
Dia Mundial do Livro
e dos Direitos de Autor
23 de Abril |

DIA MUNDIAL DO LIVRO
No dia 23 de Abril comemora-se, um pouco por todo o Mundo cerca de 100 países
, o Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor, instituído pela Conferência
Geral da UNESCO a 15 de Novembro de 1995.
Neste ano de 2005, ano em que se
comemora o bicentenário da morte de Manuel Maria de Barbosa du Bocage, a Câmara
Municipal de Setúbal/ Biblioteca Municipal de Setúbal, com o apoio do IPLB, assinala o
Dia Mundial do Livro com um conjunto de actividades que tem como fio condutor a vida e
obra deste escritor.
Logo de manhã haverá
distribuição de postais com poemas de Bocage e da "Na Crista da Onda
Bocage", a revista do IPLB dedicada aos escritores portugueses. À frente da
Biblioteca Municipal de Setúbal (serviços centrais) estará montada uma pequena feira do
livro, onde os interessados podem sentar-se na esplanada, ler e beber um café oferecido
pela Nicola.
Mensagem do Director - Geral da
UNESCO - Koichiro Matsuura
O futuro dos livros e dos direitos
autorais é uma questão que diz respeito a todos nós. Não é algo que pode ser deixado
para especialistas, tomadores de decisão, autores, editores e educadores. Esse tema toca
todos aqueles que sonham por um mundo no qual o conhecimento seja compartilhado e os
valores da tolerância, solidariedade e diálogo possam florescer.
Em uma época de crescimento
exponencial de redes electrónicas e de televisão, os livros são instrumentos
extremamente úteis para a expressão da identidade cultural. A distribuição de livros
é essencial para a promoção da diversidade cultural. Aqui, não devemos esquecer o
papel fundamental desempenhado pelos tradutores, sem os quais o diálogo intercultural por
meio dos livros não seria possível.
Livros são um meio poderoso de
projecção internacional e podem se tornar um factor importante para o bem-estar
material. Nós devemos, portanto, trabalhar incessantemente para assegurar o sucesso da
indústria da qual sua existência depende.
Sejam quais forem suas formas, das
mais tradicionais às mais inovadoras, os livros oferecem, agora mais do que nunca, um
meio insubstituível de informação, reflexão crítica e educação. Deste modo, eles
são a base para o edifício, em necessidade constante de consolidação, formado pela
democracia, pelos direitos humanos e liberdades fundamentais, cujas facetas essenciais
incluem a proteção dos direitos dos autores e um acesso público e justo a seus
trabalhos. Um número crescente de pessoas de todas as regiões e formas de associação
conscientiza-se cada vez mais das principais questões envolvidas nesse tema. E isso me
traz grande satisfação.
Livros e direitos autorais, como
forças impulsionadoras da criatividade de todos os povos, têm papel fundamental na
batalha pela paz. Portanto, eu espero que este Dia seja marcado por um grande número de
iniciativas de sucesso ao redor do mundo.
Koïchiro Matsuura
Diretor Geral da UNESCO
Novas tecnologias
obrigam a "redefinição" de direitos de autor
A protecção dos direitos
de autor está definitivamente na ordem do dia como o têm vindo a provar vários
acontecimentos e decisões recentes, a nível europeu e internacional, e como defenderam
hoje os vários oradores presentes numa conferência organizada pela Microsoft sob o tema
"O Desafio do Conhecimento e a Propriedade Intelectual", lembrando que o direito
de autor não morreu com o advento da Internet e de outras tecnologias, mas que terão que
se encontrar novas formas para o defender, como se fez ao longo dos tempos.
Considera-se que o conceito de
propriedade intelectual remonta ao tempo da Grécia Antiga, e enquanto alguns países,
como o Reino Unido começaram a criar leis de patenteabilidade e direitos de autor há 500
anos atrás, a adopção de diplomas consistentes que protejam a propriedade intelectual
avançou de forma desigual no mundo.
Esse facto confrontado com o
surgimento de novas tecnologias e de novos meios de comunicação, como a Internet, veio
colocar um maior desafio à salvaguarda do desenvolvimento de ideias e produtos originais,
procurando-se, hoje em dia, a solução ideal no meio de uma panóplia de propostas que
ainda não se revelaram efectivas na resolução do problema.
Para o economista Augusto Mateus
colocam-se, actualmente, dois tipos de problemas à protecção dos direitos de autor: os
comportamentais e os relacionados com a complexidade dos canais de distribuição.
"Os produtos multicanal são aqueles em que os problemas de protecção à
propriedade intelectual se aplicam mais", considera o docente do Instituto Superior
de Economia e Gestão propondo que a regulamentação seja alargada aos canais de
distribuição.
As soluções regulatórias
encontradas terão igualmente que combater o problema comportamental "desencentivando
à pirataria do software, impedindo que alguns comportamentos se tornem
convencionais", afirmou o responsável para quem a protecção da propriedade
intelectual e industrial é decisiva na criação de sistemas económicos e modernos
competitivos.
A génese comportamental é
igualmente um dos problemas que Patrícia Akester aponta no processo de respeito pelas
obras protegidas por direito de autor. Aliado ao alegado desconhecimento geral que, por
vezes, os utilizadores usam como justificação para as infracções cometidas, existe
igualmente a ideia de que os usos de teor não comercial são sempre legais, como a
disponibilização de uma obra a partir de um site pertencente a uma instituição de
ensino. Tais comportamentos têm de ser combatidos em diversas frentes de modo a fazer
circular o máximo de informação possível sobre o assunto, segundo a investigadora da
Universidade de Cambridge.
Mesmo criando soluções de
protecção de direitos de autor para os formatos digitais, como já existem algumas, a
maior parte das vezes são desrespeitadas sem que os infractores sejam por isso
penalizados, referiu Patrícia Akester, ou por outro lado, existem utilizadores dotados de
conhecimentos tecnológicos que os conseguem neutralizar. Só agora se começa assistir à
responsabilização do infractor, sempre difícil porque a identificação do mesmo é
muito complicada, lembrou a responsável.
"Embora a Internet tenha
convertido a propriedade intelectual num bem primordial, dela advêm muitos perigos para
esta última, já que se assiste a um conflito entre a livre circulação de ideias,
conhecimentos e informações que a Internet incentiva e o direito de autor de impedir o
uso não autorizado das obras", explica Patrícia Akester.
Solução passa pela aposta na
capacidade de renovação do direito de autor
Apesar de todos os problemas que
têm surgido, a investigadora acredita que o direito de autor pode adaptar-se à nova
realidade "tal como se adaptou noutras ocasiões a outras tecnologias que foram
surgindo". "Temos que apostar na capacidade infinita de renovação do direito
de autor", sugere defendendo que para tal será necessário encontrar uma solução
que tenha por base uma aliança entre o direito e a tecnologia.
Nesse âmbito, Patrícia Akester
está a sugerir um método "que não é, com certeza, o ideal, mas é uma
proposta", ressalva, através do qual se procede à identificação da obra e do
utilizador no ciber-espaço por meio do uso combinado da tecnologia de certificação
electrónica e da marca de água, mas onde se procura acautelar a privacidade desse
utilizador.
