Trabalho e pesquisa de Carlos Leite Ribeiro
Formatação: Iara Melo
A Morte do Lidador passa-se em
Julho de 1170. O Lidador referido no
título é o cavaleiro Gonçalo Mendes
da Maia, 95 anos de idade e 80 de
luta. Ele e um pequeno grupo de
cavaleiros lutam contra os mouros e
ele é ferido. Em nova batalha contra
os mouros, que receberam reforços,
ele mata um dos líderes e morre;
quando um dos cavaleiros mata o
líder dos reforços, os mouros fogem.
Neste conto Alexandre Herculano
desafia a verossimilhança: quase
1000 soldados mouros fogem de
alquebrados 70 portugueses apenas
porque seu líder morreu.
Conhecido como «o Lidador», Gonçalo
Mendes da Maia era Irmão de Gonçalo o
Lidador e de Soeiro, era filho de Mendo
Soares e de Leodegunda Soares, a "Tainha",
da casa dos Baiões.
Nascido por volta de 1079 foi uma verdadeira
lenda viva de dedicação à pátria. A sua
imagem e a sua memória transmitem um enorme
incentivo à luta pelas causas justas de
todas as gerações.
A sua bravura e carácter forjaram grande
afinidade espiritual com D. Afonso
Henriques, Juntos, lutaram para formar um
reino independente, como o moço infante
teria aprendido de seu Pai, o Conde D.
Henrique. Primeiro contra sua mãe D. Teresa,
próxima dos castelhanos, depois contra
hegemonias religiosas, depois ainda contra
os infiéis, ao sul do País. Terá sido a
vontade férrea de Gonçalo e suas inúmeras e
épicas conquistas no campo de batalha que
acabaram por lhe granjear o cognome de «O
Lidador».
Tempos depois, quando o primeiro Rei já
estendia a sua missão de conquista às
planícies alentejanas, e os portugueses se
internavam pelos confins da “província de
Alcácer”, Gonçalo Mendes da Maia, verdadeiro
«adiantado» de Afonso Henriques, empunhava
pela última vez a sua espada e fazia a sua
última investida contra o inimigo, teria 95
anos de idade.
Uma narração do Nobiliário do conde D.
Pedro, apesar de cheia de temerosas
dificuldades e de não poucos absurdos, fê-lo
passar à imortalidade como protagonista de
uma célebre acção guerreira junto a Beja,
contra o rei Almoleimar. Era «a morte do
Lidador», fixada para a posteridade, entre
outros, por Herculano.
Morte Lidador - por Alexandre Herculano
(grafia portuguesa do século XIX)
— Pajens! Ou arreiem o meu ginete murzelo; e
vós dai-me o meu lorigão de malha de ferro e
a minha boa toledana. Senhores cavaleiros,
hole contam-se noventa e cinco anos que
recebi o batismo, oitenta que visto armas,
setenta que sou cavaleiro, e quero celebrar
tal dia fazendo entrada por terras da
frontaria dos mouros.
Isto dizia na sala de armas do castelo de
Beja Gonçalo Mendes da Maia, a quem, pelas
muitas batalhas que pelejara e por seu valor
indomável, chamavam Lidador. Afonso
Henriques, depois do infeliz sucesso de
Badajoz, e feitas pazes com el-rei Leão, o
nomeara fronteiro da cidade de Beja, de
pouco tempo conquistada aos mouros. Os
quatro Viegas, filhos do bom velho Egas
Moniz, estavam com êle, e outro muiots
cavaleiros afamados, entre os quais D. Ligel
de Flandres e Mem Moniz - que a festa de
vossos anos, Senhor Gonçalo Mendes, será
mais de mancebo cavaleiro que de capitão
encanecido e prudente. Deu-vos el-rei esta
frontaria de Beja para bem a haverdes de
guardar, e não sei se arriscado é sair hoje
à campanha, que dizem os escutas, chegados
ao romper d'alva, que o famose Almoleimar
correr por êstes arredores com dez vêzes
mais lanças do que tôdas as que estão
encostadas nos lanceiros desta sala de
armas.
— Voto a Cristo - atalhou o Lidador - que
não cria em que o senhor rei me houvesse
pôsto nesta tôrre de Beja para estar
assentado à lareira da chaminé, como velha
dona, a espreitar de quando em quando por
uma seteira se cavaleiros mouros vinham
correr até a barbacã, para lhes cerrar as
portas e ladrar-lhes do cimo da tôrre da
menagem, como usam os vilãos. Quem achar que
são duros de mais os arneses dos infiéis
pode ficar-se aqui.
