voltei a comungar.
Regressava a casa a correr, feliz por mais uma vez ter recebido o Senhor.
Ao chegar ao cruzeiro, quando virava para a direita e, me preparava para
descer em direção ao cemitério, olhei para aquela parede que tinha uma
argola fixa, que servira outrora talvez para prender o gado cavalgar, talvez
o burro do moleiro.
Olhei, vi e parei para confirmar! Eu estava a ver a imagem da Nossa Senhora
de Fátima.
De mãos postas a olhar para mim, como quem diz: Vem até mim!
Fiquei por alguns minutos estupefacto, paralisado. Que coisa maravilhosa!
Como é possível a Senhora estar aqui!?
De repente, dou a correr ribanceira abaixo, em direção a casa, para que
alguém viesse confirmar se eu estava mesmo a ver!
Minha irmã, que estava em casa naquele dia, veio comigo a correr mas, ao
chegar ao local, chamou-me mentiroso!
O que eu dissera não pudera provar!
Não pudera mostrar o que vira.
Olhamos fixamente os dois: examinamos e apalpamos a parede mas nada!
- Mentiroso, disse a minha irmã. Pensas que a Nossa Senhora aparecia a um
mafarrico como tu?
A Dona Idalina, a minha catequista, também soube da minha visão e achou que
era impossível a Senhora aparecer logo a mim; na sua opinião haviam crianças
mais merecedoras desse privilégio divino.
Quando os homens pensam mais do que Deus, julgam pior que o diabo!
A Dona Idalina se calhar não gosta de mim e, porque não gosta, acha que a
Senhora é da mesma opinião.
A Dona Idalina tem dupla função no contacto com as crianças da minha idade.
É catequista e regente-diretora na escola de Novelas.
Junto à escola existe uma casa que parece fazer parte do mesmo património do
Estado.
Essa casa, tem à sua volta um quintal onde a catequista faz as suas
sementeiras.
A Dona Idalina mobiliza as crianças que na sua opinião se portam mal e, como
castigo, distribui-lhes tarefas na agricultura.
A quantidade de afazeres que eu tenho na minha casa, não me permite obedecer
à Dna Idalina.
A bicharada que tenho para alimentar, a lenha que tenho que buscar nos
montes vizinhos para confecionar as minhas refeições, a responsabilidade
obrigatória para tomar conta do meu irmão mais novo. É muito trabalho para
uma criança de nove anos!
A Dna Idalina é demais prepotente para entender estas coisas!. Lá porque me
deixa rapar o tacho do arroz na cantina e, me obriga a lavar a louça,
entende que ainda devo trabalhar no seu quintal!
Sempre que me escapo, já sei que no dia seguinte vou levar um bom puxão de
orelhas. Fico com as ditas a arder e a fumegar de vermelhas durante algumas
horas... Mas que posso fazer para evitar isto? Tenho tanto trabalho em minha
casa para fazer!
A Dna Idalina não gosta de mim!
Talvez pelo meu sofrimento, a Senhora Se tenha lembrado de mim. Talvez a
Senhora me queira dizer: tem paciência, sofre que eu velo por ti!
A ganância dos homens é cega, não enxerga a razão!
Deus dará do seu Reino aos pobres, aos humildes, aos enjeitados na terra. Eu
sei que Deus gosta de mim!
- Oh! Dna. Idalina, como é que Deus é Pai, Filho e Espírito Santo, ao mesmo
tempo? Perguntei-lhe num dia de catequese.
- É um mistério. Respondeu a Dna Idalina.
Outra vez, perguntei-lhe: como explica que Nossa Senhora ao conceber um
filho tenha continuado Virgem? - É um Mistério. Respondeu a Dna. Idalina!
A minha catequista e regente arrumava sempre a questão com a palavra
mistério e, não admitia mais conversa sobre o assunto.
Tudo estava consumado numa obediência cega sem oposição!
Pobre materialmente não quer dizer pobre de espírito. Pobre não tem que ser
burro!
