
Descoberta do Brasil
22 de Abril de 1500 |


Diz a tradição que foi Pedro
Álvares Cabral que em 22 de Abril de 1500, descobriu o Brasil.
Este navegador era um fidalgo ainda
novo e muito culto, e assim, D. Manuel lº teria lhe confiado um armada que de caminho
para a Índia, passou pelo Brasil.
Cabral nasceu em Belmonte, em 1467
ou 68, e era filho de Fernão Cabral, alcaide-mor dos castelos de Belmonte e da Guarda, e
de D. Isabel de Gouveia, filha de João Gouveia, alcaide-mor de Castelo Rodrigo. Brasão da Família Cabral
O rei confiou-lhe 13 navios, com os
quais partiu para a viagem, em princípios de Março de 1500.
Pedro Álvares Cabral seguiu a rota
de Vasco da Gama, que na sua descoberta do Caminho Marítimo para a Índia, teria estado a
cerca de duas mil milhas das costas brasileira. Quer dizer que seguiu até Cabo Verde,
mas, a partir daí afastou-se muito da costa africana, a tal ponto que começaram a ver-se
sinais de terra, no lado oposto do oceano, no dia 22 de Abril.
No dia seguinte, ancoraram num ilhéu de águas calmas, e desembarcaram na baía hoje
conhecida pelo nome de Cabrália (hoje Ilhéu de Coroa Vermelha). Pedro Álvares Cabral,
depois de um primeiro contacto com os índios Aymoré, tomou posse da nova terra e mandou
e 26 de Abril de 1500, rezar missa no local e lá ergueu uma cruz, tendo dado a essa terra
o nome de Vera Cruz, o qual se transformou depois em Santa Cruz e, ainda mais tarde, em
BRASIL.
Quando o navegador desembarcou,
verificou que se tratava de um território com muita vegetação e que os seus poucos
habitantes tinham a pele avermelhada.
Pedro Álvares Cabral apressou-se a
mandar novas da sua descoberta ao rei de Portugal, para o que enviou de pronto uma
caravela portadora de uma mensagem em que relatava este facto.
Ainda hoje não se sabe, ao certo,
se o Brasil foi, na realidade, descoberto por Pedro Álvares Cabral nesta data, ou se a
sua existência já era anteriormente conhecida dos portugueses ... o que a ser verdade,
teria sido mantido em rigoroso segredo ... (*).
Do Brasil, Pedro Álvares Cabral
seguiu para a Índia. Presentemente, seu corpo encontra-se num túmulo no Panteão da
Família Cabral, em Belmonte.
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Túmulo de
Pedro Álvares Cabral |
Castelo e Pelourinho em
Belmonte |
(*) A dúvida mantém-se ...
O Brasil teria sido descoberto por
Pedro Álvares Cabral ?... O
teria sido descoberto pelo ignorado (por amor a el-rei e por interesses de Portugal)
navegador e astrólogo português Duarte Pacheco Pereira, cerca de 30 de Novembro de 1498 ?... Também parece que o
espanhol Vicente Pinzón teria estado em Janeiro de 1500, na foz do Amazonas, onde teria
encontrado um marco de pedra português.
Tudo isto porque no Tratado de
Tordesilhas, Portugal e Espanha definiram o meridiano que separaria as futuras colónias
portuguesas e espanholas a 370º a Oeste do arquipélago de Cabo Verde. Neste caso, o
Brasil teria sido uma colónia espanhola.
PEDRO ÁLVARES CABRAL
Pedro Álvares Cabral (1467-1517) é o segundo filho dos senhores do Castelo e das terras
de vila Belmonte, na Beira-Baixa. A história de sua família é semelhante à da maioria
da nobreza portuguesa: cavaleiros e soldados, inclusive mercenários, que conquistam
títulos e terras na luta pela reconquista do território aos muçulmanos e, num segundo
momento, nas guerras contra Castela que levam a casa de Avis ao trono português. Pedro
Álvares muda-se para a corte aos 11 anos. Estuda literatura, história e ciências,
cosmografia, marinharia e as artes militares. Aos 16 anos é nomeado fidalgo da corte de
dom João II. No reinado de dom Manuel, passa a integrar o Conselho do Rei, é admitido na
Ordem de Cristo uma distinção entre os nobres e recebe uma pensão anual.
Aos 33 anos é escolhido para comandar a segunda expedição às Índias. Depois de
alcançar as terras brasileiras, retoma a rota de Vasco da Gama. Aporta em várias reinos
africanos, estabelece relações com os poderosos locais e chega a Calicute em 13 de
setembro de 1500. Ao voltar a Lisboa, dia 6 de junho de 1501, é aclamado herói. Sua
glória dura pouco. Desentende-se com o rei sobre o comando da próxima expedição às
Índias, programada para 1502. Vasco da Gama é escolhido para comandar a esquadra, e
Cabral desaparece do cenário político.
Esquadra de Cabral Cabral
comanda a maior e mais bem equipada frota a zarpar dos portos ibéricos até então. Com
dez naus e três caravelas, leva 1.500 homens, quase 3% da população de Lisboa, na
época com cerca de 50 mil habitantes. São representantes da nobreza, comerciantes,
artesãos, religiosos, alguns degredados e soldados. Participa da expedição um banqueiro
florentino, Bartholomeu Marquione, elo de ligação entre a Coroa portuguesa e Lourenço
de Medici, o senhor de Florença. É essa expedição que descobre o Brasil, dia 22 de
abril de 1500.
Os pilotos A esquadra inclui
alguns dos mais experientes navegadores da época. Um deles é Bartolomeu Dias, o primeiro
a contornar o cabo da Boa Esperança e a descobrir a passagem marítima para a Ásia, em
1485. Outro é Duarte Pacheco Pereira, apontado pelos historiadores como um dos mais
completos cartógrafos e pilotos da Marinha portuguesa do período. Bartolomeu Dias não
chega às Índias. Morre quando seu navio naufraga justamente ao cruzar o cabo da Boa
Esperança, que conquistara 12 anos antes.