— Bem dito! Bem dito! - exclamarem, dando
grandes risadas, os cavaleiros mancebos.
— Por minha boa espada! - gritou Men Moniz,
atirando o guante ferrado às lájeas do
pavimento - que mente pela gorja quem disser
que eu ficarei aqui, havendo dentro de dez
léguas em redor lide com mouros. Senhor
Gonçalo Mendes, podeis montar em vosso
ginete, e veremos qual das nossas lanças
bate primeior em adarga mourisca.
— A cavalo! A cavalo! - gritou outra vez a
chusma, com grande alarido.
Dali a pouco, ouvia-se o retumbar dos
sapatos de ferro de muitos cavaleiros
descendo os degraus de mármore da tôrre de
Beja e, passados alguns instantes, soava só
o tropear dos cavalos, atravessando a ponte
levadiça das fortificações exteriores que
davam para a banda da campanha por onde
costumava aparecer a mourisma.
Era um dia do mês de julho, duas horas
depois da alvorada, e tudo estava em grande
silêncio dentro da cêrca de Beja: batia o
sol nas pedras esbranquiçadas dos muros e
tôrres que a defendiam: ao longe, pelas
imensas compinas que avizinhavam o têso
sôbre que a povoação está assentada, viam-se
ondear as searas maduras, cultivadas por
mãos de agarenos para seus novos senhores
cristãos. Regados por lágrimas de escravos
tinham sido êsses campos, quando formoso dia
de inverno os sulcou o ferro do arado; por
lágrimas de servos seriam outra vez
umedecidos, quando, no mês de julho, a
paveia, cercada pela fouce, pendesse sôbre a
mão do ceifeiro: chôro de amargura havia aí,
como, cinco séculos antes, o houvera: então
de cristãos conquistados, hoje de mouros
vencidos. A cruz hateava-se outra vez sôbre
o crescente quebrado: os coruchéus das
mesquitas convertiam-se em campanários de
sés, e a voz do almuadem trocava-se por
toada de sinos, que chamavam à oração
entendida por Deus.
Era esta a resposta dada pela raça goda aos
filhos d'África e do Oriente, que diziam,
mostrando os alfanges: - "é nossa a terra de
Espanha". - O dito árabe foi desmentido; mas
a resposta gastou oito séculos a
escrever-se. Pelaio entalhou com a espada a
primeira palavra dela nos cerros das
Astúrias; a última gravaram-na Fernando e
Isabel, com os pelouros de suas bambardes,
nos panos das muralhas da formosa Granada: e
esta escritura, estampada em alcantis de
ontanhas, em campos de batalha, nos portais
e tôrres dos templos, nos bancos dos muros
das cidades e castelos, acrescentou no fim a
mão da Providência - "assim para todo o
sempre!"
Nesta luta de vinte gera;'oes andavam
lidando as gentes do Alentejo. O servo mouro
olhava todos os dias para o horizonte, onde
se enxergavam as serranias do Algarve: de lá
esperava êle salvação ou, ao emnos, vengança;
ao menos, um dia de combate e corpos de
cristãos estirados na veiga para pasto dos
açôres bravios. A vista do sangue
enxugava-lhes por algumas horas as lágrimas,
embora as aves de rapina tivessem, também,
abundante ceva de cadáveres de seus irmãos!
E êste ameno dia de julho devia ser um
dêsses dias por que suspirava o servo
ismaelita.
Almoleimar descera com os seus cavaleiros às
campinas de Beja. Pelas horas mortas da
noite, viam-se as almenaras das suas talaias
nos píncaros das serras remotas, semelhantes
às luzinhas que em descampados e tremedais
acendem as bruxas em noites de seus
folguedos: bem longe estavam as almenaras,
mas bem perto sentiam os escutas o
resfolegar e o tropear de cavalos, e o
ranger das fôlhas sêcas, e o tinir a espaços
de alfange batendo em ferro de caneleira ou
de coxote. Ao romper d'alva, os cavaleiros
do Lidador saíam mais de dois tiros de besta
além das muralhas de Beja; tudo porém estava
em silêncio, e só, aqui e ali, as searas
calcadas davem rebate de que por aquêles
sítios tinham vagueados almogaures mouros,
como o leão do deserto rodeia, pelo quarto
de modôrra, as habitações dos pastôres além
das encostas do Atlas.