Com estas perguntas e “desobediência”, à Dona Idalina, jamais ela aceitará
que o menino moreno e pobre possa ver a Nossa Senhora!
O sonho não é privilégio único dos ricos mas antes alimento de vida dos
pobres!
Eu sonho melhor vida na grande cidade.
Meus irmãos mais velhos já por lá andam e dizem maravilhas!
São marçanos. Têm muita comida por perto!
Se um dia for para a cidade, vou também para marçano. Não vou mais rapar o
tacho, nem lavar a louça!
Estamos no mês de Junho. Já andam a fazer o peditório, lá na escola, para o
cordeirinho que vamos oferecer à senhora professora.
Não sei se minha mãe vai poder dar algum dinheiro. Somos tão pobres!
- Mãe dá-me cinco escudos para levar para a escola.
- Oh Filho como posso dar-te o dinheiro de dois dias de um trabalho duro ao
sol? Sabes como sofro, quando me levas a comida?
- Sei mãe, mas eu gostava tanto de ir com os outros meninos levar o
carneirinho à senhora professora!
- Eu sei, a senhora professora saberá entender porque não podes ir!
Já vejo que minha mãe não pode dar-me os cinco escudos. Tenho que resolver o
problema doutra forma.
Já sei! Tenho uma ideia!
Vou fazer um peditório na minha aldeia. As pessoas gostam de mim!
Comecei pelo Sr. Mota. Falei à esposa.
Contei toda a verdade. A senhora é muito boa, tem muita pena dos pobres.
Disse a senhora: - Entendo a tua vontade, toma lá 2$50, vê se arranjas o
resto. Se não conseguires volta cá.
- Muito obrigado. Agora vou à esposa do Sr. Silva da Igreja.
Toma cuidado, vê se o marido não está, ele é muito mau! Eu sei!
E sabia, o Sr. Silva não gosta de crianças. Talvez seja porque nunca foi
pai!
O Sr. Silva é um dos homens mais ricos da freguesia. Tem a melhor casa do
lugar.
É um homem muito esquisito, muito estranho. Não entendo a sua figura!
Tem aspecto de muito mau. Já ouvi a sua mulher a contar à minha mãe o medo
que tem do marido.
A esposa é muito respeitada no lugar. É muito boa. Foi essa senhora quem deu
o porco cego à minha mãe.
Saíra-lhe numa ninhada de sete porcos.
Enfermeira de profissão, não pratica tal atividade por ciúme do marido.
Faz algum trabalho de enfermagem às escondidas, quando o marido se ausenta.
Foi o que acontecera há dias, quando minha mãe lá me levou!
Eu construo os meus próprios brinquedos. Minha mãe não tem dinheiro para me
comprar seja o que for, para além da pobre comida para meu sustento.
Então, um dia pensei fazer uma gancheta com uma roda de chapa, aproveitada
na tampa de uma lata velha. Precisava, para o efeito, de uma vara de madeira
o mais direita possível.
Procurei, procurei e, por fim encontrei numa estaca de videira.
Na simplicidade de criança, comecei a desligar a estaca da sua amarração à
videira.
De repente senti um batimento violento na minha testa, com forte ardência
que quase me levava ao desmaio.
Levantei a cabeça um pouco para cima. Olhei em direção ao céu e, sob uma
mancha vermelha de sangue que cobria o meu rosto, ainda vi o assassino de
tal atrocidade. Era o Sr. Silva!
Aterrorizado, corri, corri sem parar até casa antes que as forças me
faltassem e fosse apanhado pelo meu carrasco.
Já coberto da sangue, minha mãe gritou de aflição ao mesmo tempo que
perguntava como tal me aconteceu.
Enquanto minha mãe lavava a ferida na água que caía no fontanário, eu fui
explicando como tudo acontecera.
Depois de descoberto o ferimento, minha mãe apercebera-se da gravidade.
Com um pano sobre o golpe levou-me a casa do Sr. Silva.