O polémico desvio de rota
Por muito tempo, o descobrimento do
Brasil, ou "achamento", como registra o escrivão Pero Vaz de Caminha, é
considerado simples acaso, resultado de um desvio de rota. A partir de 1940 vários
historiadores brasileiros e portugueses passam a defender a tese da intencionalidade da
descoberta, hoje amplamente aceita.
Descoberta intencional Os
historiadores argumentam que, no final do século XV, Portugal já sabe da existência de
uma grande área de terra firme a oeste do Atlântico. Pode ter sido avistada por seus
pilotos que navegaram para regiões ao sul do golfo da Guiné. Até o golfo, as correntes
marinhas são descendentes e é possível fazer uma navegação costeira. Do golfo da
Guiné para baixo, as correntes se invertem. Para atingir o sul da África é preciso
afastar-se da costa para evitar os ventos e correntes que ali têm ascendente (corrente de
Benguela), navegar para o ocidente até pegar a "volta do mar", hoje chamada
corrente do Brasil : ventos e correntes descendentes que passam pelo nordeste brasileiro e
levam ao sul do continente africano. O primeiro a fazer isso é Diogo Cão, em 1482,
seguido depois por Bartolomeu Dias e Vasco da Gama ao contornarem o cabo da Boa
Esperança.
A "quarta parte"
Em 1498 o rei dom Manuel manda o cosmógrafo e navegante Duarte Pacheco Pereira percorrer
a mesma rota de Vasco da Gama e explorar a chamada "quarta parte", o quadrante
oeste do Atlântico sul. Em seu livro Esmeraldo de situ orbi, o navegante relata suas
descobertas: "...temos sabido e visto donde nos vossa alteza mandou descobrir a parte
ocidental, passando além da grandeza do mar Oceano, onde foi achada e navegada uma tão
grande terra firme, com muitas e grandes ilhas adjacentes..." Mais dois navegantes
espanhóis, Vicente Pinzón e Diego de Lepe, também teriam aportado nessas terras,
respectivamente em janeiro e fevereiro de 1500. Não tomam posse do território por
saberem estar na área portuguesa demarcada pelo Tratado de Tordesilhas.
CARTA DE PÊRO VAZ DE CAMINHA
(Carta enviada a D. Manuel 1º,
depois do Descobrimento do Brasil)
Senhor,
Posto que o Capitão-mor desta
Vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a notícia do achamento
desta Vossa terra nova, que se agora nesta navegação achou, não deixarei de também dar
disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que - para o bem
contar e falar - o saiba pior que todos fazer!
Todavia, tome Vossa Alteza minha
ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, aqui
não há de pôr mais do que aquilo que vi e me pareceu.
Da marinhagem e das singraduras do
caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza - porque o não saberei fazer - e os pilotos
devem ter este cuidado.
E portanto, Senhor, do que hei-de
falar começo:
E digo quê:
A partida de Belém foi, como Vossa
Alteza sabe, segunda-feira 9 de Março. E sábado, 14 do dito mês, entre as 8 e 9 horas,
nos achámos entre as Canárias, mais perto da Grande Canária. E ali andámos todo aquele
dia em calma, à vista delas, obra de três a quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês,
às dez horas mais ou menos, houvemos vista das ilhas de Cabo Verde, a saber da ilha de
São Nicolau, segundo o dito de Pero Escolar, piloto.
Na noite seguinte à segunda-feira
amanheceu, se perdeu da frota Vasco de Ataíde com a sua nau, sem haver tempo forte ou
contrário para poder ser!
Fez o capitão suas diligências
para o achar, em umas e outras partes. Mas... não apareceu mais!
E assim seguimos nosso caminho, por
este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de
Abril, topámos alguns sinais de terra, estando da dita Ilha - segundo os pilotos diziam,
obra de 660 ou 670 léguas - os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os
mareantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-de-asno. E
quarta-feira seguinte, pela manhã, topámos aves a que chamam furabuchos.
Neste mesmo dia, a horas de
véspera, houvemos vista de terra! A saber, primeiramente de um grande monte, muito alto e
redondo; e de outras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes
arvoredos; ao qual monte alto o capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra
de Vera Cruz!
Mandou lançar o prumo. Acharam
vinte e cinco braças. E ao sol-posto umas seis léguas da terra, lançámos ancoras, em
dezanove braças - ancoragem limpa. Ali ficámo-nos toda aquela noite. E quinta-feira,
pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitura à terra, indo os navios pequenos diante
- por dezassete, dezasseis, quinze, catorze, doze, nove braças - até meia légua da
terra, onde todos lançámos ancoras, em frente da boca de um rio. E chegaríamos a esta
ancoragem às dez horas, pouco mais ou menos.
E dali avistámos homens que
andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos que chegaram
primeiro.
Então lançámos fora os batéis e
esquifes. E logo vieram todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor. E ali
falaram. E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que
ele começou a ir-se para lá, acudiram pela praia homens aos dois e aos três, de maneira
que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito ou vinte.
Pardos, nus, sem coisa alguma que
lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos
rijamente em direcção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos.
E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse,
por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma carapuça de
linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombreiro
de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de
papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer
de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se
volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar.