No dia em que Gonçalo Mendes da Maia, o
velho fronteiro de Beja, cumpria os noventa
e cinco anos, ninguém saíra, pelo arrebol da
manhã, a correr o campo; e, todavia, nunca
tão de perto chegara Almoleimar; porque uma
frecha fôra pregada a mão em um grosso
sovereiro que sombreava uma fonte a pouco
mais de tiro de funda dos muros do castelo.
Era que nesse dia deviam ir mais longe os
cavaleiros cristãos: Lidador pedira aos
pajens o seu lorigão de malha de ferro e a
sua boa toledana.
Trinta fidalgos, flor da cavalaria, corriam
à rédea sôlta pelas campinas de Beja;
trinta, não mais, eram êles; mas orçavam por
trezentos os homens d'armas, escudeiros e
pajens que os acompanhavam. Entre todos
avultava em robustez e grandeza de membros o
Lidador, cujas barbas brancas lhe ondeavam,
como flocos de neve, sôbre o peitoral da
cota d'armas, e o terrível Lourenço Viegas,
a quem, pelos espantosos golpes da sua
espada, chamavam o Espadeiro. Eram formoso
espetáculo o esvoaçar dos balsões e signas,
fora de suas fundas e soltos ao vento, o
cintilar das cervillheiras, as côres
variegadas das cotas, e as ondas de pó que
se alevantavam debaixo dos pés dos ginetes,
como se alevanta o bulcão de Deus, varrendo
a face de campina ressequida, em tarde
ardente de verão.
Ao largo, muito ao largo, dos muros de Beja
cai a atrevida cavalgada em demanda dos
mouros; e no horizonte não se vêem senão os
topos pardo-azulados das serras do Algarve,
que parece fugirem tanto quanto os
cavaleiros caminham. Nem um pendão mourisco,
nem um albornoz branco alvejam ao longe
sôbre um cavalo murzelo. Os corredores
cristãos volteiam na frente da linha dos
cavaleiros, correm, cruzam para um e outro
lado, embrenham-se nos matos e transpõem-nos
em breve; entram pelos canaviais dos
ribeiros; aparecem, somem-se, tornam a sair
ao claro; mas, no meio de tal lidar, apenas
se ouvem o trote campassado dos ginetes e o
grito monótono da cigarra, pousada nos
raminhos da giesteira.
A terra que pisam é já dos mouros; é já além
da frontaria. Se olhos de cavaleiros
portuguêses soubessem olhar para trás, indo
em som de guerra, os que para trás de si os
volvessem a custo enxergariam Beja. Bastos
pinhais começavam já a cobrir mais crêspo
território, cujos outirinhos, aqui e ali, se
alteavam suaves, como seio de virgem em viço
de mocidade. Pelas faces tostadas dos
cavaleiros cobertos de pó corria o suor em
bagas, e os ginetes alagavam de escuma as
rêdes de ferro acaireladas d'ouro que so
defendiam. A um sinal do Lidador, a
cavalgada parou; era necessário repousar,
que o sol ia no zênite e abrasava a terra;
descavalgaram todos à sombra de um azinhal
e, sem desenfrear os cavalos, deixaram-nos
pascer alguma relva que crescia nas bordas
de um arroio vizinho.
Tinha passado meia hora: por mandado do
velho fronteiro de Beja um almogávar montou
a cavalo e aproximou-se à rédea sôlta de uma
selva extensa que corria à mão direita:
pouco, porém, correu; uma frecha despedida
dos bosques sibilou no ar: o almogávar
gritou por Jesus: a frecha tinha-se embebido
ao lado: o cavalo parou de repente, e êle,
erguendo os braços ao ar, com as mãos
abertas, caiu de bruços, tombando para o
chão, e o ginete partiu desenfreado através
das veigas e desapareceu na selva. O
almogávar dormia o último sono dos valentes
em terra de inimigos, e os cavaleiros da
frontaria de Beja viram o seu transe do
repousar eterno.
— A cavalo! A cavalo! - bradou a uma voz
tôda a lustrosa companhia do Lidador; e o
tinido dos guantes ferrados, batendo na
cobertura de malha dos ginetes, soou
uníssono, quando todos os cavaleiros
cavalgaram de um pulo; e os ginetes
rincharam de prazer, como aspirando os
combates.