O assassino não estava em casa, continuava a passear os seus terrenos.
A esposa, enfermeira, ficou escandalizada ao saber do sucedido.
Prontificou-se a reparar, dentro do que lhe era possível, todos os estragos
levados a cabo pelo seu marido, que ela própria temia!
Fiquei então a receber curativo diário em casa da boa senhora.
Estava atento aos passos para o exterior do Silva.
Quando visse o Silva sair, dirigia-me imediatamente a sua casa para receber
o curativo da sua mulher.
Esta amizade que existia entre minha mãe e a dita senhora, bem como, a minha
ligação pelos primeiros socorros, deu-me a confiança necessária para lhe
fazer mais um pedido.
Contei à senhora enfermeira a minha necessidade de obter 2$50 para completar
a oferta para o cordeiro e prontamente recebi a respetiva importância.
A vontade de pagar as maldades do seu marido transformara-se para mim, no
gozo de alguns favores.
Sábado é o dia grande. Os meninos da minha classe vão a Penafiel levar o
carneirinho à senhora professora.
Nove horas da manhã. Todos os meninos e meninas do mesmo ano escolar vão a
casa da sua professora.
Embora as crianças sejam apartadas pelo sexo, durante a aulas e recreio,
todavia pertencem à mesma professora.
Foi preciso angariar setecentos e oitenta escudos para comprar o cordeiro.
O cordeiro está tão bonito! Não é grande mas é uma beleza.
Está enfeitadinho com fitinhas de seda.
O mais forte dos meninos carrega com ele ao pescoço, encaixado nos ombros.
Os restantes pegam nas várias fitas que vão ligar ao animal.
As patas do bicho estão amarradas aos pares, por isso o cordeiro vai quieto.
O carneirinho é uma gracinha. Está tão amoroso!
Tão branco, tão branco que parece ter chegado do polo norte!
Então dá-se a partida. Eu coloco-me junto à menina da minha preferência, a
minha primeira e grande paixão. O meu primeiro amor de infância.
Ela veste de branco como o cordeiro!
A candura, a inocência, a pureza mais transparente da natureza humana,
reunida num quadro de inimaginável aguarela pintado no mais celeste divinal.
Igreja, Ponte, Bujanda, cidade adentro; numa festa de cantares em vozes
finas e melodiosas que encantam quando passam.
Viva a senhora professora! Viva!
Viva a nossa escola! Viva!
Viva a Nossa diretora! Viva!
Vivam os nossos pais! Viva!
A senhora professora sabe muito e muito bem
os meninos gostam dela e vão levar-lhe o que têm.
Cordeirinho pequenino
que lacinhos ficam bem
vai aos ombros do menino
de Novelas mais além.
Viva a senhora professora! Viva!
Chegamos à misericórdia ainda cedo.
A senhora professora mora na rua que liga ao Sameiro.
Havia um lanche à nossa espera!
Depois de mais alguns vivas na presença da senhora professora, ela recebeu o
cordeiro. Agradeceu a oferta e serviu-nos muitos bolos.
Comi coisas que nunca tinha visto e regressei a casa muito feliz.
A minha aldeia tem coisas muito bonitas!
Minha mãe à noite perguntou-me como tudo correu. Contei-lhe tudo com muita
emoção.
Minha mãe comungou da minha felicidade.
Não tivera dinheiro para me dar mas gostou ver-me feliz!
Foi a primeira e única vez que convivi com tantos amigos fora da escola.
Diverti-me imenso!
A minha brincadeira preferida era a realização de pequenas procissões.
Construía um andor em madeira, onde colocava uma imagem de um santo,
habitualmente da Nossa Senhora;
depois convidava os meus amigos mais próximos para realizar uma procissão à
volta do nosso lugar.
Entoávamos cantos religiosos, durante um curto itinerário, que
seleccionávamos para fazer de conta que um de nós era padre.
Havia um certo fascínio ou encanto em tudo que se relacionava com religião.