À noite seguinte, ventou tanto
sueste com chuvaceiros que fez caçar as naus. E especialmente a Capitaina. E sexta pela
manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão
levantar âncoras e fazer vela. E fomos de longo da costa, com os batéis e esquifes
amarrados na popa, em direcção norte, para ver se achávamos alguma abrigada e bom
pouso, onde nós ficássemos, para tomar água e lenha. Não por nos já minguar, mas por
nos prevenirmos aqui. E quando fizemos vela estariam já na praia assentados perto do rio
obra de sessenta ou setenta homens que se haviam juntado ali aos poucos. Fomos ao longo, e
mandou o Capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados à terra e, se achassem
pouso seguro para as naus, que amainassem.
E velejando nós pela costa, na
distância de dez léguas do sítio onde tínhamos levantado ferro, acharam os ditos
navios pequenos um recife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com uma mui larga
entrada. E meteram-se dentro e amainaram. E as naus foram-se chegando, atrás deles. E um
pouco antes de sol-pôsto amainaram também, talvez a uma légua do recife, e ancoraram a
onze braças.
E estando Afonso Lopez, nosso
piloto, em um daqueles navios pequenos, foi, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e
destro para isso, meter-se logo no esquife a sondar o porto dentro. E tomou dois daqueles
homens da terra que estavam numa almadia: mancebos e de bons corpos. Um deles trazia um
arco, e seis ou sete setas. E na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas não os
aproveitou. Logo, já de noite, levou-os à Capitaina, onde foram recebidos com muito
prazer e festa.
A feição deles é serem pardos,
um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura
alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de
mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo
furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da
grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de
dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de
roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe
estorvo no falar, nem no comer e beber.
Os cabelos deles são corredios. E
andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sobre-pente, de boa grandeza, rapados
todavia por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na
parte detrás, uma espécie de cabeleira, de penas de ave amarela, que seria do
comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E
andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como, de maneira tal
que a cabeleira era mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais
lavagem para alevantar.
O Capitão, quando eles vieram,
estava sentado em uma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com um
colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau
Coelho, e Aires Corrêa, e nós outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no chão,
nessa alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas nem sinal de cortesia fizeram,
nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e
começou a fazer acenos com a mão em direcção à terra, e depois para o colar, como se
quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e
assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal, como se lá também
houvesse prata!
Mostraram-lhes um papagaio pardo
que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como se os
houvesse ali.
Mostraram-lhes um carneiro; não
fizeram caso dele.
Mostraram-lhes uma galinha; quase
tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como
espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e
peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, figos passados. Não quiseram comer daquilo quase
nada; e, se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora.
Trouxeram-lhes vinho em uma taça;
mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem quiseram mais.
Trouxeram-lhes água em uma
albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaram as bocas e
lançaram-na fora.
Viu um deles umas contas de
rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao
pescoço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava para a terra e
novamente para as contas e para o colar do Capitão, como se dariam ouro por aquilo.
Isto tomávamos nós nesse sentido,
por assim o desejarmos! Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto
não queríamos nós entender, por que lho não havíamos de dar! E depois tornou as
contas a quem lhas dera. E então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir sem
procurarem maneiras de encobrir suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as
cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas.
O Capitão mandou pôr por baixo da
cabeça de cada um seu coxim; e o da cabeleira esforçava-se por não a estragar. E
deitaram um manto por cima deles; e consentindo, aconchegaram-se e adormeceram.
Sábado pela manhã mandou o
Capitão fazer vela, fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e tinha seis a sete
braças de fundo. E entraram todas as naus dentro, e ancoraram em cinco ou seis braças -
ancoradouro que é tão grande e tão formoso de dentro, e tão seguro que podem ficar
nele mais de duzentos navios e naus. E tanto que as naus foram distribuídas e ancoradas,
vieram os capitães todos a esta nau do Capitão-mor. E daqui mandou o Capitão que
Nicolau Coelho e Bartolomeu Dias fossem em terra e levassem aqueles dois homens, e os
deixassem ir com seu arco e setas, aos quais mandou dar a cada um uma camisa nova e uma
carapuça vermelha e um rosário de contas brancas de osso, que foram levando nos braços,
e um cascavel e uma campainha. E mandou com eles, para lá ficar, um mancebo degredado,
criado de dom João Telo, de nome Afonso Ribeiro, para lá andar com eles e saber de seu
viver e maneiras. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assim de frecha
direitos à praia. Ali acudiram logo perto de duzentos homens, todos nus, com arcos e
setas nas mãos. Aqueles que nós levámos acenaram-lhes que se afastassem e depusessem os
arcos. E eles os depuseram. Mas não se afastaram muito. E mal tinham pousado seus arcos
quando saíram os que nós levávamos, e o mancebo degredado com eles. E saídos não
pararam mais; nem esperavam um pelo outro, mas antes corriam a quem mais correria. E
passaram um rio que aí corre, de água doce, de muita água que lhes dava pela braga. E
muitos outros com eles. E foram assim correndo para além do rio entre umas moitas de
palmeiras onde estavam outros. E ali pararam. E naquilo tinha ido o degredado com um homem
que, logo ao sair do batel, o agasalhou e levou até lá. Mas logo o tornaram a nós. E
com ele vieram os outros que nós leváramos, os quais vinham já nus e sem carapuças.
E então se começaram de chegar
muitos; e entravam pela beira do mar para os batéis, até que mais não podiam. E traziam
cabaças d'água, e tomavam alguns barris que nós levávamos e enchiam-nos de água e
traziam-nos aos batéis. Não que eles de todo chegassem a bordo do batel. Mas junto a
ele, lançavam-nos da mão. E nós tomávamo-los. E pediam que lhes dessem alguma coisa.
Levava Nicolau Coelho cascavéis e
manilhas. E a uns dava um cascavel, e a outros uma manilha, de maneira que com aquela
encarna quase que nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas em troca de
sombreiros e carapuças de linho, e de qualquer coisa que a gente lhes queria dar.
Dali se partiram os outros, dois
mancebos, que não os vimos mais.