Grita medonha troou ao mesmo tempo, além do
pinhal da direita. - "Alá! Almoleimar!" -
era o que dizia a grita.
Enfileirados em extensa linha, os cavaleiros
árabes saíram à rédea sôlta de trás da
escura selva que os encobria: o seu número
excedia em conco vêzes o dos soldados da
cruz: as suas armaduras lisas e polidas
contrastavam com a rudeza das dos cristãos,
apenas defendidos por pesadas cervilheiras
de ferro e por grossas cotas de malha do
mesmo metal: mas as lanças dêstes eram mais
robustas, e as suas espadas mais volumosas
do que as cimitarras mouriscas. A rudeza e a
fôrça da raça gótico-romana ia, ainda mais
uma vez, provar-se com a destreza e com a
perícia árabes.
Trinta fidalgos, flor da cavallaria corriam
à rédea solta pelas campinas de Béja;
trinta, não mais, eram elles; mas orçavam
por trezentos homens d´armas, escudeiros e
pagens que os acompanhavam. Entre todos
avultava em robustez e grandeza de membros o
Lidador, cujas barbas brancas lhe ondeavam
como frocos de neve sobre o peitoral da cota
d´armas, e o terrível Lourenço Viegas, a
quem pelos espantosos golpes da sua espada
chamavam o Espadeiro. Era formoso
espectaculo o esvoaçar dos balsões e signas,
fôra de suas fundas, e soltos ao vento, o
scintillar das cervilheiras, as cores
variegadas das cotas, e as ondas de pó, que
se alevantavam debaixo dos pés dos ginetes,
como as alevanta o bulcão de Deus, varrendo
a face da campina resequida, em tarde
ardente de verão.
Ao largo, muito ao largo, dos muros de Béja
vai a atrevida cavalgada em demanda dos
mouros; e no horizonte não se vêem os topos
pardo-azulados das serras do Algarve, que
parece fugirem tanto quanto os cavalleiros
caminham. Nem um pendão mourisco, nem um
albornoz branco alveja ao longe sobre um
cavallo murzello. Os corredores christãos
volteiam na frente da linha dos cavalleiros,
correm, cruzam para um e outro lado,
embrenham-se nos matos, e transpõem-nos em
breve; entram pelos cannaviaes dos ribeiros;
apparecem, somem-se, tornam a sair ao claro:
mas no meio de tal lidar apenas se ouve o
trote compassado dos ginetes, e o grito
monótono da cigarra, pousada nos raminhos da
giesteira.
A terra que pisam já é de mouros; é já além
da fronteira. Se os olhos de cavalleiros
portuguezes soubessem olhar para trás indo
em som de guerra, os que para trás de si os
volvessem a custo enxergariam Bejá. Bastos
pinhais começavam já a cobrir mais ondeado
território, cujos outerinhos aqui e alli se
alteavam suaves como seio de virgem em viço
de mocidade. Pelas faces tostadas dos
cavalleiros cobertos de pó corria o suor em
bagas, e os ginetes alagavam de escuma as
redes de ferro acaireladas de ouro, que os
defendiam. A um signal do Lidador a
cavalgada parou; era necessário repousar,
que o sol ia no zenith e abrazava a terra:
descavalgaram todos à sombra de um azinhal,
e sem desenfrear os ginetes deixaram-nos
pascer alguma relva, que crescia nas bordas
de um arroio vizinho.
Tinha passado meia hora: por mandado do
velho Fronteiro de Béja um almogavar montou
a cavallo, e aproximou-se à rédea solta de
uma selva extensa, que corria à mão direita;
pouco, porém, correu; uma frecha despedida
dos bosques sibilou no ar: o almogavar
gritou por Jesus: a frecha tinha-se-lhe
embebido no lado: o cavallo parou de
repente, e elle, erguendo os braços ao ar
com as mãos abertas, cahiu de bruços,
tombando para o chão, e o ginete partiu
desenfreado através das viegas, e
desappareceu na selva. O almogavar dormia o
ultimo sonno dos valentes em terra de
inimigos, e os cavalleiros da fronteira de
Béja viram o seu trance do repousar eterno.