Como dizia a Dna Idalina, quando não arranjava outra explicação: “é um
mistério!”
De tal maneira estava entusiasmado que disse á minha mãe:
- Eu quero ser padre!
Minha mãe olhou para mim e disse:
-Tu queres mesmo ser padre?
- Quero, respondi.
Então, minha mãe foi falar com o padre da freguesia.
- Senhor Abade, o meu filho quer ser padre. O miúdo organiza procissões nas
suas brincadeiras de infância e até pensa que viu a Nossa Senhora.
- Olhe Carolina, isso não basta! Disse o padre.
- Não basta porquê, senhor Abade? Então o rapaz é tão devoto à Nossa
Senhora!
- Não basta porque é muito pobre!
- Então um pobre não pode ser padre?!
- Não é isso. É necessário que consigas arranjar um enxoval para o moço
entrar no seminário: uns tantos pares de cuecas, de camisolas, de calças e
muito mais.... Até roupa de cama o miúdo terá que levar.
- Como vês, não é nada fácil!
Minha mãe quando chegou a casa disse-me:
- Padre não serás mais, isso é assunto de ricos!
O meu colega de procissão, o António Mota, esse conseguiu!
Os pais do Mota, embora não fossem donos da terra, eram lavradores
remediados.
Deram-nos muitas vezes de comer; por isso, tinham o suficiente para comprar
o dito enxoval, que o filho levara para o seminário.
Um dia o menino Mota despediu-se dos seus colegas e partiu para Porto.
No final do ano lectivo, ao terminar a terceira classe, veio dar-me um
abraço e disse:
- Adeus amigo, vou para o seminário. Vou estudar para padre.
Acabaram as procissões. Desfiz o andor que tinha construído; levei a imagem
da Senhora para casa e não voltei ao faz de conta que era padre!..
Meu pai, um dia chegou a casa e disse para minha mãe:
- Já ando cansado destas viagens do Porto para Penafiel e vice-versa!
Uma vez que temos três filhos no Porto, vamos começar a arranjar maneira de
mudar tudo para perto do meu trabalho!
Ao ouvir aquela conversa saltei de alegria..
Vai concretizar-se o meu grande sonho! Vou viver para a grande cidade!
Mas a minha aldeia!?
Dizem que as cidades têm muita luz... Então já não vou assustar mais as
raparigas nas noites escuras!
Gosto tanto de as ver correr assustadas à noite, quando regressam a casa das
novenas!
Arranjo uma cabaça, que colho nos campos vizinhos; retiro-lhe o miolo,
através de uma abertura feita longitudinalmente, cortada em jeito de tampa;
do lado contrário faço cortes que levem ao desenho duma caveira; na boca
espeto palitos que pareçam dentes.
Depois de dado o aspecto de caveira, meto-lhe uma vela de cera que arranjei
na igreja. Instalo a obra num silvado escuro, junto ao caminho, por onde
devem passar as raparigas.
Quando estão próximas acendo a vela e escondo-me.
Parece um fantasma que aterroriza quem passa desprevenido.
Correm a grande velocidade. Só param em casa !
Divirto-me bastante com esta brincadeira! Quando for para a cidade
iluminada, tudo isto se acaba!
Minha mãe recebeu uma carta do meu pai que dizia: "mulher esta semana não
posso ir a casa, prepara todos os nossos haveres; na próxima semana levo uma
camioneta para fazer a muda. Vem tudo para o Porto."
Eu tinha acabado de fazer a terceira classe e a comunhão solene.
Na festa de S. Salvador fizera um grande discurso. Não fui para o seminário
mas fui o melhor da catequese para a comunhão solene.
O senhor Abade disse: "o melhor aluno da catequese vai fazer um discurso,
durante a cerimónia da comunhão solene, sobre a vida de S. Tarcísio."
Esforcei-me e fui o melhor!
Como prémio o senhor abade deu-me duas folhas A4 para decorar complemente.