Dos que ali andavam, muitos - quase
a maior parte - traziam aqueles bicos de osso nos beiços.
E alguns, que andavam sem eles,
traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau, que pareciam
espelhos de borracha. E alguns deles traziam três daqueles bicos, a saber um no meio, e
os dois nos cabos.
E andavam lá outros, quartejados
de cores, a saber, metade deles da sua própria cor, e metade de tintura preta, um tanto
azulada; e outros quartejados d'escaques.
Ali andavam entre eles três ou
quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e
suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós
muito bem olharmos, não se envergonhavam.
Ali por então não houve mais fala
ou entendimento com eles, por a barbana deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia
ninguém. Acenámos-lhes que se fossem. E assim o fizeram e passaram-se para além do rio.
E saíram três ou quatro homens nossos dos batéis, e encheram não sei quantos barris
d'água que nós levávamos. E tornámo-nos às naus. E quando assim vínhamos,
acenaram-nos que voltássemos. Voltámos, e eles mandaram o degredado e não quiseram que
ficasse lá com eles, o qual levava uma bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas
para lá as dar ao senhor, se o lá houvesse. Não trataram de lhe tirar coisa alguma,
antes mandaram-no com tudo. Mas então Bartolomeu Dias o fez outra vez tornar, que lhe
desse aquilo. E ele tornou e deu aquilo, em vista de nós, a aquele que o da primeira
agasalhara. E então veio-se, e nós levámo-lo.
Esse que o agasalhou era já de
idade, e andava por galanteria, cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia seteado
como São Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; e outros, de vermelhas;
e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela
tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a
muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as
suas como ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós.
E com isto nos tornámos, e eles
foram-se.
À tarde, saiu o Capitão-mor em
seu batel com todos nós outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía,
perto da praia. Mas ninguém saiu em terra, por o Capitão o não querer, apesar de
ninguém estar nela. Apenas saiu - ele com todos nós - em um ilhéu grande que está na
baía, o qual, aquando baixamar, fica mui vazio. Com tudo está de todas as partes cercado
de água, de sorte que ninguém lá pode ir, a não ser de barco ou a nado. Ali folgou
ele, e todos nós, bem uma hora e meia. E pescaram lá, andando alguns marinheiros com um
chinchorro; e mataram peixe miúdo, não muito. E depois volvemo-nos às naus, já bem
noite.
Ao domingo de Pascoela pela manhã,
determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão naquele ilhéu. E mandou a todos os
capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar
um pavilhão naquele ilhéu, e dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos
nós outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, e
oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a
qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.
Ali estava com o Capitão a
bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qual esteve sempre bem alta, da parte do
Evangelho.
Acabada a missa, desvestiu-se o
padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma
solene e proveitosa pregação, da história evangélica; e no fim tratou da nossa vida, e
do achamento desta terra, referindo-se à Cruz, sob cuja obediência viemos, que veio
muito a propósito, e fez muita devoção.
Enquanto assistimos à missa e ao
sermão, estaria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos, como a de ontem, com
seus arcos e setas, e andava folgando. E olhando-nos, sentaram. E depois de acabada a
missa, quando nós sentados atendíamos a pregação, levantaram-se muitos deles e
tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se
metiam em almadias - duas ou três que lá tinham as quais não são feitas como as que eu
vi; apenas são três traves, atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que
queriam, não se afastando quase nada da terra, só até onde podiam tomar pé.
Acabada a pregação encaminhou-se
o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcámos e fomos
indo todos em direcção à terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo na
dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma
almadia que lhes o mar levara, para o entregar a eles. E nós todos trás dele, a
distância de um tiro de pedra.
Como viram o esquife de Bartolomeu
Dias, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela até onde mais podiam.
Acenaram-lhes que pousassem os arcos e muitos deles os iam logo pôr em terra; e outros
não os punham.
Andava lá um que falava muito aos
outros, que se afastassem. Mas não já que a mim me parecesse que lhe tinham respeito ou
medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas. Estava tinto de tintura
vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios
com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era tão vermelha que a
água lha não comia nem desfazia. Antes, quando saía da água, era mais vermelho. Saiu
um homem do esquife de Bartolomeu Dias e andava no meio deles, sem implicarem nada com
ele, e muito menos ainda pensavam em fazer-lhe mal. Apenas lhe davam cabaças d'água; e
acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bartolomeu Dias ao
Capitão. E viemo-nos às naus, a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem os mais
constranger. E eles tornaram-se a sentar na praia, e assim por então ficaram.
Neste ilhéu, onde fomos ouvir
missa e sermão, espraia muito a água e descobre muita areia e muito cascalho. Enquanto
lá estávamos foram alguns buscar marisco e não no acharam. Mas acharam alguns camarões
grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande e muito grosso; que em nenhum tempo
o vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e de amêijoas, mas não toparam com
nenhuma peça inteira. E depois de termos comido vieram logo todos os capitães a esta
nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se aportou; e eu na companhia. E
perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza
pelo navio dos mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber dela mais do que nós
podíamos saber, por irmos na nossa viagem.
E entre muitas falas que sobre o
caso se fizeram foi dito, por todos ou a maior parte, que seria muito bem. E nisto
concordaram. E logo que a resolução foi tomada, perguntou mais, se seria bem tomar aqui
por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui em lugar
deles outros dois destes degredados.
E concordaram em que não era
necessário tomar por força homens, porque costume era dos que assim à força levavam
para alguma parte dizerem que há de tudo quanto lhes perguntam; e que melhor e muito
melhor informação da terra dariam dois homens desses degredados que aqui deixássemos do
que eles dariam se os levassem por ser gente que ninguém entende. Nem eles cedo
aprenderiam a falar para o saberem tão bem dizer que muito melhor estoutros o não digam
quando cá Vossa Alteza mandar.