"A cavallo! A cavallo! — bradou a uma voz
toda lustrosa a companhia do Lidador; e o
tinido dos guantes ferrados, batendo na
cobertura de malha dos ginetes, soou
unisono, quando todos os cavalleiros
cavalgaram de um pulo: e os ginetes
rincharam de prazer, como aspirando os
combates.
Uma grita medonha troou ao mesmo tempo além
do pinhal da direita. — "Allah! Almoleimar!
— era o que dizia a grita.
Enfileirados em uma longa linha, os
cavalleiros árabes saíram à rédea solta de
trás da escura selva que os encubria: o seu
numero excedia cinco vezes o dos soldados da
cruz: as suas armaduras lisas e polidas
contrastavam com a rudeza das dos christãos,
apenas defendidas por pesadas cervilheiras
de ferro, e por grossas cotas de malha do
mesmo metal: mas as lanças destes eram mais
robustas, e as suas espadas mais volumosas
do que as cimitarras mouriscas. A rudeza e a
força da raça gothico-romana iam ainda mais
uma vez provar-se com a destreza e com a
perícia árabes.
Como longa fita de muitas côres, recamada de
fios d'ouro e refletindo mil acidentes de
luz, a extensa e profunda linha dos
cavaleiros mouros sobressaía na veiga entre
as searas pálidas que cobriam o campo.
Defronte dêles, os trinta cavaleiros
portuguêses, com trezentos homens d'armas,
pajens e escudeiros, cobertos dos seus
escuros envoltórios e lanças em riste,
esperavam o brado de acometer. Quem visse
aquêle punhado de cristãos, diante da cópia
d'infiéis que os esperavam, diria que, não
com brios de cavaleiros, mas com fervor de
mártires, se ofereciam a desesperado transe.
Porém, não pensava assim Almoleimar, nem os
seus soldados, que bem conheciam a têmpera
das espadas e lanças portuguêses e a rijeza
dos braços que as meneavam. De um contra dez
devia ser o iminente combte; mas, se havia
aí algum coração que batesse descompassado,
algumas faces descoradas, não era entre os
companheiros do Lidador, que tal coração
batia ou que tais faces descoravam.
Pouco a pouco, a planura que separava as
duas hostes tinha-se embbido debaixo dos pés
dos cavalos, como no tórculo se embebe a
fôlha de papel saindo para o outro lado
convertida em estampa primorosa. As lanças
iam feitas: o Lidador bradara Santiago, e o
nome de Alá soara em um só grito por tôda a
fileira mourisca.
Encontraram-se! Duas muralhas fronteiras,
balouçadas por violento terremoto,
desabando, não fariam mais ruído, ao bater
em pedaços uma contra a outra, do que êste
recontro de infiéis e cristãos. As lanças,
topando em cheio nos escudos, tiravam dêles
um som profundo, que se misturava com o
estalar das que voavam despedaçadas. Do
primeiro encontro, muitos cavaleiros vieram
ao chão: um mouro robusto foi derribado por
Mem Moniz, que lhe falsou as armas e
trapassou o peito com o ferro de sua grossa
lança. Deixando-a depois cair, o velho
desembainhou a espada e gritou ao Lidador,
que perto dêle estava:
— Senhor Gonçalo Mendes, ali tendes, no
peito daquele perro, aberto a seteira por
onde eu, velha dona assentada à lareira,
costumo vigiar a chegada de inimigos, para
lhes ladrar, como alcatéia de vilãos, do
cimo da tôrre de menagem.
O Lidador não lhe pôde responder. Quando Mem
Moniz proferia as últimas palavras, êle
topara em cheio com o terrível Almoleimar.
As lanças dos dois contendores haviam-se
feito pedaços, e o alfanje do mouro
cruzou-lhe com a toledana do fronteiro de
Beja.
Como duas tôrres de sete séculos, cujo
cimento o tempo petrificou, os dois capitães
inimigos estavam um defronte do outro,
firmes em seus possantes cavalos: as faces
pálidas e enrugadas do Lidador tinham
ganhado a imobilidade que dá, nos grandes
perigos, o hábito de os afrontar: mas no
rosto de Almoleimar divisavam-se todos os
sinais de um valor colérico e impetuoso.
Cerrando os dentes com fôrça, descarregou um
golpe tremendo sôbre o seu adversário: o
Lidador recebeu-o no escudo, onde o alfanje
se embebeu inteiro, e procurou ferir
Almoleimar entre o fraldão e a couraça; mas
a pancada falhou, e a espada desceu,
faiscando, pelo coxote do mouro, que já
desencravara o alfanje. Tal foi a primeira
saudação dos dois cavaleiros inimigos.