Qualquer que seja a solução
encontrada, a investigadora considera que as soluções destinadas à detecção de
violações de direitos de autor na Internet terão sempre que manter o equilíbrio entre
os interesses mencionados, "de forma a permitir aos autores o controlo das
utilizações das suas obras (...) e a assegurar o anonimato aos utilizadores, condição
indispensável para a aquisição de obras online", concluiu.
O tema dos direitos de autor na
Internet tem sido amplamente discutido a vários níveis. A atestar a sua actualidade e
importância podemos ver a recente polémica gerada pelo acordo político conseguido em
reunião europeia de Conselho de Ministros, de Maio passado, para a criação de uma
directiva sobre a patenteabilidade do software (ver Notícias Relacionadas).
No que respeita à directiva
europeia para os direitos de autor, Portugal apenas na passada semana fez aprovar o texto
final que transpõe para a legislação final os princípios comunitários. Aprovada no
Parlamento, no passado dia 1 de Julho, a nova legislação aguarda agora a publicação em
Diário da República. A directiva devia ter sido transposta até 22 de Dezembro de 2003.
Assembleia da
República Portuguesa
Lei n.º 99/97 de 3 de Setembro
Autoriza o governo a
legislar em matéria de direitos de autor e direitos conexos
A Assembleia da República decreta,
nos termos dos artigos 164º, alínea e), e 169º, nº 3, da Constituição, o seguinte:
Artigo 1º
É concedida ao Governo
autorização para legislar em matéria de direito de autor e direitos conexos.
Artigo 2º
A autorização legislativa
referida no artigo anterior tem os seguintes objecto e extensão:
a) Transposição para a ordem
jurídica interna da Directiva nº 92/100/CEE, do Conselho, de 18 de Novembro, relativa ao
direito de aluguer, ao direito de comodato e a certos direitos conexos ao direito de autor
em matéria de propriedade intelectual;
b) Transposição para a ordem
jurídica interna da Directiva nº 93/83/CEE, do Conselho, de 27 de Setembro, relativa à
coordenação de determinadas disposições em matéria de direito de autor e direitos
conexos aplicáveis à radiodifusão por satélite e à retransmissão por cabo;
c) Transposição para a ordem
jurídica interna da Directiva nº 93/98/CEE, do Conselho, de 29 de Outubro, relativa à
harmonização do prazo de protecção do direito de autor e de certos direitos conexos.
Artigo 3º
A autorização legislativa
prevista na alínea a) do artigo 2º tem o seguinte sentido:
a) Alterar a alínea f) do nº 2 do
artigo 68º do Código do Direito de Autor e dos Direitos
Conexos, incluindo na sua previsão
a referência às formas de distribuição do original ou de cópias da obra, tais como a
venda, o aluguer e o comodato;
b) Definir os conceitos de venda,
aluguer e comodato para efeitos do disposto na alínea f) do nº 2 do artigo 68º do
Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos;
c) Estabelecer o direito
irrenunciável a uma remuneração equitativa nos casos de transmissão ou cedência do
direito de aluguer;
d) Estabelecer o direito a uma
remuneração nos casos de comodato público e definir a entidade responsável pelo seu
pagamento;
e) Isentar algumas entidades do
pagamento da remuneração referida na alínea anterior, tendo em conta objectivos de
promoção cultural;
f) Estender o direito de
distribuição aos titulares de direitos conexos;
g) Reconhecer ao produtor das
primeiras fixações de um filme o direito de autorizar a reprodução do original e das
cópias;
Artigo 4º
A autorização legislativa
prevista na alínea b) do artigo 2º tem o seguinte sentido:
a) Estender o regime jurídico
constante dos artigos 149º a 156º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos
à radiodifusão por satélite e à retransmissão por cabo;
b) Definir, para efeitos de
aplicação do diploma autorizado, os conceitos de "satélite",
"comunicação ao público por satélite" e "retransmissão por cabo",
c) Estabelecer, a favor do autor, o
direito exclusivo de autorização da comunicação ao público por satélite, a conceder
por contrato individual ou por acordo colectivo;
d) Estender os efeitos dos acordos
colectivos tendo por objecto a comunicação por satélite, celebrados entre uma entidade
de gestão do direito de autor e um organismo de televisão, relativos a obras musicais,
com ou sem palavras, aos titulares de direitos sobre essas obras não representados por
essa entidade, desde que a comunicação se verifique em simultâneo com uma emissão
terrestre pelo mesmo radiodifusão e esses titulares possam excluir a extensão do acordo
às suas obras e exercer os seus direitos, individual ou colectivamente;
e) Estabelecer que o direito de
autorizar ou proibir a retransmissão por cabo só pode ser exercido através de uma
entidade de gestão colectiva do direito de autor;
f) Estender aos titulares de
direitos de autor não inscritos na entidade de gestão colectiva de direitos de autor os
mesmos direitos e obrigações que cabem aos seus membros, resultantes de contrato
celebrado com operador por cabo;
g) Estender aos artistas -
intérpretes ou executantes, produtores de fonogramas e videogramas e organismos de
radiodifusão, no que diz respeito à comunicação ao público por satélite, o disposto
nos artigos 178º, 184º e 187º do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos,
bem como nas normas que venham a concretizar as alíneas c), d), e) e f) do presente
artigo;
Artigo 5º
A autorização legislativa
prevista na alínea c) do artigo 2º tem o seguinte sentido:
a) Alterar o Código do Direito de
Autor e dos Direitos Conexos, estabelecendo a regra geral da caducidade do direito de
autor 70 anos após a morte do criador intelectual;
b) Alterar o Código do Direito de
Autor e dos Direitos Conexos, adaptando a regra geral enunciada na alínea a) aos casos de
obra de colaboração e de obra colectiva, de obra anónima ou equiparada, de obra
cinematográfica ou audiovisual, de obra fotográfica, de obra publicada ou divulgada em
partes e de programa de computador;
c) Alterar o Código do Direito de
Autor e dos Direitos Conexos, estabelecendo que as obras que tiverem origem num país fora
da União Europeia e cujo autor não seja nacional de um dos Estados membros gozam da
protecção prevista no país de origem, desde que não ultrapasse a fixada nas alíneas
precedentes;
d) Alterar o Código do Direito de
Autor e dos Direitos Conexos, estabelecendo que uma obra cai no domínio público
decorridos os prazos de caducidade enunciados nas alíneas precedentes ou, se se tratar de
obra que não foi licitamente publicada ou divulgada, no prazo de 70 anos a contar da sua
criação, quando tal prazo não seja calculado a partir da morte do autor;
e) Alterar o Código do Direito de
Autor e dos Direitos Conexos, estabelecendo que a publicação ou divulgação lícita de
uma obra inédita caída no domínio público beneficia de uma protecção idêntica à
resultante dos direitos patrimoniais do autor, por um período de 25 anos contados a
partir da publicação ou divulgação;
f) Alterar o Código do Direito de
Autor e dos Direitos Conexos, estendendo a regra enunciada na alínea anterior às
publicações críticas e científicas de obras caídas no domínio público;
g) Alterar o Código do Direito de
Autor e dos Direitos Conexos, estabelecendo a regra geral da caducidade dos direitos
conexos 50 anos após um dos seguintes pactos: a representação ou execução pelo
artista-intérprete ou executante; a primeira fixação, pelo produtor, do fonograma,
videograma ou filme; a primeira emissão pelo organismo de radiodifusão;
h) Alterar o Código do Direito de
Autor e dos Direitos Conexos, adaptando a regra da contagem do prazo de caducidade de 50
anos, no caso de a fixação da representação ou execução do artista-intérprete ou
executante, o fonograma, o videograma ou o filme terem sido objecto de publicação ou
comunicação lícita ao público;
i) Alterar o Código do Direito de
Autor e dos Direitos Conexos, estendendo aos titulares dos direitos conexos a regra
constante da alínea c);
j) Estabelecer que os prazos de
caducidade previstos no diploma autorizado só começam a correr no 1º dia do ano
subsequente ao respectivo facto gerador;
k) Reportar os efeitos do diploma
autorizado a 1 de Julho de 1995, abrangendo todas as obras protegidas nessa data em
qualquer país da União Europeia;
l) Estabelecer protecção adequada
aos sucessores do autor, em consequência do alargamento do prazo de caducidade, sem
prejuízo dos factos passados e dos direitos adquiridos por terceiros.