No dia da cerimónia, vestido com um fato de fazenda e calçado pela primeira
vez com uns sapatos, tudo oferecido pelos meus padrinhos de batismo; subi
para uma cadeira e contei toda a história que me haviam obrigado a decorar.
Que bem fala o rapaz! Ouvi alguém que comentava enquanto me dirigia para o
lugar.
Aquela procissão, a valer, na festa de S. Salvador foi a festa da minha
despedida à freguesia de Novelas; ao rio Sousa, aos campos verdes de
cereais, aos pomares onde saciava a minha fome, à bicharada que eu
alimentava com o meu trabalho, à Dona Idalina com o seu quintal à espera da
mão-de-obra infantil e os seus tachos para eu rapar, à festa do cordeirinho,
às minhas paixões de infância. Enfim, à minha aldeia!
Cheguei ao Porto.
Meu pai não tinha casa que desse para albergar quatro pessoas.
Vivia num quarto onde dormia e cozinhava.
Era neste quarto onde minha mãe passava os dias quando vinha para esta
cidade fazer o tratamento à barriga.
Embora houvesse o desejo de meu pai acabar com as viagens para Novelas,
todavia não tinha condições, em Rio Tinto para receber a família.
Valeu-se de sua irmã para remediar naqueles próximos dias até que estudasse
melhor solução.
Minha tia deitou-nos juntamente com minhas primas.
Mas a situação não era nada agradável para minha tia, apesar da nossa
inocência.
Duas raparigas, de onze e oito anos respetivamente, e dois rapazes dez e
oito anos, deitados nas mesma cama, não era nada confortável.
Apesar de deitados os rapazes virados para os pés e raparigas viradas para a
cabeceira, é sempre uma situação desagradável que exige melhor e rápida
solução.
Minha mãe procurou junto duma família amiga ajuda. Foi então que arranjou
uma cave onde o seu proprietário fazia arrecadação.
Passamos então a dormir naquela cave horrorosa, com um cheiro insuportável a
mofo.
Fomos integrados na comunidade local, Circunvalação/S. Roque da Lameira e
passamos a ir às aulas na escola do Bairro de S. Roque.
À noite, bem cedo, quase ao sol-pôr tínhamos que descer as escadas de
madeira para aquela cave mal cheirosa e fazer companhia aos ratos.
Tanta vezes sonhei com a grande cidade, na esperança de melhor vida, com
mais conforto e comida e afinal,... Ah! que saudades eu tenho da minha
aldeia!
Que lindo era o meu quarto dividido por cortinados de chita às flores!
- Mãe, acho que estou a ficar doente, devido à falta de oxigénio durante a
noite.
O alçapão que dá para a cave está fechado durante o dia, só se abre à noite
quando lá chegamos. Cheira tanto a podre!
- Está bem filho, aguenta mais algum tempo, estamos à espera de uma casa
que prometeram ao teu pai.
Passados mais alguns meses finalmente a situação melhorou, a casa prometida
foi dada devoluta e nós fizemos a muda.
É uma cave não tanto malcheirosa como a arrecadação onde temos dormido.
Esta cave tem divisões com tabuinhas que até parece a casa da mariquinhas!
Mas tem porta com entrada de luz natural. Assim, já areja durante o
dia!
Minha mãe trabalhava agora na atividade doméstica, ali mesmo junto à porta
em casa de pasto.
A vida parece que está a melhorar. Sobra muita comida nos restaurantes que
fazem abundância na minha família.
Acabada a instrução primária, feita a quarta classe, meu pai disse-me: “quem
quer comer tem que trabalhar”
Com onze anos, peguei no jornal diário, desfolhei as páginas dos anúncios, e
procurei emprego.
Chegou finalmente a hora de ser marçano, como havia sonhado em dias de
miséria na minha aldeia.
Agora na mercearia vou ter sempre comida à descrição.
Chamei meu pai à presença dos meus patrões para acertar o preço do meu
trabalho. Meu pai disse: "vistam o rapaz e deem-lhe de comer e não precisam
de pagar mais nada.”