— Brando é o teu escudo, velho infiel; mais
bem temperado é o metal do meu arnês.
Veremos agora se na tua touca de ferro se
embotam os fios dêste alfanje.
Isto disse Almoleimar, dando uma risada, e a
cimitarra bateu no fundo do vale penedo
desconforme desprendido do píncaro da
montanha.
O fronteiro vacilou, deu um gemido, e os
braços ficaram-lhe pendentes: a espada
ter-lhe-ia caído no chão, se não estivesse
prêsa ao punho do cavaleiro por uma cadeia
de ferro. O ginete, sentindo as rédeas
frouxas, fugiu um bom pedaço pela campanha,
a todo o galope.
Mas o Lidador tornou a si: uma forte
sofreada avisou o ginete de que seu senhor
não morrera. À rédea sôlta, lá volta o
fronteiro de Beja; escorre-lhe o sangue,
envolto em escuma, pelos cantos da bôca:
traz os olhos torvos de ira: ai de
Almoleimar!
Semelhante ao vento de Deus, Gonçalo Mendes
da Maia passou por entre os cristãos e
mouros: os dois contendores viram-se, e,
como o leão e o tigre, correram um para o
outro. As espadas reluziam no ar; mas o
golpe do Lidador era simulado, e o ferro
mudando de movimento no ar, foi bater de
ponta no gorjal de Almoleimar, que cedeu à
violenta estocada; e o dangue, saindo às
golfadas, cortou a última maldição do
agareno.
Mas a espada dêste também não errara o
golpe: vibrada na ânsia, colhera pelo ombro
esquerdo o velho fronteiro e, rompendo a
grossa malha do lorigão, penetrara na carne
até o osso. Ainda mais uma vez a mesma terra
bebeu nobre sangue gôdo misturado com sangue
árabe.
— Perro maldito! Sabe lá no inferno que a
espada de Gonçalo Mendes é mais rija que a
sua cervilheira.
E, dizendo isto, o Lidador caiu amortecido;
um dos seus homens de armas voou a
socorrê-lo; mas o último golpe d'Almoleimar
fôra o brado da sepultura para o fronteiro
de Beja: os ossos do ombro do bom velho
estavam como triturados, e as carnes
rasgadas pendiam-lhe para um e para outro
lado envôltas nas malhas descosidas do
lorigão.
Entretanto os mouros iam de vencida: Mem
Moniz, D. Ligel, Godinho Fafes, Gomes Mendes
Gedeão e os outros cavaleiros daquela
lustrosa companhia tinham praticado
maravilhosas façanhas. Mas, entre todos,
tornava-se notável o Espadeiro. Com um
pesado montante nas mãos, coberto de pó,
suor e sangue, pelejava a pé; que o seu
agigantado ginete caíra morto de muitos
tiros de frechas lançadas. De roda dêle não
se viam senão cadáveres e membros
destroncados, por cima dos quais trepavam,
para logo recuarem ou baquearem no chão, os
mais ousados cavaleiros árabes. Como um
promontório de escarpados alcantis, Lourenço
Viegas estava imóvel e sabranceiro n meio do
embate daquelas vagas de pelejadores que
vinham desfazer-se contra o terrível
montante do filho de Egas Moniz.
Quando o fronteiro caiu, o grosso dos mouros
fugia já para além do pinhal; mas os mais
valentes pelejavam ainda à roda do seu
moribendo. O Lidador êsse tinha sido pôsto
em cima de umas andas, feitas de troncos e
franças de árvores, e quatro escudeiros, que
restavam vivos dos dez que consigo trouxera,
o haviam transportado para a saga da
cavalgada. O tinir dos golpes era já muito
frouxo e sumiam-se no som dos gemidos,
pragas e lamentos que soltavam os feridos
derramados pela veiga ensangüentada. Se os
mouros, porém, levavam, fugindo, vergonha e
dano, a vitória não saíra barata aos
portuguêses. Viam perigosamente ferido o seu
velho capitão, e tinham perdido alguns
cavaleiros de conta e a maior parte dos
homens de armas, escudeiros e pajens.