Artigo 6º
A autorização legislativa
concedida pela presente lei tem a duração de 90 dias desde a data da sua entrada em
vigor.
Aprovada em 24 de Julho de 1997.
O Presidente da Assembleia da
República, António de Almeida Santos.
Livro e leitura no novo
ambiente digital - por José Afonso Furtado
O desenvolvimento e a
rápida expansão das novas tecnologias de Informação e de Comunicação e a passagem
para uma sociedade de informação, digital ou de rede, em que a Internet e a World Wide
web assumem uma especial importância, têm levantado diversas questões sobre a natureza
e funções do livro tal como tradicionalmente o temos conhecido e mesmo sobre o seu
eventual desaparecimento.
Neste quadro, Roger Chartier tem
vindo a insistir em que, muito embora situações aparentemente semelhantes sejam
recorrentes na história do livro e dos meios de comunicação, o momento em que nos
encontramos configura uma "revolução" mais radical do que todas as anteriores
por abranger, pela primeira vez em simultâneo, um conjunto de mutações que até agora
tinham ocorrido em separado. Na verdade, argumenta Chartier, muitas das categorias
através das quais nos temos relacionado com a cultura escrita estão a alterar-se, pois
assistimos a mudanças nas técnicas de reprodução do texto, na forma ou suporte do
texto e ainda nas práticas de leitura. Ora, no passado, isso nunca sucedeu: "a
invenção do códice no Ocidente não modificou os meios de reprodução dos textos ou
dos manuscritos. A invenção de Gutenberg não modificou a forma do livro. As
revoluções nas práticas de leitura ocorreram no contexto de uma certa estabilidade quer
nas técnicas de reprodução dos textos quer na forma e materialidade do objecto. Mas
hoje estas três revoluções - técnica, morfológica e material estão
perfeitamente interligadas." Essa singularidade leva a que enfrentemos uma crise nas
categorias que têm permitido a nossa ligação com o livro e com a sua cultura. Por
exemplo, acrescenta Chartier, as que dizem respeito à propriedade e ao copyright, que se
cristalizaram durante o século XVIII, encontram agora diversas dificuldades face às
características do texto electrónico. Mas o mesmo se passa com a noção da identidade
do livro, identidade que é simultaneamente textual e material. Até agora, os géneros
textuais podiam distinguir-se imediatamente pela sua materialidade específica.
"Todos sabemos que um livro não é um jornal, que por sua vez também não é uma
carta... Mas no mundo dos textos electrónicos esta diferença tende a
desaparecer."(1)
Patrick Bazin refere então que a
"ordem do livro" que tem sido a nossa e que conformava um campo simultaneamente
cognitivo, cultural e político "em torno do qual o objecto livro ocupava a posição
central", se encontra já em plena reconfiguração. Mais ainda, essa "«cultura
do livro», ou seja, uma certa maneira de produzir saber, sentido e sociabilidade vai
pouco a pouco desvanecendo-se." (2)
Muito embora, como lembra George
Steiner, noções como as do "Livro da Vida" ou da "Revelação",
sejam basicamente de origem greco-judaica e nunca tenham sido familiares ou imediatas para
a maior parte da humanidade, quaisquer "mudanças fundamentais no estatuto do
textual, do livro concebido como idioma da mente ou como fonte da vitalidade do espírito
(...) tocam a substância da filosofia, da lei, das doutrinas políticas, da história e
da literatura ocidentais. (...) E, acrescenta, também "a nossa experiência do
passado, as nossas práticas de memória, são livrescas em todo o sentido do termo".
(...) De um modo quase impensado, entendemos, imaginamos livros quando reflectimos sobre a
criação e a invenção, sobre as relações do pensamento e da imaginação com o tempo,
sobre o arquivo dos erros e do conhecimento". (3)
Na verdade, da palavra de Deus à
palavra do homem, o livro tornou-se a garantia da memória, da existência da ordem e da
lei, parecendo ter recolhido da Bíblia uma suplemento do sagrado que lhe confere um claro
privilégio de autoridade.
Por outro lado, Yvonne Johannot
refere que "o recurso aos textos antigos" (...), "a transmissão do
conhecimento através das gerações, assegura simbolicamente uma coerência e
homogeneidade a todo o género humano..." Desse modo, para Petrarca, a Antiguidade
são os livros que leu, os manuscritos que procurou pacientemente e que estudou e explicou
graças as seus conhecimentos filológicos. Petrarca que chegará a afirmar que a
destruição de um livro é como que uma "segunda morte" para o seu autor, pois
só a sua obra se encontra por excelência investida da autoridade para o representar. (4)
Esta concepção do livro, diz
ainda Johannot, "privilegia a actividade intelectual, elide o corpo do autor em
benefício da sua obra, confunde o passado com as ideias transmitidas pelos textos que
chegaram até nós e torna o livro o objecto incomparavelmente valorizado de uma cultura
elitista. É a concepção dos humanistas e foi ela que viemos a herdar." (5)
Sendo inegável que o livro, a
leitura e as suas práticas ou os modos de apropriação dos textos, bem como a nossa
relação com a escrita, se encontram num momento de rápida transformação, impõe-se
reflectir sobre como se traduzem essas mudanças na "ordem do livro" que
referimos. Na verdade, encontramo-nos num campo de turbulência, em que se assiste cada
vez mais a experiências no âmbito da edição electrónica e ao aparecimento de obras
para leitura em écrã, de dispositivos portáteis de leitura de textos digitalizados, à
multiplicação de publicações em diversos formatos e linguagens mark-up e ao
desenvolvimento de software para potenciar condições dessa "nova" leitura.
Mas, para Clifford Lynch, o que
está realmente a acontecer é ainda mais complexo do que a emergência de novos canais de
comercialização de livros ou de um novo tipo de dispositivo electrónico de consumo.