Nunca mais tive privações na alimentação mas agravara-se a exploração do
trabalho infantil.
Na minha aldeia trabalhava para meu sustento. Na grande cidade começara a
verdadeira exploração.
Na minha aldeia ajudava nas tarefas do campo, na alimentação da bicharada
doméstica no contacto direto com a natureza.
Aqui não há natureza nem naturalidade. Tal como dizia a Dna Idalina, quando
não arranjava outra explicação, “isto é um
mistério!”
Que força tem uma criança para desvendar o mistério da sua pobreza?!
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Ariovaldo Cavarzan
Campinas (SP)
Pipas na parede
Ariovaldo Cavarzan
Eram de diversos tamanhos e variados matizes de verde, azul, amarelo e vermelho, farfalhando ao sopro da brisa fresca da manhã, penduradas em pequenos pregos fincados na parede, ao lado do espelho.
Eram rabicós, ou com longas caudas e rabichos laterais, para maior equilíbrio, quando içadas ao céu.
As etapas de criação iam do recorte do papel manteiga, ao afilamento das varetas de bambu e sua fixação, com pedacinhos de papel untados em cola de farinha, eis que quase nunca se podia contar com a goma arábica essencial.
A arte mais importante consistia em vergar no ângulo certo a vareta do meio, de forma que pudesse ficar um pouco arqueada, depois que a pipa estivesse toda colada, efeito que se conseguia com um discreto enrolar da linha nas extremidades da vareta, no exato ponto onde já se achava amarrada, ensejando a que, com suavidade e elegância, a pipa pudesse ser empinada.
Era com a maior alegria que se aguardava o dia seguinte, a ser vivenciado entre meninos de pés descalços, calças puídas e bufantes, sustidas em suspensórios que se cruzavam nas costas, no melhor estilo pinto calçudo.
A simples contemplação das pipas, na parede da casa, constituia ingrediente infalível ao bom sono da noite, povoado de sonhos que enfeitavam o amanhã.
Outra criação encantada era a maquininha, espécie de carretel esculpido em tabuinhas de madeira, encaixadas em forma de cruz e trespassadas por grosso arame a lhes servir de manivela, tudo apoiado em pequenas ripas de madeira, dispostas em sustentações laterais e em base retangular.
A linha dez ainda não conhecia a maldade do cerol e o dia seguinte já se prenunciava com nova e inesquecível competição, após o café preto e a fatia de pão, para ver quem empinava mais alto a pipa, façanha às vezes somente atestada pelo teor da umidade trazida de volta por aquelas recolhidas de seus passeios às cercanias das nuvens, eis que tinham por limite apenas o céu.
Vez ou outra, a barriga da pipa era o destino de bilhetinhos, que subiam saracoteantes pela linha, levando registros de sonhos de meninos.
Sempre que pendurava pipas na parede da casa, o filho do Patriarca fazia transcender sua imagem, de caprichoso artesão e pai amoroso de filhos do seu coração, a quem ensinava segredos de pipas, linhas, bilhetinhos, maquininhas e colas de farinha.
Importante era não deixar a pipa dar cabeçadas, pegar carona em ventanias, forçar muito para cima, inclinar-se para baixo, perder altitude, ou mesmo projetar-se, em parafuso, de encontro ao chão.
A linha tinha que ser presa a um ponto certo da barriga, um pouquinho acima do meio, feito situações de lida que nos fazem equilibrar entre o partir e o ficar.
Do chão do terreiro, era solta ou recolhida a linha mensageira, em tenteios manuais e manobras de carretilha, movida a manivela de arame.
Às vezes, rompia-se a linha, levando consigo sonhos e trabalho de quase uma noite inteira, umedecidos em lágrimas de meninos que já se ajustavam a choros de futuros sonhos de vida, sonhados na contemplação de paredes de muitos pregos, fincados para pendurar Volpis, Henrys, Aldemires e Ínos.
Mas quadros não são pipas e não farfalham ao sopro da brisa fresca das manhãs.