Foi neste ponto que, ao longe, se viu erguer
uma nuvem de pó, que voava rápida para o
lugar da peleja. Mais perto, aquêle
turbilhão rareou vomitando do seio basto
esquadrão de árabes. Os mouros que fugiam
deram volta e gritaram:
A Ali-Abu-Hassan! Só Deus é Deus, e Maomé o
seu profeta!
Era, com efeito, Ali-Abu-Hassan, rei de
Tânger, que estava com seu exército sôbre
Mertola e que viera com mil cavaleiros em
socorro de Almoleimar.
Cansados de largo combater, reduzidos a
menos de metade em número e cobertos de
feridas, os cavaleiros de Cristo invocaram o
seu nome e fizeram o sinal da cruz. O
Lidador perguntou com voz fraca a um pajem,
que estava ao pé das andas, que nova revolta
era aquela.
— Os mouros foram socorridos por um grosso
esquadrão - respondeu tristemente o pajem. -
A Virgem Maria nos acuda, que os senhores
cavaleiros parece recuarem já.
O Lidador cerrou os dentes com fôrça e levou
a mão à cinta. Buscava a sua boa toledana.
— Pajem, quero um cavalo. Onde está a minha
espada?
— Aqui a tenho, senhor. Mas estais tão
quebrado de fôrças!...
— Silêncio! A espada, e um bom ginete.
O pajem deu-lhe a espada e foi pelo campo
buscar um ginete, dos muitos que andavam já
sem dono. Quando voltou com êle, o Lidador,
pálido e coberto de sangue, estava em pé e
dizia, falando consigo:
— Por Santiago que não morrerei como vilão
da beetria onde entrou cavalgada de mouros!
E o pajem ajudou-o a montar o cavalo.
Ei-lo o velho fronteiro de Beja! Semelhava
um espectro erguido de pouco em campo de
finados: debaixo de muitos panos que lhe
envolviam o braço e o ombro esquerdo levava
a própria morte; nos fios da espada, que a
mão direita mal sustinha, levava,
porventura, ainda a morte de muitos outros!
Para onde mais travada e acesa andava a
peleja se encaminhou o Lidador. Os cristãos
afrouxavam diante daquela multidão de
infiéis, entre os quais mal se enxergavam as
cruzes vermelhas pintadas nas cimeiras dos
portuguêses. Dois cavaleiros, porém, com
vulto feroz, os olhos turvados de cólera, e
as armaduras crivadas de golpes, sustinham
todo o pêso da batalha. Eram êstes o
Espadeiro e Mem Moniz. Quando o fronteiro
assim os viu oferecidos a certa morte
algumas lágrimas lhe caíram pelas faces e,
esporeando o ginete, com a espada erguida,
abriu caminho por entre infiéis e cristãos e
chegou aonde os dois, cada um com seu
montante nas mãos, faziam larga praça no
meio dos inimigos.
— Bem-vindo, Gonçalo Mendes! - disse Mem
Moniz. - Quiseste assistir conosco a esta
festa de morte? Vergonha era, de feiot, que
estivesses fazendo teu passamento, com todo
o repouso, deitado lá na saga, enquanto eu,
velha dona, espreito os mouros com meu
sobrinho junto desta lareira...
— Implacáveis sois vós outros, cavaleiros de
Riba-Douro, - respondeu o Lidador em voz
sumida- que não perdoais uma palavra sem
malícia. Lembra-te, Mem Moniz, de que bem
depressa estaremos todos diante do justo
juiz.
Velho sois; bem o mostrais! - acudiu o
Espadeiro. - Não cureis de vãs porfias, mas
de morrer como valentes. Demos nestes
perros, que não ousam chegar-se a nós.
Avante, e Santiago!
— Avante, e Santiago! - responderam Gonçalo
Mendes e Mam Moniz: e os três cavaleiros
deram rijamente nos mouros.
Quem hoje ouvir recontar os bravos golpes
que no mês de julho de 1170 se deram na
veiga da fronteira de Beja, notá-los-á de
fábulas sonhadas; porque nós, homens
corruptos e enfraquecidos por ócios e
prazeres de vida afeminada, medimos por
nossos ânimos e fôrças, a fôrça e o ânimo
dos bons cavaleiros portuguêses do sécuo
XII; e todavia, êsses golpes ainda soam,
através das eras, nas tradições e crônicas,
tanto cristãs como agarenas.
