CARLOS LÚCIO GONTIJO

 

Cantos do corpo e a lâmina poética



No último dia 15 de março deste ano de 2012, a poetisa Brígida Selene lançou mais um livro de poesia, sob o título de “Cantos do Corpo”. Como resido em Santo Antônio do Monte, no Centro-Oeste de Minas Gerais, e o evento seria em Betim (município da Região Metropolitana de Belo Horizonte), solicitei ao poeta Antônio Fonseca que me representasse na sessão de autógrafos e adquirisse um exemplar para mim.
Não me sentiria bem deixando de atender ao convite da Brígida Selene, que sempre prestigiou os meus lançamentos. Além do mais, defendo ardentemente a ideia de que não existe solenidade mais importante nem mais eterna que o lançamento de um livro. As pessoas casam e descasam; são batizadas em determinada religião e a abandonam por outra; entram e saem de partido político e assim por diante.
Contudo, a palavra escrita é registro imorredouro que nem o próprio autor pode desdizer ou negar, como aconteceu com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que um dia pediu que fosse esquecido o que havia escrito no passado, ao abraçar o receituário neoliberal, ideário econômico em que o rosto humano não passa de mero detalhe e que, por isto mesmo, provocou recordes de desemprego, arrocho salarial e precarização do trabalho, tratando preceitos e normas sociais sob o prisma de que tudo é relativo e transitório, segundo as necessidades do momento.
Dessa forma, não há nada mais sério que a palavra grafada no papel. É o livro um indispensável batismo de fogo e sangue para poetas e escritores, servindo-lhes de fonte de humildade, uma vez que as dificuldades em torno de uma edição são tantas que o descabido glamour se esvai ou se esmaece diante da dura realidade em que o mundo cultural se encontra alicerçado. O produto impresso é caro, não há incentivo e os leitores são escassos. Ou seja, tudo sinaliza contrariamente ao desejo que todo escritor alimenta de editar seu livro.
A minha experiência de escriba de 14 livros me leva a aplaudir os que se permitem ser guiados por uma luz divina acima da razão, priorizando a edição de seus livros, como agora acabou de fazer a poetisa Brígida Selene, num tempo em que a poesia sofre um processo de corrosão provocado pelo descalabro de se elevar qualquer simulacro de criação ao patamar de manifestação poética ou obra prima que é logo registrada em cartórios oficiais das letras.
Vislumbro na internet poesia aos montes e vários entreveros públicos entre poetas, grupos e as idiossincráticas “igrejinhas” literárias. Claro que as exceções de praxe existem, mas elas não desmentem a regra de conjuntura tão prejudicial à condição de arte que a poesia ganhou nas mãos de grandes artistas da palavra escrita ao longo de anos e séculos a fio.
É por essas e outras que me resguardo em meu canto de luta solitária, protestando contra os avanços da discórdia, da discriminação, do racismo e do radicalismo generalizado, que sob o manto de democrática liberdade de expressão, na base do é proibido proibir, invadem principalmente as ondas da internet, onde muita gente se agiganta ou se sente segura para propagar obscuridades ideológicas e comportamentais capazes de nos reconduzir a barbáries vexatórias, que colocam em xeque nossa decantada e moderna civilização.
Em minhas mãos, pulsa a obra poética “Cantos do Corpo”, materializada em livro graças ao esforço de mais uma autora independente, que sabe que o trabalho literário é escravo do tempo, ou seja, nada tem a ver com o imediatismo exigido em nossos dias de competição selvagem. A navalha do processo da lavra literária corta na carne de quem se entrega à construção poética, como nos alerta Brígida Selene em seu poema Lâmina: “Pois é,/ não é mesmo?/ É o raio da hora/ vai desembestado/ vai desabotoando ares de mofo,/ vai caçoando dos choros/ vai levando os penicos de xixi/ vai catando as sobras... / enxugando os pingos.../ O testemunho calado/ calejado/ minado em furos/ fica parado/ olhando e/ vendo/ o prédio/ em obras:/ poeira para todo lado/ escadas/ cimento/ medidas/ algum sonho/ saído do papel/ flameja... flameja.../ cantoneiras nos lugares/ ganham formas/ preconizam a morada/ que vem/ ainda.../ Ainda! “

Carlos Lúcio Gontijo
Poeta, escritor e jornalista
www.carlosluciogontijo.jor.br
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