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Carmo Vasconcelos
Lisboa
AS VINDIMAS
(Excerto do meu Romance “O Vértice Luminoso da Pirâmide”)
Carmo Vasconcelos
Quando chegava Setembro, uns dias de férias na aldeia beirã eram obrigatórios. Era a época das vindimas! Toda a família – a da cidade e a da aldeia – se unia para colher os saborosos bagos de cor violeta e oiro. Partiam em bandos, manhãzinha, nos carros de bois ou a pé, para as vinhas mais próximas. Lenços na cabeça, chapéus de palha, a merenda, bilhas de água, garrafões de vinho da colheita anterior. Enquanto iam cortando os cachos, empunhando grandes tesouras de vindimar, homens e mulheres da aldeia, onde todos são primos e primas, ora cantavam ora trocavam graçolas picantes que os faziam desabar em gargalhadas cristalinas como as fontes que corriam perto. Por perto tinham também de estar: o naco de pão, a sardinha frita, as canecas de barro e os garrafões do precioso néctar que eles não dispensavam. A linguagem, Céus! Era de fazer corar as pedras da rua! Mas tão espontânea e natural, tão característica do seu habitat! E entre risos, cantigas e múltiplas goladas de vinho, iam-se curvando os dorsos e enchendo os cestos. À tardinha, “rodilhas” e cabelos ensopados do sumo violáceo, as mulheres carregavam à cabeça os cestos cheios, para os carros de bois que, por sua vez, os acartavam para as adegas. Para trás ficavam as vinhas nuas, decepadas.
Os sogros de Carmen tinham uma bela casa em comparação com as velhas e desconfortáveis construções locais, feitas de pedra dura e negra. A casa primitiva, herança de pais para filhos, tinha sido o berço de Rosalina, e lá enviuvara sua mãe Gertrudes, do pai desaparecido em França durante a 1ª Grande Guerra. Mantendo a traça original e a frontaria de pedra, Simão mandara-a remodelar, dando-lhe as comodidades interiores indispensáveis a quem estava habituado às casas da cidade. Era uma construção de dois andares, servidos por uma escada exterior, que sobrepunham as lojas e a adega. No rés-do-chão, tinha sido mantida a adega e as duas lojas onde se armazenavam batatas, cebolas e feijão. Aí, agora inúteis, as arcas de madeira onde noutro tempo se guardava o pão feito no forno da casa, a farinha de milho para as “papas de hortaliça” e os restantes víveres. No primeiro andar, onde outrora funcionava uma desmesurada cozinha velha sem água corrente nem luz, estava instalada uma sala de refeições com lareira, uma cozinha modernamente equipada e uma casa de banho, ambas servidas por água corrente saída directamente de um depósito instalado sobre o telhado, aonde a água subia puxada por um motor eléctrico que fazíamos funcionar accionando apenas um interruptor. E isto, porque a pedido de Simão, o vedor tinha localizado o veio de uma bela nascente e aí tinha sido aberto o “furo” onde se ligara o motor. No segundo andar da casa, três quartos de dormir e duas salas de estar. Estas, iluminadas por janelas de guilhotina, de vidrinhos quadriculados, davam-nos a amplidão imensa de vinhedos sem fim, amparados lá muito ao fundo pelas encostas da serra da Estrela.
E era na adega, na comprida mesa de madeira, que se servia ao fim do dia, a “ceia” para os trabalhadores – a carne de porco assada, o arroz de frango, o coelho à caçadora. Os jarros enchiam-se à boca dos tonéis que guardavam as reservas dos últimos anos. Quase todos os presentes eram aparentados à família por laços de sangue. A eles se juntavam Jorge e Carmen, Simão e Rosalina, a avó Gertrudes e sua irmã, a tia-avó Ana, que já tinha passado os noventa anos.