Depois de deixar assinadas muitas armaduras
mouriscas, o Lidador vibrara pela última vez
a espada e abrira o elmo e o crânio de um
cavaleiro árabe. O violento abalo que
experimentou lhe fêz rebentar em torrentes o
sangue da ferida que recebera das mãos de
Almoleimar e, cerrando os olhos, caiu morto
ao pé do Espadeiro, de Mem Moniz e de Afonso
Hermingues de Baião, que com êles se
ajuntara. Repousou, finalmente, Gonçalo
Mendes da Maia de oitenta anos de combates!
Já a êste tempo cristãos e mouros se haviam
descido dos cavalos e pelejavam a pé.
Traziam-se assim à vontade, e recrescia a
crueza da batalha. Entre os cavaleiros de
Beja espalhou-se logo a nova da morte do seu
capitão, e não houve ali olhos que ficasem
enxutos. O despeito do próprio Mem Moniz deu
lugar à dor, e o velho de Riba-Douro
exclamou entre soluços:
— Gonçalo Mendes, és morto! Nós todos
quantos aqui somos, não tardará que te
sigamos; mas ao menso, nem tu, nem nós
ficaremos sem vingança!
— Vingança! - bradou o Espadeiro com voz
rouca, e rangendo os dentes. Deu alguns
passos e viu-se o seu montante reluzir, como
uma centelha em céu proceloso.
Era Ali-Abu-Hassan: Lourenço Viegas o
conhecera pelo timbre real do morrião.
Se já vivestes vida de combates em cidade
sitiada, tereis visto muitas vêzes um vulto
negro que em linha diagonal corta os ares,
sussurrando e gemendo. Rápido, como um
pensamento criminoso em alma honesta, êle
chegou das nuvens à terra, antes que vos
lembrásseis do seu nome. Se encontrou na
passagem ângulo de tôrre secular, o mármore
converte-se em pó; se atravessou, pelas
ramas de árvore basta e frondosa, a fôlha
mais virente e frágil, o raminho mais tenro
é dividido, como se, com cutelo sutilíssimo,
mão de homem lhe houvera cerceado
atentamente uma parte; e, todavia, não é um
ferro açacalado: é um globo de ferro; é a
bomba, que passa, como a maldição de Deus.
Depois, debaixo dela, o chão achata-se e a
terra espadana aos ares; e, como agitada,
despedaçada por cem mil demônios, aquela
máquina do inferno estoura, e de roda dela
há um zumbir sinistro: são mil fragmentos;
são mil mortes que se derramam ao longe.
Então faz-se um grande silêncio vêem-se
corpos destroncados, poças de sangue,
arcabuzes quebrados, e ouvem-se o gemer dos
feridos e o estertor dos moribundos.
Tal desceu o montante do Espadeiro, rôto dos
milhares de golpes que o cavaleiro tinha
descarregado. O elmo de Ali-Abu-Hassan
faiscou, voando em pedaços pelos ares, e o
ferro cristão esmigalhou o crânio do infiel,
abriu-o até os dentes. Ali-Abu-Hassan caiu.
— Lidador! Lidador! - disse Lourenço Viegas,
com voz comprimida. As lágrimas
misturavam-se-lhe nas faces com o suor, com
o pó e com o sangue do agareno, de que ficou
coberto. Não pôde dizer mais nada.
Tão espantoso golpe aterrou os mouros. Os
portuguêses seriam já apenas sessenta, entre
cavaleiros e homens d'armas: mas pelejavam
como desesperados e resolvidos a morrer.
Mais de mil inimigos juncavam o campo, de
envôlta com os cristãos. A morte de
Ali-Abu-Hassan foi o sinal da fugida.
Os portugueses, senhores do campo,
celebravam com prantos a vitória. Poucos
havia que não estivessem feridos; nenhum que
não tivesse as armas falsadas e rôtas. O
Lidador e os demais cavaleiros de grande
conta que naquela jornada tinham acabado,
atravessados em cima dos ginetes, foram
conduzidos a Beja. Após aquêle tristíssimo
préstito, iam os cavaleiros a passo lento, e
um sacerdote templário, que fôra na
cavalgada com a espada cheia de sangue
metida na bainha, salmodeava em voz baixa
aquelas palavras do livro da Sabedoria:
"Justorum autem animae in manu Dei sunt, et
non tangent illos tormentum mortis".
Trabalho e pesquisa de Carlos
Leite Ribeiro – Marinha Grande –
Portugal