"O que está em jogo é muito mais fundamental: como vamos pensar os livros no mundo
digital e como irão estes comportar-se? De que modo vamos usá-los, partilhá-lhos e em
que termos nos vamos referir a eles? Em particular, quais são as nossas expectativas
sobre a persistência e permanência da comunicação humana com base nos livros, à
medida em que entramos no «brave new digital world»? Continuará o nosso pensamento a
ser dominado pelas convenções e modelos de negócio da edição impressa (...) e pelas
nossas práticas culturais, expectativas de consumidor, quadros legais e normas sociais
ligadas aos livros ou irão essas tradições desaparecer, talvez a favor de práticas em
desenvolvimento em indústrias como a música?"
Salientam-se então três temas
cruciais na transição para o mundo digital e que a agitação em torno dos e-books pode
ocultar: a natureza do livro no mundo digital como forma de comunicação; o controlo dos
livros nesse mesmo mundo, incluindo as relações entre autores, consumidores/leitores e
editores e, por extensão, o modo como viremos a gerir a nossa herança cultural e o nosso
passado intelectual; e a reestruturação das economias da autoria e edição." (6)
Nesta perspectiva, convém antes do
mais esclarecer o sentido de alguns termos pois, na verdade, encontramo-nos perante uma
grande instabilidade semântica, provavelmente inevitável face a uma realidade em
constante mudança.
A edição electrónica apresenta
então características específicas que vão desde a sua enorme capacidade de
armazenamento de dados até à rapidez da sua produção e disseminação, facilidade de
actualização e correcção ou potencialidades colaborativas e interactivas. Nessa
medida, os produtos por ela gerados apresentam óbvias vantagens em relação à edição
tradicional no que se refere à disponibilidade do conteúdo (tempo e local de entrega e
dimensão da informação), à transparência e interactividade do conteúdo
(interactividade, possibilidade de integração de conteúdos e serviços e instrumentos
de pesquisa), e ao formato do conteúdo (hipertexto e multimédia).
No corpus em construção da
edição electrónica encontramos basicamente dois géneros de textos: por um lado,
representações derivadas ou secundárias de livros impressos e publicados ou de textos
pensados primariamente para publicação impressa (a que Geoffrey Nunberg chama
"versões electrónicas"); por outro, publicação de textos electrónicos
pensados e concebidos para se moverem em suportes electrónicos desde o seu início, que
exploram as capacidades específicas do universo digital, ligados à vulgarização de
ambientes hipertextuais e que questionam algumas das noções tradicionalmente
atribuíveis aos textos da cultura do impresso.
Acontece que, neste momento, todos
estes desenvolvimentos coexistem, o que confirma que, no interior das próprias
inovações tecnológicas, os movimentos não são uniformes nem síncronos e que a mesma
invenção pode conter diversas evoluções e potenciais utilizações.
Deve pois evitar-se a tendência
redutora de atribuir as mudanças emergentes, designadamente nos meios e nas formas de
comunicação, exclusivamente aos recentes desenvolvimentos tecnológicos. Os efeitos das
tecnologias nunca são intrínsecos a um média em particular, são sempre mediados pelos
usos que lhe são atribuídos e variam com o contexto em que são utilizadas. Por isso,
Mark Bide chama a atenção para o facto de, "se olharmos apenas para o lado
tecnológico, a mudança no sentido da distribuição de conteúdos em rede parece
imparável. (...) No entanto, a existência de uma infra-estrutura tecnológica não
garante por si só uma utilização neste ou naquele sentido nem define
deterministicamente o tipo de impacte sobre o sector da edição. É pois necessário
olhar para além dos factores tecnológicos de mudança e reconhecer que são as
dimensões culturais, sociais e económicas e o modo como elas interagem com as novas
tecnologias que vão, na realidade, afectar a edição do futuro" (7).
É compreensível que esse acento
tónico na "distribuição" tenha contribuído para que, nos anos mais recentes,
o termo "livro electrónico" ou "e-book" se tenha visto apropriado
pelas empresas que vendem dispositivos electrónicos para apresentação de textos
digitais. Mas, na realidade, o e-book tanto tem vindo a ser entendido como o conteúdo que
se lê (uma versão digital paperless de um livro, artigo ou outro documento) como acaba
por se confundir com o dispositivo computacional onde se lê, que pode por sua vez ser
dotado de maior ou menor grau de portabilidade. É certo que, antes do mais, se deve
sublinhar que, em relação ao livro impresso, os produtos da edição electrónica exigem
um suporte hardware e um software sem o qual não é possível o acesso à informação.
Por isso nos parece que uma definição operativa deve passar por utilizar o termo e-book
no sentido de um conteúdo digital ou digitalizado destinado a ser publicado e acedido
electronicamente, o que implica o recurso a equipamentos electrónicos e a software. Frank
Romano, por exemplo, define-o como "a apresentação de ficheiros electrónicos em
monitores digitais. Embora o termo «e-book» implique informação direccionada para o
livro, outros conteúdos podem também ser disponibilizados nesses dispositivos. Para
além de texto e imagens estáticas, que são os casos típicos, é ainda possível
apresentar som e imagens em movimento. Os ficheiros e-book podem ser fornecidos como
unidades gravadas (discos) ou descarregadas a partir de repositórios digitais (incluindo
Web sites) para computadores desktop, para laptops, para assistentes digitais portáteis,
telefones celulares, ou para dispositivos digitais de leitura dedicados (também eles
vulgarmente chamados «e-books»).(8) Contudo, acrescentamos nós, a estes últimos será
mais correcto chamar e-book readers. Lynch chama ainda a atenção para que se não deve
conceber um e-book apenas como o substituto de um livro que pode também estar disponível
sob forma impressa já que, se tivermos em conta a trajectória do preço-performance do
armazenamento, dentro em pouco alguns produtos de ponta estarão em condições de
hospedar centenas ou mesmo milhares de obras simultaneamente. O que implica que se pense
não apenas em livros electrónicos mas em bibliotecas pessoais digitais, o que confere
uma dimensão bem diferente ao que no processo de mudança pode estar em jogo. (9)
Se, a partir daqui, seguirmos a
metodologia proposta por Brunella Longo, podemos distinguir basicamente três
macro-categorias que, embora determinando no seu interior uma grande variedade de
fórmulas, podem ajudar a identificar as diversas funções exercidas no mercado do livro
e da edição electrónica pelas componentes hardware, software e de serviço (10). Em
primeiro lugar, a categoria de livros electrónicos que requerem equipamentos de leitura
específicos e dotados de software proprietário para a leitura em ecrã. Uma segunda
categoria é constituída por livros e documentos electrónicos que se descarregam a
partir da Internet para máquinas convencionais e que são acessíveis através de um
adequado software de leitura. Por último, encontramos uma gama crescente de serviços Web
baseados na criação e desenvolvimento de bancos de dados de texto integral. O conjunto
destes três pontos configura o sector que tem mobilizado nos anos mais recentes
investimentos assaz significativos por parte dos grandes grupos editoriais e de companhias