Carmen apreciava aquelas comidas fortes, aquele vinho quente, aquela comunicação humana, simples mas calorosa, transparente como o líquido rosado que escorria pelas gargantas. Finda a ceia, cantavam e dançavam à moda da região e ela acompanhava-os, misturava-se com eles, sentia-lhes de perto o cheiro a terra, suor e vinho. Carmen tinha uma saúde e uma alegria de “ferro”! Amava a Natureza e movia-se sem dificuldade naquele equilíbrio a que a obrigavam um pé na terra, o outro nas alturas... E aquele povo adorava-a!
E naquele povo, Carmen se detinha a pensar em momentos de reflexão. Pensava naquelas mulheres de trinta anos, de pele precocemente envelhecida pelo queimar de sóis e geadas, aparentando décadas maiores; naqueles pés descalços, calejados e gretados, naquelas mãos crestadas que arranhavam ao mais leve afago. Pensava em como seriam as suas noites, noites em que geravam filhos depois de irem buscar os seus homens à taberna, a cair de bêbedos, ameaçando-as de pancada, agressivos como cães selvagens. E pensava também nas crianças... Crianças alimentadas a “sopas de cavalo cansado” (sopas de pão em vinho), mal adoçadas com leve poeira de açúcar. Na mente de Carmen persiste ainda uma imagem nunca esquecida. Aquela manhã em que um bebé loiro, cuja sujidade e ranho no nariz não eram suficientes para minorar a sua beleza, quase morreu ao rolar pelas escadas do casebre em que morava, porque a ignorância lhe tinha “matado o bicho” com um copo de aguardente. Ainda não tinha completado três anos de idade!...
Na adega, o lagar ia ficando repleto com o produto dos cestos despejados. E era aí que começava uma outra faina: o pisar das uvas, pelos pés dos homens de calças arregaçadas e das mulheres de saias compridas e rodadas encurtadas com nós a meio das coxas. Num movimento contínuo e cadenciado espezinhavam bagos e engaço, rostos e corpos suados, as pernas roxas, o mosto escorrendo pela bica após os cachos esbagoados. Mais tarde... os tonéis cheios.
Tudo isto, além de novidade, era alimento precioso para a insaciável curiosidade de Carmen e, também, divertimento. Apesar da sua essência citadina, ela era uma “geminiana” típica e o seu signo astrológico de “ar”, dotara-a de uma tal capacidade de adaptação a lugares e gentes, situações e circunstâncias, que se alinhava sem esforço no ambiente que a rodeava. “Em Roma sê romano!” era (e continua a ser) o seu lema. Corrida a “cortina” da cidade, Carmen vindimava, cantava, dançava e ria com os primos e primas de seu marido, sem que ele levantasse a mínima objecção... Naquela aldeia, a Jorge, “taurino” de espírito fixo e pouco adaptável, não fazia falta a adaptabilidade de que carecia. Ali era o berço dos seus antepassados, dali não podia vir mal ao mundo... Então, sentia-se como peixe na água. Para ele, era o repouso do guerreiro! Para Carmen, tréguas às suas batalhas e angústias.
Findos os trabalhos vitícolas, sucediam-se as idas à vila, os passeios pelos arredores – Viseu, São Pedro do Sul, o Caramulo. Carmen enchia-se daquela beleza paisagística, da frescura daqueles verdes, deixando hibernar a sua sede de cultura e arte. “Um dia... talvez um dia...”, pensava ela. E na monotonia das longas tardes em que toda a aldeia dormia parecendo morrer para o mundo, Carmen cavalgava sonhos na montada imóvel do silêncio, estremecido apenas de quando em vez pelo suave murmúrio das fontes. Tecia poemas, galgava mundos, pintava oásis no seu deserto interior. Ferviam vulcões na sua quietude serena. Curiosamente, pouco lia, nada escrevia. Hoje, sabemos que estava erguendo, lenta e silenciosamente, pedra sobre pedra, o palácio das suas memórias.
Lisboa/Portugal
Este Romance encontra-se publicado por inteiro no
Sebo Literário do Portal CEN
Fim do 4º BLOCO