E que portanto não cuidássemos de
aqui por força tomar ninguém, nem fazer escândalo; mas sim, para os de todo amansar e
apaziguar, unicamente de deixar aqui os dois degredados quando daqui partíssemos.
E assim ficou determinado por
parecer melhor a todos.
Acabado isto, disse o Capitão que
fôssemos nos batéis em terra. E ver-se-ia bem, quejando era o rio. Mas também para
folgarmos.
Fomos todos nos batéis em terra,
armados; e a bandeira connosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós
íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos,
e acenaram que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra,
passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais ancho que um jogo de mancal. E
tanto que desembarcámos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles.
E alguns aguardavam; e outros se afastavam. Com tudo, a coisa era de maneira que todos
andavam misturados. Eles davam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de
linho, e por qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos e andaram
assim misturados com eles, que eles se esquivavam, e afastavam-se; e iam alguns para cima,
onde outros estavam. E então o Capitão fez que o tomassem ao colo dois homens e passou o
rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que aquela do costume.
Mas logo que o Capitão chamou todos para trás, alguns se chegaram a ele, não por o
reconhecerem por Senhor, mas porque a gente, nossa, já passava para aquém do rio. Ali
falavam e traziam muitos arcos e continhas, daquelas já ditas, e resgatavam-nas por
qualquer coisa, de tal maneira que os nossos levavam dali para as naus muitos arcos, e
setas e contas.
E então tornou-se o Capitão para
aquém do rio. E logo acudiram muitos à beira dele.
Ali veríeis galantes, pintados de
preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que, certo, assim
pareciam bem. Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas,
não pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa, do joelho até o quadril e a
nádega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra
trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés; e suas
vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso
desvergonha nenhuma.
Também andava lá outra mulher,
nova, com um menino ou menina, atado com um pano aos peitos, de modo que não se lhe viam
senão as perninhas. Mas nas pernas da mãe, e no resto, não havia pano algum.
Em seguida o Capitão foi subindo
ao longo do rio, que corre rente à praia. E ali esperou por um velho que trazia na mão
uma pá de almadia. Falou, enquanto o Capitão estava com ele, na presença de todos nós;
mas ninguém o entendia, nem ele a nós, por mais coisas que a gente lhe perguntava com
respeito a ouro, porque desejávamos saber se o havia na terra.
Trazia este velho o beiço tão
furado que lhe cabia pelo buraco um grosso dedo polegar. E trazia metido no buraco uma
pedra verde, de nenhum valor, que fechava por fora aquele buraco. E o Capitão lha fez
tirar. E ele não sei que diabo falava e ia com ela para a boca do Capitão para lha
meter. Estivemos rindo um pouco e dizendo chalaças sobre isso. E então enfadou-se o
Capitão, e deixou-o. E um dos nossos deu-lhe pela pedra um sombreiro velho; não por ela
valer alguma coisa, mas para amostra. E depois houve-a o Capitão, creio, para mandar com
as outras coisas a Vossa Alteza.
Andámos por aí vendo o ribeiro, o
qual é de muita água e muito boa. Ao longo dele há muitas palmeiras, não muito altas;
e muito bons palmitos. Colhemos e comemos muitos deles.
Depois tornou-se o Capitão para
baixo para a boca do rio, onde tínhamos desembarcado.
E além do rio andavam muitos deles
dançando e folgando, uns diante os outros, sem se tomarem pelas mãos. E faziam-no bem.
Passou-se então para a outra banda do rio Diogo Dias, que fora almoxarife de Sacavém, o
qual é homem gracioso e de prazer. E levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E
meteu-se a dançar com eles, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam e andavam com
ele muito bem ao som da gaita. Depois de dançarem fez ali muitas voltas ligeiras, andando
no chão, e salto real, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto com
aquilo os segurou e afagou muito, tomavam logo uma esquiveza como de animais monteses, e
foram-se para cima.
E então passou o rio o Capitão
com todos nós, e fomos pela praia, de longo, ao passo que os batéis iam rentes à terra.
E chegámos a uma grande lagoa de água doce que está perto da praia, porque toda aquela
ribeira do mar é apaulada por cima e sai a água por muitos lugares.
E depois de passarmos o rio, foram
uns sete ou oito deles meter-se entre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E
levaram dali um tubarão que Bartolomeu Dias matou. E levavam-lho; e lançou-o na praia.
Bastará que até aqui, como quer
que se lhes em alguma parte amansassem, logo de uma mão para outra se esquivavam, como
pardais do cevadouro. Ninguém não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais.
E tudo se passa como eles querem - para os bem amansarmos!
Ao velho com quem o Capitão havia
falado, deu-lhe uma carapuça vermelha. E com toda a conversa que com ele houve, e com a
carapuça que lhe deu tanto que se despediu e começou a passar o rio, foi-se logo
recatando. E não quis mais tornar do rio para aquém. Os outros dois o Capitão teve nas
naus, aos quais deu o que já ficou dito, nunca mais aqui apareceram - factos de que
deduzo que é gente bestial e de pouco saber, e por isso tão esquiva. Mas apesar de tudo
isso andam bem curados, e muito limpos. E naquilo ainda mais me convenço que são como
aves, ou alimárias montesinhas, as quais o ar faz melhores penas e melhor cabelo que às
mansas, porque os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode
ser mais! E isto me faz presumir que não tem casas nem moradias em que se recolham; e o
ar em que se criam os faz tais. Nós pelo menos não vimos até agora nenhumas casas, nem
coisa que se pareça com elas.