operando tradicionalmente no sector da informática, que rapidamente ocuparam o espaço
onde durante algum tempo se movimentaram livremente pequenas start-up companies. No
entanto, apesar de diversas previsões entusiásticas quanto ao sucesso dos livros
electrónicos, o estado da questão é bem menos risonho, pois a edição electrónica é
um segmento em rápida mas diferenciada evolução, pouco sedimentado, onde coabitam
iniciativas que em geral remetem para acções de auto-publicação a par de outras mais
consistentes e que propõem produtos de elevada qualificação profissional. Mas, no
essencial, o sector foi em geral incapaz de dar origem a um mercado com a massa crítica
indispensável para a sua sustentabilidade. Uma das razões para esse insucesso
encontra-se certamente na ausência de uma clara concepção do produto. Refiro-me aqui
não apenas à multiplicidade de fórmulas em presença, como à indefinição em
relação a uma filosofia de replicação electrónica ou de edição digital, a uma
perspectiva monofunção ou multifunção e ainda à simbiose produto/tecnologia/público
alvo. No entanto, para alguns críticos mais radicais, o que acontece é que o livro
electrónico, tal como o descrevemos, é ainda um avatar do livro impresso. Como escreve
Jean Clément, "longe de constituir uma passo em direcção ao futuro, não é mais
do que o derradeiro sinal da nossa ligação nostálgica a um objecto à beira do
desaparecimento." (11) E se a autonomia em relação ao computador, um menor custo e
progressos nas condições de legibilidade são, a seu ver, trunfos importantes para o
livro electrónico, eles acabam por o aproximar ainda mais do livro impresso e são
completamente ineficazes para o destronar. Verifica-se assim que, "depois de ter sido
separado do seu suporte (o livro papel), o texto se encontra de novo sujeito a um
dispositivo material. Está relocalizado, identificado, cadeado e volta a apresentar as
propriedades de um objecto comercial clássico." Neste cenário, para Clément, a
tradicional cadeia do livro encontrou uma vez mais o modo de se perpetuar, pois "as
grandes manobras em curso no domínio da edição têm um objectivo bem simples - como
continuar a conseguir lucros na cadeia do livro na hora do electrónico? e não
são mais do que uma resposta às ameaças levantadas pela disseminação dos textos na
Internet." Mas esta resposta "não se encontra à altura das questões culturais
e intelectuais que a digitalização das obras do espírito coloca." (12) Na verdade,
prossegue, "este novo objecto (...) oferece poucas vantagens em relação ao livro
tradicional. Tentando imitá-lo, empobrece-o." Deste ponto de vista, "trata-se
de uma regressão em relação às promessas do electrónico." Essas promessas eram
as de uma biblioteca universal tal como Ted Nelson a imaginava em 1965 no seu projecto
Xanadu ou as do "expanded book", termo lançado pelos promotores das edições
Voyager em 1984, aproveitando as "vantagens conjugadas do suporte digital (primeiro o
disco laser e depois o CD-ROM) e do software Hypercard, o primeiro software hipertexto
destinado ao grande público." Face a essas promessas, o e-book é um livro fechado,
"fechamento que é acompanhado pela sua estruturação hierárquica. Todas as
tecnologias elaboradas para os e-books tendem a tornar fixa a estrutura do texto ao
reproduzir a do papel." (13) Por fim, do lado da criação, "vira as costas a
novas formas por vezes bastante afastadas da nossa cultura do livro e, designadamente, a
uma nova escrita que se caracteriza por três aspectos essenciais: por ser hipertextual,
distribuída, e dinâmica e multimédia. Concluindo, para Clément, "assegurar a
sucessão do livro na hora electrónica, não é apenas procurar reproduzi-lo do modo mais
fiel possível, é também explorar as novas potencialidades oferecidas pelo digital, é
ter em consideração a ruptura fundamental que ocorreu entre o texto e o seu suporte. É
passar do livro-objecto ao livro-biblioteca, ao livro interactivo, ao livro em rede, ao
livro multimédia." (14) Deste modo se declinam alguns dos pontos que levam a
desencontros teóricos profundos no campo da edição electrónica: na realidade, a
geração de publicações que exploram as capacidades específicas do universo digital, o
crescimento exponencial da Web, a vulgarização do trabalho em rede e de ambientes
hipertextuais questionam algumas noções atribuíveis aos textos da cultura do impresso,
como a fixidez, linearidade, sequencialidade, autoridade ou finitude, provocando
transformações nas clássicas definições de autor, leitor e suas relações mútuas.
Estes pontos integram já a agenda teórica do hipertexto e, nela, do aparecimento de
diversos e novos géneros textuais. Campo em que é exigível uma atitude prudente face a
algumas posições relativamente generalizadas. Entre elas, a de que a acelerada
evolução no campo das tecnologias digitais terá provocado alterações críticas nos
modos de escrever e de ler; mas também, como refere Espen Aarseth, "a tendência
para descrever os novos média textuais como absolutamente diferentes dos anteriores, com
atributos determinados pela tecnologia material do medium." Em ambos os casos,
"a inovação técnica surge como causa de progresso social e político e de
libertação intelectual face aos média anteriores." No âmbito dos géneros
literários, esta posição levou à convicção de que "as tecnologias digitais e os
seus recursos possibilitam que os leitores se transformem em autores ou, pelo menos, de
que a distinção entre ambos seja cada vez menos nítida, já que o leitor poderia criar
a sua própria «estória» «interagindo» com o computador. As forças ideológicas que
rodeiam as novas tecnologias produzem uma retórica de novidade, diferenciação e
liberdade que contribui para obscurecer as relações estruturais mais profundas entre
média superficialmente heterogéneos." Por fim, o mesmo Aarseth refere-se ainda a um
outro problema que passa por uma aplicação algo descuidada das teorias da crítica
literária a um novo campo empírico, sem qualquer reavaliação dos termos e conceitos
nele envolvidos. (15) Isso não tem impedido que nestes anos mais recentes alguns desses
novos géneros textuais tenham encontrado boa fortuna, particularmente os ligados aos
conceitos de hipertexto e, mais concretamente, as chamadas narrativas hipertextuais ou
hiperficção.
Comecemos então por enfrentar esta
noção, o hipertexto, e o que nela se vem jogando, até porque a primeira utilização
explícita do termo já tem praticamente quarenta anos e o artigo seminal de Vannevar Bush
mais de cinquenta. Luciano Floridi considera que, passado este tempo, os hipertextos
adquiriram tantos atributos e desenvolveram-se em tipologias tão diferentes que uma
definição englobante se arrisca a ser ou muito genérica ou muito controversa. Mas que
vale a pena assumir esse risco, até pelo que isso poderá ajudar a clarificar alguns
conceitos equívocos referentes à natureza do hipertexto. Então, na sua definição
abrangente, "um texto é um hipertexto se, e só se, for constituído por:
1. Um conjunto discreto de unidades
semânticas (nós) que, nos melhores casos, têm um baixo peso cognitivo, como parágrafos
ou secções, mais do que páginas ou capítulos. Estas unidades, definidas por Roland
Barthes como lexia (
) podem ser: a) documentos alfanuméricos (hipertexto puro); b)
documentos multimédia (hipermédia); c) unidades funcionais (isto é, agentes, serviços
ou applets
), caso em que temos o hipertexto ou o hipermédia multifuncional.
