Cantos do corpo e a lâmina poética
No último dia 15 de março deste ano de 2012, a poetisa Brígida Selene
lançou mais um livro de poesia, sob o título de “Cantos do Corpo”. Como
resido em Santo Antônio do Monte, no Centro-Oeste de Minas Gerais, e o
evento seria em Betim (município da Região Metropolitana de Belo
Horizonte), solicitei ao poeta Antônio Fonseca que me representasse na
sessão de autógrafos e adquirisse um exemplar para mim. Não me sentiria bem deixando de atender ao convite da Brígida Selene,
que sempre prestigiou os meus lançamentos. Além do mais, defendo
ardentemente a ideia de que não existe solenidade mais importante nem
mais eterna que o lançamento de um livro. As pessoas casam e descasam;
são batizadas em determinada religião e a abandonam por outra; entram e
saem de partido político e assim por diante. Contudo, a palavra escrita é registro imorredouro que nem o próprio
autor pode desdizer ou negar, como aconteceu com o ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso, que um dia pediu que fosse esquecido o que
havia escrito no passado, ao abraçar o receituário neoliberal, ideário
econômico em que o rosto humano não passa de mero detalhe e que, por
isto mesmo, provocou recordes de desemprego, arrocho salarial e
precarização do trabalho, tratando preceitos e normas sociais sob o
prisma de que tudo é relativo e transitório, segundo as necessidades do
momento. Dessa forma, não há nada mais sério que a palavra grafada no papel. É o
livro um indispensável batismo de fogo e sangue para poetas e
escritores, servindo-lhes de fonte de humildade, uma vez que as
dificuldades em torno de uma edição são tantas que o descabido glamour
se esvai ou se esmaece diante da dura realidade em que o mundo cultural
se encontra alicerçado. O produto impresso é caro, não há incentivo e os
leitores são escassos. Ou seja, tudo sinaliza contrariamente ao desejo
que todo escritor alimenta de editar seu livro. A minha experiência de escriba de 14 livros me leva a aplaudir os que se
permitem ser guiados por uma luz divina acima da razão, priorizando a
edição de seus livros, como agora acabou de fazer a poetisa Brígida
Selene, num tempo em que a poesia sofre um processo de corrosão
provocado pelo descalabro de se elevar qualquer simulacro de criação ao
patamar de manifestação poética ou obra prima que é logo registrada em
cartórios oficiais das letras. Vislumbro na internet poesia aos montes e vários entreveros públicos
entre poetas, grupos e as idiossincráticas “igrejinhas” literárias.
Claro que as exceções de praxe existem, mas elas não desmentem a regra
de conjuntura tão prejudicial à condição de arte que a poesia ganhou nas
mãos de grandes artistas da palavra escrita ao longo de anos e séculos a
fio. É por essas e outras que me resguardo em meu canto de luta solitária,
protestando contra os avanços da discórdia, da discriminação, do racismo
e do radicalismo generalizado, que sob o manto de democrática liberdade
de expressão, na base do é proibido proibir, invadem principalmente as
ondas da internet, onde muita gente se agiganta ou se sente segura para
propagar obscuridades ideológicas e comportamentais capazes de nos
reconduzir a barbáries vexatórias, que colocam em xeque nossa decantada
e moderna civilização. Em minhas mãos, pulsa a obra poética “Cantos do Corpo”, materializada em
livro graças ao esforço de mais uma autora independente, que sabe que o
trabalho literário é escravo do tempo, ou seja, nada tem a ver com o
imediatismo exigido em nossos dias de competição selvagem. A navalha do
processo da lavra literária corta na carne de quem se entrega à
construção poética, como nos alerta Brígida Selene em seu poema Lâmina:
“Pois é,/ não é mesmo?/ É o raio da hora/ vai desembestado/ vai
desabotoando ares de mofo,/ vai caçoando dos choros/ vai levando os
penicos de xixi/ vai catando as sobras... / enxugando os pingos.../ O
testemunho calado/ calejado/ minado em furos/ fica parado/ olhando e/
vendo/ o prédio/ em obras:/ poeira para todo lado/ escadas/ cimento/
medidas/ algum sonho/ saído do papel/ flameja... flameja.../ cantoneiras
nos lugares/ ganham formas/ preconizam a morada/ que vem/ ainda.../
Ainda! “
Carlos Lúcio Gontijo Poeta, escritor e jornalista www.carlosluciogontijo.jor.br
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