Mandou o Capitão aquele degredado,
Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles. E foi; e andou lá um bom pedaço, mas à
tarde regressou, que o fizeram eles vir: e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe
arcos e setas; e não lhe tomaram nada do seu. Antes, disse ele, que lhe tomara um deles
umas continhas amarelas que levava e fugia com elas, e ele se queixou e os outros foram
logo após ele, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no vir. Disse que
não vira lá entre eles senão umas choupaninhas de rama verde e de feteiras muito
grandes, como as de Entre-Douro-e-Minho. E assim nos tornámos às naus, já quase noite,
a dormir.
Segunda-feira, depois de comer,
saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos; mas não tantos como as
outras vezes. E traziam já muito poucos arcos. E estiveram um pouco afastados de nós;
mas depois pouco a pouco misturaram-se connosco; e abraçavam-nos e folgavam; mas alguns
deles se esquivavam logo. Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por alguma
carapucinha velha e por qualquer coisa. E de tal maneira se passou a coisa que bem vinte
ou trinta pessoas das nossas se foram com eles para onde outros muitos deles estavam com
moças e mulheres. E trouxeram de lá muitos arcos e barretes de penas de aves, uns
verdes, outros amarelos, dos quais creio que o Capitão há de mandar uma amostra a Vossa
Alteza.
E segundo diziam esses que lá
tinham ido, brincaram com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade,
por andarmos quase todos misturados: uns andavam quartejados daquelas tinturas, outros de
metades, outros de tanta feição como em pano de rás, e todos com os beiços furados,
muitos com os ossos neles, e bastantes sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de
árvores, que na cor queriam parecer de castanheiras, embora fossem muito mais pequenos. E
estavam cheios de uns grãos vermelhos, pequeninos que, esmagando-se entre os dedos, se
desfaziam na tinta muito vermelha de que andavam tingidos. E quanto mais se molhavam,
tanto mais vermelhos ficavam.
Todos andam rapados até por cima
das orelhas; assim mesmo de sobrancelhas e pestanas.
Trazem todos as testas, de fonte a
fonte, tintas de tintura preta, que parece uma fita preta da largura de dois dedos.
E o Capitão mandou aquele
degredado Afonso Ribeiro e a outros dois degredados que fossem meter-se entre eles; e
assim mesmo a Diogo Dias, por ser homem alegre, com que eles folgavam. E aos degredados
ordenou que ficassem lá esta noite.
Foram-se lá todos; e andaram entre
eles. E segundo depois diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que
haveria nove ou dez casas, as quais diziam que eram tão compridas, cada uma, como esta
nau capitaina. E eram de madeira, e das ilhargas de tábuas, e cobertas de palha, de
razoável altura; e todas de um só espaço, sem repartição alguma, tinham de dentro
muitos esteios; e de esteio a esteio uma rede atada com cabos em cada esteio, altas, em
que dormiam. E de baixo, para se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas
portas pequenas, uma numa extremidade, e outra na oposta. E diziam que em cada casa se
recolhiam trinta ou quarenta pessoas, e que assim os encontraram; e que lhes deram de
comer dos alimentos que tinham, a saber muito inhame, e outras sementes que na terra dá,
que eles comem. E como se fazia tarde fizeram-nos logo todos tornar; e não quiseram que
lá ficasse nenhum. E ainda, segundo diziam, queriam vir com eles. Resgataram lá por
cascavéis e outras coisinhas de pouco valor, que levavam, papagaios vermelhos, muito
grandes e formosos, e dois verdes pequeninos, e carapuças de penas verdes, e um pano de
penas de muitas cores, espécie de tecido assaz belo, segundo Vossa Alteza todas estas
coisas verá, porque o Capitão vo-las há-de mandar, segundo ele disse. E com isto
vieram; e nós tornamo-nos às naus.
Terça-feira, depois de comer,
fomos em terra, fazer lenha, e para lavar roupa. Estavam na praia, quando chegámos, uns
sessenta ou setenta, sem arcos e sem nada. Tanto que chegámos, vieram logo para nós, sem
se esquivarem. E depois acudiram muitos, que seriam bem duzentos, todos sem arcos. E
misturaram-se todos tanto connosco que uns nos ajudavam a acarretar lenha e metê-las nos
batéis. E lutavam com os nossos, e tomavam com prazer. E enquanto fazíamos a lenha,
construíam dois carpinteiros uma grande cruz de um pau que se ontem para isso cortara.
Muitos deles vinham ali estar com os carpinteiros. E creio que o faziam mais para verem a
ferramenta de ferro com que a faziam do que para verem a cruz, porque eles não tem coisa
que de ferro seja, e cortam sua madeira e paus com pedras feitas como cunhas, metidas em
um pau entre duas talas, mui bem atadas e por tal maneira que andam fortes, porque lhas
viram lá. Era já a conversação deles connosco tanta que quase nos estorvavam no que
havíamos de fazer.
E o Capitão mandou a dois
degredados e a Diogo Dias que fossem lá à aldeia e que de modo algum viessem a dormir
às naus, ainda que os mandassem embora. E assim se foram.
Enquanto andávamos nessa mata a
cortar lenha, atravessavam alguns papagaios essas árvores; verdes uns, e pardos, outros,
grandes e pequenos, de sorte que me parece que haverá muitos nesta terra. Todavia os que
vi não seriam mais que nove ou dez, quando muito. Outras aves não vimos então, a não
ser algumas pombas-seixeiras, e pareceram-me maiores bastante do que as de Portugal.
Vários diziam que viram rolas, mas eu não as vi. Todavia, segundo os arvoredos são mui
muitos e grandes, e de infinitas espécies, não duvido que por esse sertão haja muitas
aves!
E cerca da noite nós volvemos para
as naus com nossa lenha.
Eu creio, Senhor, que não dei
ainda conta aqui a Vossa Alteza do feitio de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e
compridos, e as setas compridas; e os ferros delas são canas aparadas, conforme Vossa
Alteza verá alguns que creio que o Capitão a Ela há de enviar.