2. Um conjunto de associações -
links ou hiperlinks incrustados em nós por intermédio de áreas formatadas especiais,
conhecidas como âncoras (anchors) de origem e de destino conectando os nós. Estas
são referências cruzadas activas e estáveis que permitem ao leitor mover-se
imediatamente para outras partes de um hipertexto.
3. Um interface dinâmico e
interactivo. Isto possibilita ao leitor identificar (...) e operar com as âncoras (...)
com a finalidade de consultar um nó a partir de outro (...). Os interfaces também podem
apresentar mais facilidades de navegação, como uma representação espacial, a priori,
de toda a estrutura da rede quando o sistema é fechado e suficientemente limitado
para ser totalmente apresentado num mapa (o chamado sistema sky-view) -, ou um sistema a
posteriori do registo cronológico da história dos links seguidos
(
)". (16)
Floridi refere ainda alguns
equívocos recorrentes sobre o hipertexto, a que chama falácias, interessando-nos aqui
particularmente duas delas: em primeiro lugar, a falácia electrónica, segundo a qual o
hipertexto seria unicamente um conceito computer-based. Ora, na verdade, essa posição é
incorrecta e deve-se à confusão entre o nível físico e nível conceptual. Como o
«Memex» mostra, "um hipertexto é uma estrutura conceptual que foi originalmente
concebido em termos completamente mecânicos. (
) É certo que nós e links só podem
ser implementados eficientemente e em larga escala por um sistema de informação que
possa, em primeiro lugar, unificar todos os documentos, formatos e funções que usam o
mesmo medium físico e, em segundo lugar, proporcionar um interface interactivo que possa
responder aos inputs externos quase em tempo real. E é igualmente óbvio que os
computadores se ajustam de um modo preciso a esse papel. Mas o memex ou Xanadu são, como
a máquina de Turing, modelos teóricos. A electrónica digital, embora praticamente vital
para o seu desenvolvimento, é em geral conceptualmente irrelevante para o seu
entendimento". Em segundo lugar, a falácia literária, segundo a qual o hipertexto
teria começado primariamente como uma técnica narrativa, sendo pois essencialmente uma
nova forma de género literário. Também esta noção é incorrecta. Na verdade, "os
hipertextos foram encarados em primeiro lugar e permanecem antes do mais, como sistemas de
recuperação de informação, usados para recolher, ordenar, agrupar, actualizar,
pesquisar e recuperar informação de um modo mais fácil, rápido e eficiente". E,
na realidade, o hipertexto fornece meios potentes e efectivos para integrar e organizar
documentos em colecções coerentes com referências cruzadas extensas, estáveis e
imediatamente disponíveis. Em consequência disso, "o formato hipertexto tornou-se o
formato standard para software educativo interactivo, obras de referência, livros de
texto e documentação técnica, ou para a própria Web..." (17)
Por outro lado, para Floridi, o
hipertexto, como princípio organizacional da estrutura tipológica do nosso espaço
intelectual (...) abre a infoesfera para um crescimento sem limites. Parece então
razoável descrever o hipertexto como "o princípio logicamente constitutivo de
organização do hiperespaço representado pela infoesfera. (
) E, em vez de tentar
impor uma linha de divisão entre diferentes tipos de documentos, é mais útil reconhecer
que o hipertexto, como organização relacional de documentos digitais, ajuda a unificar,
a tornar mais fina e eventualmente mais acessível a estrutura intertextual e infratextual
da infoesfera." (18) Recorde-se que, para Floridi, a infoesfera é "todo o
sistema de serviços e documentos, codificados em qualquer média semiótico e físico,
cujos conteúdos incluem qualquer espécie de dados, informações e conhecimentos, sem
limitações de dimensão, tipologia ou estrutura lógica. No que se refere à infoesfera,
o poder simbólico-computacional dos instrumentos das TIC é empregue para fins que vão
para além da solução de problemas numéricos complexos, do controlo de um mundo
mecânico ou da criação de modelos virtuais. A ciência dos computadores e as TIC
fornecem os novos meios para gerar, fabricar e controlar o fluxo de dados e informações
digitais (...), gerindo assim o seu ciclo de vida (criação, input, integração,
correcção, estruturação e organização, actualizações, armazenamento, pesquisa,
interrogação, recuperação, disseminação, transmissão, uploading, downloading,
linking, etc.)" (19).
Este ponto é decisivo para
entendermos que, independentemente de o hipertexto, como ferramenta técnica, se poder
considerar como programa, como software ou como diferentes tipos de «hypermedia system
designs» e portanto dos documentos ou web sites a que dá forma e dá estrutura, nos
encontramos cada vez mais envolvidos num ambiente hipertextual pois o hipertexto é
também o princípio organizacional da estrutura do nosso espaço intelectual. Questão da
maior importância para abordar o problema das competências culturais nas sociedades
contemporâneas, como adiante veremos.
Alguns autores têm procurado
encontrar pontos de referência nesta realidade de múltiplos registos. Assim, Alberto
Cadioli distingue entre hipertextos de tipo ensaístico (que, por sua vez, Maria Augusta
Babo refere como relevando da "reconfiguração do livro-representação") e
hipertextos literário-criativos, dotado de uma elevada função estética. (20) Os
primeiros são utilizados para conectar informações de documentos já existentes (com
afinidades que o justifiquem), com vantagens no campo da investigação ao facilitar a
consulta de documentos e livros, "não implicando que esses livros abdiquem da sua
integridade e existência física", e que encontram enormes mais-valias ao serem
digitalizados e sobrecodificados em linguagens e protocolos hipertextuais. Basta pensarmos
em hipertextos como o projecto Perseus, as várias Webs de George Landow ou o Rossetti
Archive, para verificarmos como se tratam de trabalhos com aspectos de absoluta inovação
face aos textos impressos. Jerome McGann, responsável pelo Rossetti Archive (21), escreve
que os "hipertextos nos permitem navegar através de grandes massas de documentos e
ligar esses documentos, ou partes deles, de modos complexos. As relações podem ser
definidas previamente (como nas várias «webs» de Landow) ou podem ser desenvolvidas
«on the fly» (através de relações criadas na marcação SGML de uma obra). (
)
Estas redes documentais podem ser organizadas de modo interactivo, permitindo inputs do
leitor/utilizador. Podem ser distribuídas de uma forma auto-contida (por exemplo, em
discos CD-ROM), ou podem ser estruturadas para transmissão através da Rede." (22)
Referindo-se à sua experiência, acrescenta que "é importante compreender que o
projecto Rossetti é um arquivo e não uma edição. Quando um livro é produzido, ele
fecha-se literalmente em si mesmo. Se a obra tiver continuação, têm de ser produzidas
de modo similar novas edições ou outros livros com ela relacionados. Uma obra como o
Rossetti Hypermedia Archive escapa a essa limitação bibliográfica. Foi construída de
modo a que os seus conteúdos e a sua webwork de relações (internas ou externas) possam
ser indefinidamente expandidos e desenvolvidos." Mais ainda, ao invés das edições
tradicionais, a edição computorizada permite armazenar enormes quantidades de
documentação e pode ser construída de modo a organizar, a aceder e a analisar esses
materiais não só mais rápida e facilmente como com uma profundidade a que nenhuma
edição em papel pode aspirar." No entanto, McGann não deixa de esclarecer dois
aspectos. Antes do mais, as suas posições têm apenas a ver com corpos textuais que são
instrumentos de conhecimento científico. De seguida, afirma que "os entusiastas do
HyperText fazem por vezes algumas extravagantes declarações.... (...) Afirmar que um
HyperText não se encontra centralmente organizado não significa (...) que a sua
estrutura não tenha princípios directores (...). Essa estrutura tem claramente muitas
partes e secções ordenadas e está organizada para permitir pesquisas directas e
operações analíticas. Nesse sentido, o HyperText está sempre estruturado de acordo com
um conjunto inicial de planos de design que se ajustam aos materiais específicos no
HyperText e às necessidades previstas dos utilizadores desses materiais."(23) Este
segundo ponto pode levar a pensar em alguns teorizadores e cultores do hipertexto
literário-criativo.