Quarta-feira não fomos em terra,
porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar
às naus isso que cada um podia levar. Eles acudiram à praia, muitos, segundo das naus
vimos. Seriam perto de trezentos, segundo Sancho de Tovar que para lá foi. Diogo Dias e
Afonso Ribeiro, o degredado, aos quais o Capitão ontem ordenara que de toda maneira lá
dormissem, tinham voltado já de noite, por eles não quererem que lá ficassem. E traziam
papagaios verdes; e outras aves pretas, quase como pegas, com a diferença de terem o bico
branco e rabos curtos. E quando Sancho de Tovar recolheu à nau, queriam vir com ele,
alguns; mas ele não admitiu senão dois mancebos, bem dispostos e homens de prol. Mandou
pensar e curá-los mui bem essa noite. E comeram toda a ração que lhes deram, e mandou
dar-lhes cama de lençóis, segundo ele disse. E dormiram e folgaram aquela noite. E não
houve mais este dia que para escrever seja.
Quinta-feira, derradeiro de Abril,
comemos logo, quase pela manhã, e fomos em terra por mais lenha e água. E em querendo o
Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Tovar com seus dois hóspedes. E por ele ainda
não ter comido, puseram-lhe toalhas, e veio-lhe comida. E comeu. Os hóspedes,
sentaram-no cada um em sua cadeira. E de tudo quanto lhes deram, comeram mui bem,
especialmente lacão cozido frio, e arroz. Não lhes deram vinho por Sancho de Tovar dizer
que o não bebiam bem.
Acabado o comer, metemo-nos todos
no batel, e eles connosco. Deu um grumete a um deles uma armadura grande de porco montês,
bem revolta. E logo que a tomou meteu-a no beiço; e porque se lhe não queria segurar,
deram-lhe uma pouca de cera vermelha. E ele ajeitou-lhe seu adereço da parte de trás de
sorte que segurasse, e meteu-a no beiço, assim revolta para cima; e ia tão contente com
ela, como se tivesse uma grande jóia. E tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela.
E não tornou a aparecer lá.
Andariam na praia, quando saímos,
oito ou dez deles; e de aí a pouco começaram a vir. E parece-me que viriam este dia à
praia quatrocentos ou quatrocentos e cinquenta. Alguns deles traziam arcos e setas; e
deram tudo em troca de carapuças e por qualquer coisa que lhes davam. Comiam connosco do
que lhes dávamos, e alguns deles bebiam vinho, ao passo que outros o não podiam beber.
Mas quer-me parecer que, se os acostumarem, o hão-de beber de boa vontade! Andavam todos
tão bem dispostos e tão bem feitos e galantes com suas pinturas que agradavam.
Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mil boas vontades, e levavam-na aos batéis. E
estavam já mais mansos e seguros entre nós do que nós estávamos entre eles.
Foi o Capitão com alguns de nós
um pedaço por este arvoredo até um ribeiro grande, e de muita água, que ao nosso
parecer é o mesmo que vem ter à praia, em que nós tomámos água. Ali descansámos um
pedaço, bebendo e folgando, ao longo dele, entre esse arvoredo que é tanto e tamanho e
tão basto e de tanta qualidade de folhagem que não se pode calcular. Há lá muitas
palmeiras, de que colhemos muitos e bons palmitos.
Ao sairmos do batel, disse o
Capitão que seria bom irmos em direitura à cruz que estava encostada a uma árvore,
junto ao rio, a fim de ser colocada amanhã, sexta-feira, e que nos puséssemos todos de
joelhos e a beijássemos para eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assim fizemos.
E a esses dez ou doze que lá estavam, acenaram-lhes que fizessem o mesmo; e logo foram
todos beijá-la.
Parece-me gente de tal inocência
que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que
não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. E, portanto, se os
degredados que aqui hão-de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido
que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na
nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente
é boa e de bela simplicidade. E imprimir- se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe
quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens
bons. E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza,
pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E
prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim!
Eles não lavram nem criam. Nem há
aqui boi ou vaca, cabra, ovelha ou galinha, ou qualquer outro animal que esteja acostumado
ao viver do homem. E não comem senão deste inhame, de que aqui há muito, e dessas
sementes e frutos que a terra e as árvores de si deitam. E com isto andam tais e tão
rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos.
Nesse dia, enquanto ali andavam,
dançaram e bailaram sempre com os nossos, ao som de um tamboril nosso, como se fossem
mais amigos nossos do que nós seus. Se lhes a gente acenava, se queriam vir às naus,
aprontavam-se logo para isso, de modo tal, que se os convidáramos a todos, todos vieram.
Porém não levámos esta noite às naus senão quatro ou cinco; a saber, o Capitão-mor,
dois; e Simão de Miranda, um que já trazia por pajem; e Aires Gomes a outro, pajem
também. Os que o Capitão trazia, era um deles um dos seus hóspedes que lhe haviam
trazido a primeira vez quando aqui chegámos - o qual veio hoje aqui vestido na sua
camisa, e com ele um seu irmão; e foram esta noite mui bem agasalhados tanto de comida
como de cama, de colchões e lençóis, para os mais amansar.
E hoje que é sexta-feira, primeiro
dia de Maio, pela manhã, saímos em terra com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima
do rio, contra o sul onde nos pareceu que seria melhor arvorar a cruz, para melhor ser
vista. E ali marcou o Capitão o sítio onde haviam de fazer a cova para a fincar. E
enquanto a iam abrindo, ele com todos nós outros fomos pela cruz, rio abaixo onde ela
estava. E com os religiosos e sacerdotes que cantavam, à frente, fomos trazendo-a dali, a
modo de procissão. Eram já aí quantidade deles, uns setenta ou oitenta; e quando nos
assim viram chegar, alguns se foram meter debaixo dela, ajudar-nos. Passámos o rio, ao
longo da praia; e fomos colocá-la onde havia de ficar, que será obra de dois tiros de
besta do rio. Andando-se ali nisto, viriam bem cento cinquenta, ou mais. Plantada a cruz,
com as armas e a divisa de Vossa Alteza, que primeiro lhe haviam pregado, armaram altar ao
pé dela. Ali disse missa o padre frei Henrique, a qual foi cantada e oficiada por esses
já ditos. Ali estiveram connosco, a ela, perto de cinquenta ou sessenta deles, assentados
todos de joelho assim como nós. E quando se veio ao Evangelho, que nos erguemos todos em
pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram connosco, e alçaram as mãos, estando
assim até se chegar ao fim; e então tornaram-se a assentar, como nós. E quando
levantaram a Deus, que nos pusemos de joelhos, eles se puseram assim como nós estávamos,
com as mãos levantadas, e em tal maneira sossegados que certifico a Vossa Alteza que nos
fez muita devoção.
Estiveram assim connosco até
acabada a comunhão; e depois da comunhão, comungaram esses religiosos e sacerdotes; e o
Capitão com alguns de nós outros. E alguns deles, por o Sol ser grande, levantaram-se
enquanto estávamos comungando, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinquenta
ou cinquenta e cinco anos, se conservou ali com aqueles que ficaram. Esse, enquanto assim
estávamos, juntava aqueles que ali tinham ficado, e ainda chamava outros. E andando assim
entre eles, falando-lhes, acenou com o dedo para o altar, e depois mostrou com o dedo para
o céu, como se lhes dissesse alguma coisa de bem; e nós assim o tomámos!
Acabada a missa, tirou o padre a
vestimenta de cima, e ficou na alva; e assim se subiu, junto ao altar, em uma cadeira; e
ali nos pregou o Evangelho e dos Apóstolos cujo é o dia, tratando no fim da pregação
desse vosso prosseguimento tão santo e virtuoso, que nos causou mais devoção.
Esses que estiveram sempre à
pregação estavam assim como nós olhando para ele. E aquele que digo, chamava alguns,
que viessem ali. Alguns vinham e outros iam-se; e acabada a pregação, trazia Nicolau
Coelho muitas cruzes de estanho com crucifixos, que lhe ficaram ainda da outra vinda. E
houveram por bem que lançassem a cada um sua ao pescoço. Por essa causa se assentou o
padre frei Henrique ao pé da cruz; e ali lançava a sua a todos - um a um - ao pescoço,
atada em um fio, fazendo-lha primeiro beijar e levantar as mãos. Vinham a isso muitos; e
lançavam-nas todas, que seriam obra de quarenta ou cinquenta. E isto acabado - era já
bem uma hora depois do meio dia - viemos às naus a comer, onde o Capitão trouxe consigo
aquele mesmo que fez aos outros aquele gesto para o altar e para o céu, (e um seu irmão
com ele). A aquele fez muita honra e deu-lhe uma camisa mourisca; e ao outro uma camisa
destoutras.
E segundo o que a mim e a todos
pareceu, esta gente, não lhes falece outra coisa para ser toda cristã, do que
entenderem-nos, porque assim tomavam aquilo que nos viam fazer como nós mesmos; por onde
pareceu a todos que nenhuma idolatria nem adoração têm. E bem creio que, se Vossa
Alteza aqui mandar quem entre eles mais devagar ande, que todos serão tornados e
convertidos ao desejo de Vossa Alteza. E por isso, se alguém vier, não deixe logo de vir
clérigo para os baptizar; porque já então terão mais conhecimentos de nossa fé, pelos
dois degredados que aqui entre eles ficam, os quais hoje também comungaram.
Entre todos estes que hoje vieram
não veio mais que uma mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à qual deram um pano
com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava
de o estender muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a
de Adão não seria maior - com respeito ao pudor.
Ora veja Vossa Alteza quem em tal
inocência vive se se convertera, ou não, se lhe ensinarem o que pertence à sua
salvação.
Acabado isto, fomos perante eles
beijar a cruz. E despedimo-nos e fomos comer.
Creio, Senhor, que, com estes dois
degredados que aqui ficam, ficarão mais dois grumetes, que esta noite se saíram em
terra, desta nau, no esquife, fugidos, os quais não vieram mais. E cremos que ficarão
aqui porque de manhã, prazendo a Deus fazemos nossa partida daqui.
Esta terra, Senhor, parece-me que,
da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra ponta que contra o norte vem, de que
nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco
léguas de costa. Traz ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras, umas
vermelhas, e outras brancas; e a terra de cima toda chã e muito cheia de grandes
arvoredos. De ponta a ponta é toda praia... muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos
pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender olhos, não podíamos ver senão
terra e arvoredos -- terra que nos parecia muito extensa.
Até agora não pudemos saber se
há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra
em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e- -Minho, porque
neste tempo d'agora assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infinitas. Em
tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das
águas que tem!
Contudo, o melhor fruto que dela se
pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que
Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui
esta pousada para essa navegação de Calicute bastava. Quanto mais, disposição para se
nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa
fé!
E desta maneira dou aqui a Vossa
Alteza conta do que nesta Vossa terra vi. E se a um pouco alonguei, Ela me perdoe. Porque
o desejo que tinha de Vos tudo dizer, mo fez pôr assim pelo miúdo.
E pois que, Senhor, é certo que
tanto neste cargo que levo como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa
Alteza há-de ser de mim muito bem servida, a Ela peço que, por me fazer singular mercê,
mande vir da ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro - o que d'Ela receberei em
muita mercê.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha
de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de Maio de 1500.
PÊRO VAZ DE CAMINHA

Trabalho e pesquisa de Carlos Leite Ribeiro -
Marinha Grande - Portugal
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