Este tipo de hipertexto, o
literário-criativo, está virado "para a produção de obras concebidas
propositadamente para serem lidas no registo hipertextual", e nele "o género
ficcional parece ser o grande beneficiário" devido ao desaparecimento dos limites
postos à imaginação do escritor pelo livro impresso".
Nessa perspectiva, as tecnologias
digitais proporcionariam então novas possibilidades de criação literária e
constituiriam a satisfação de um desejo antigo dos escritores graças às suas
potencialidades de escrita não linear, à possibilidade de uma maior participação do
leitor ou à inclusão, no corpo do texto, de elementos não verbais. Jean Clément chega
a afirmar que "a generalização das técnicas hipertextuais é o resultado da
conjugação de uma mudança epistemológica e de uma técnica, sendo que a mudança
epistemológica diz respeito ao estatuto do texto na crítica contemporânea." (24)
E, na verdade, é nesta área da reflexão sobre a escrita que encontramos as perspectivas
teóricas mais elaboradas, a propósito quer do hipertexto em geral quer do hipertexto
como instrumento para a criação literária. Essa é a opinião de Giulio Lughi, que
menciona alguns pontos de referência literária e teórica em que se fundamenta essa
reflexão, desde "os grandes experimentadores do passado (de Rabelais e Sterne até
Joyce e Borges) à vanguarda experimental contemporânea (Robbe-Grillet, Saporta, Pavic) e
aos teóricos da centralidade do leitor (de Barthes a Iser), tudo num contexto teórico em
que têm um papel decisivo os conceitos de descentramento, segmentação e rede, remetidos
para o desconstrucionismo de Derrida. Nesta perspectiva, o hipertexto literário é
entendido como a realização de instâncias teóricas já pré-existentes no plano
filosófico e cultural, como o banco de testes em que se analisa a dissolução da
centralidade do texto, a multiplicação dos pontos de vista e a livre iniciativa do
leitor." (25) Não admira assim que Clément, considere que o hipertexto traz uma
resposta tecnológica à problemática deleuziana.
São conhecidos os principais
pontos da argumentação desenvolvida por figuras como George Landow, Jay Bolter ou
Richard Lanham: a reconcepção da textualidade (que passa por aspectos como o abandono da
linearidade, o texto como rede, o texto aberto, a dispersão do texto, a questão da
intertextualidade, o tema dos múltiplos começos e fins e o descentramento do texto), a
redefinição do autor, a redefinição do leitor, o rompimento do cânone e os novos
modos de ler e de escrever.
Desse modo, quando se analisa o
campo literário da escrita hipertextual, convém ter em conta, para além das próprias
hiperficções, estas perspectivas teóricas. Ou seja, refere Aarseth, os pressupostos
normativos das teorias iniciais do hipertexto "devem ser compreendidas à luz de um
projecto de âmbito mais vasto no seio da sua primitiva comunidade, projecto que tentava
associar a tecno-ideologia do hipertexto aos vários paradigmas da teoria do texto."
(26) Como escreve Rune Daalgard, "a justificação para as reivindicações
ideológicas feitas a partir do hipertexto assumem normalmente uma de duas formas: ou uma
convicção de que o hipertexto possui um novo potencial crítico e reflexivo para
alguns, o hipertexto encontra-se mesmo explicitamente associado a uma filosofia
específica ou a uma atitude crítica - ou, alternativemente, uma ideia, já presente no
«Memex» de Bush, de que o hipertexto se encontra mais próximo do pensamento associativo
humano do que o texto impresso." (27)
Num artigo clássico de 1992, The
End of Books, Robert Coover afirmava que "o romance, como o conhecemos, chegou ao seu
fim. E ninguém lamenta a sua morte. Por maior que tenha sido o seu charme, o romance
tradicional, que ocupou uma posição central no mesmo momento em que surgiram as
democracias industriais e aquilo a que Hegel chamava «a epopeia do mundo da classe
média» - é entendido pelos seus carrascos como o perigoso veículo dos valores
patriarcais, coloniais, canónicos, hierárquicos e autoritários de um passado que já
nos não acompanha". E acrescentava que muito desse suposto poder do romance está
incrustado na linha, esse movimento compulsivo determinado pelo autor, que vai do início
de uma frase ao final do período, do cimo ao fundo e da primeira à última página. É
claro que durante a longa história do impresso se verificaram inúmeras estratégias para
reagir contra o poder da linha, desde os comentários à margem e notas de rodapé até
às inovações criativas de romancistas como Lawrence Sterne, James Joyce, Raymond
Queneau, Julio Cortázar e Italo Calvino (...) Mas a verdadeira libertação da tirania da
linha só é percebida como realmente possível com a aparecimento do hipertexto, escrito
e lido no computador, onde a linha de facto não existe a menos que alguém a invente e
implante no texto". (28)
Aqui se encontram confirmados quer
os temas da linearidade e do poder demiúrgico do autor ligados à tecnologia do impresso,
quer uma estratégia de legitimação que passa pelas diversas tentativas de libertação
dessa prisão, sempre frustradas porque incompletas, por parte de grandes figuras do
cânone literário e mesmo ensaístico. Basta recordar que Landow considerou a obra
"Mille Plateaux", pela sua construção, como um "proto-hipertexto
impresso" e por outro que "muitas das qualidades que Deleuze e Guattari atribuem
ao rizoma requeriam o hipertexto para encontrar a sua primeira aproximação, se não a
sua resposta e realização completas". (29)
A partir de 1987, com a
publicação de Afternoon, de Michael Joyce, a obra marcante do campo da hiperficção,
primeiro apresentada em floppy disk e depois transferida para o programa Storyspace em
parte desenvolvido pelo próprio autor em 1990, começam a surgir diversas experiências
de narrativa hipertextual. Para Joyce, a hyperficção "é a primeira instância do
verdadeiro texto electrónico, aquilo que um dia será concebido como a forma natural de
escrita multimodal e multissensitiva". (...). Não tem um centro fixo nem margens,
não tem um fim ou fronteiras. O tradicional tempo linear da narrativa desaparece numa
paisagem geográfica ou num labirinto sem saída, e o começo, o meio e o fim deixam de
fazer parte da sua apresentação imediata. Em vez disso, temos opções ramificadas,
menus, link markers e redes mapeadas. Nestas redes não existem hierarquias, nem
parágrafos, capítulos ou outras tradicionais divisões do texto, que são substituídas
por janelas com blocos efémeros de texto e gráficos que, a breve trecho, serão
complementados com som, animação e filme".
Esta fase, que Robert Coover veio
posteriormente a chamar a "idade de ouro do hipertexto literário",
caracterizou-se por obras com múltiplos links entre écrãs de texto numa webwork não
linear de elementos poéticos ou narrativos. Os primeiros escritores experimentais
trabalhavam quase exclusivamente em texto, tal como os estudantes dos primeiros workshops
sobre hipertexto na Brown University, em parte por opção (eram escritores do impresso a
tentar movimentar-se em direcção a este domínio radicalmente novo e trazendo consigo o
que melhor conheciam), mas em grande medida porque tal era exigido pelas limitadas
capacidades dos computadores e diskettes de então. (
) Estes primeiros hipertextos
eram na sua maior parte objectos discretos, tal como livros, passados para floppy disks de
baixa densidade e distribuídos por pequenas empresas em arranque como Eastgate Systems e
Voyager". (30) É o tempo de obras paradigmáticas como Its Name Was Penelope de Judy
Malloy, Victory Garden de Stuart Moulthrop ou da famosa Patchwork Girl de Shelley Jackson.
Mas desde então algumas mutações
ocorreram. Antes de mais, o aparecimento e desenvolvimento da World Wide Web e de alguns
aspectos com ela relacionados: interfaces gráficos tipo WIMP (Windows, Icon, Menu,
Pointer), a invenção do Netscape e outros browsers, a criação de linguagens HTML, de
aplicações Java e VRML e uma rápida expansão do hipermédia. Com a possibilidade de se
"publicarem" hiperficções directamente na Web veio a verificar-se uma
progressiva diminuição da importância da palavra, cada vez mais reduzida, diz Coover, a
um ícone ou a uma legenda.
Também Christian Vandendorpe
assinala que, na realidade, "a componente verbal (...) já não representa
praticamente nada nos hipermédias ficcionais... É hoje possível empenharmo-nos numa
ficção complexa sem que a linguagem esteja presente senão no estado de epifenómeno.
Este movimento de «desverbalização» tornou-se possível devido a uma modificação
radical do ponto de vista da narração." (31) Coover chama ainda a atenção para um
outro aspecto. Diz ele que também as "noções de arquitectura, de organização ou
de design desapareceram. O mesmo aconteceu com a genuína interactividade; o leitor é
agora frequentemente obrigado a entrar num fluxo media-rich mas inescapável, direccionado
pelo autor ou autores: num certo sentido, equivale ao back to the movies again, a mais
passiva e dominadora das formas." (32)
Vejamos o caso da hiperficção
Hegirascope publicada em 1995 por Stuart Moulthrop (33).Nesta obra, os fragmentos textuais
passam como num ininterrupto slide show, as páginas encadeiam-se de modo automático
após ter decorrido um certo período de tempo (normalmente de 20 a 30 segundos), para
além de os nós de texto conterem os habituais links. Assim, o que muda entre Afternoon e
Hegirascope é que, enquanto aquela obra colocava, segundo Bolter, um problema geométrico
em que o leitor "tinha de adquirir uma intuição da estrutura espacial" (34),
em Hegirascope se adiciona uma figura temporal que pode ser vista, na opinião de Aarseth,
como "uma alegoria da ausência de influência do leitor sobre o texto".
Enquanto as anteriores hiperficções podiam ser contempladas segundo o ritmo do leitor,
no fundo como qualquer outra obra ficcional, esta obra de Moulthrop não permite essa
leitura contemplativa. O efeito acrescentado do ritmo temporal transforma Hegirascope numa
paródia do hipertexto, numa excessiva fragmentação que sobreaquece o medium, para usar
os termos de McLuhan. (35)
Hegirascope obriga a reflectir
sobre alguns pontos. Por um lado, a actividade que obras como esta propõem aproxima-se
mais do visionamento de um espectáculo que da leitura de um livro, em virtude não tanto
da importância concedida ao visual mas da falta de controlo do leitor sobre o passar da
página. Por outro lado,Aarseth chama a atenção para a diferença ontológica entre os
textos da Web como Hegirascope e os textos dos média modernos que o precedem. Antes da
Internet "a publicação significava produção em massa, fosse em papel, CD-ROM ou
diskette. Isso implicava, no codex ou no hipertexto, a cópia, para que objectos físicos
idênticos pudessem ser largamente distribuídos. Um documento da Web, ao invés, existe
inteiramente num sítio: no servidor em que o autor ou o possuidor do documento o colocou.
A obra de arte volta assim a ganhar de novo um sentido do lugar." (36)
Mas há ainda motivo para
questionar um dos mais caros pressupostos dos teóricos do hipertexto, a redefinição do
estatuto do autor, do estatuto do leitor e a reconcepção da sua mútua relação. O
autor de Hegirascope, por exemplo, retém o controlo total sobre o conteúdo da obra mesmo
após a publicação do texto. Pode em qualquer ponto mudar ou acrescentar partes ao texto
sem o conhecimento do leitor e é o único a ter a todo o momento uma compreensão
integral da composição do texto. Hegirascope, sendo uma experiência radical, levanta
afinal uma questão que muito provavelmente deve ser posta em relação a qualquer outro
hipertexto. Já Coover referia que "o autor não desaparecera, como uns receavam e
outros ansiavam" e Vandendorpe afirmava que "com o hipertexto, a parte do visual
no texto e a dimensão icónica estão em vias de expansão pelo facto de o autor poder
agora reapropriar-se da totalidade dos instrumentos de edição de que tinha sido
desapossado com a invenção da imprensa. Graças ao computador pode encarregar-se da
formatação tipográfica e icónica do seu texto e, no caso de um hipertexto, determinar
com precisão o grau de interactividade que deseja conceder ao leitor". Mais ainda,
"graças à tecnologia informática o autor pode agora retomar um certo controlo
sobre o leitor, controlo que tinha perdido na passagem da oralidade para a escrita".
Daí que Vandendorpe considere que"invocar «o espírito de descoberta» inerente à
tecnologia do hipertexto para justificar o facto de se deixar o utilizador no negrume mais
total, equivale a infantilizar o leitor, negando-lhe o acesso a informações esssenciais
para poder gerir a sua leitura e o tempo que deseja dedicar-lhe." Por isso propõe
que "é antes necessário procurar os meios de dar ao leitor, graças à máquina, um
domínio ainda maior sobre a sua actividade. A leitura em écrã só poderá seduzir
duradouramente os utilizadores se se apoiar naquilo que a cultura impressa conquistou,
embora libertando-se dos limites inerentes a um suporte material."
Talvez seja pois legítimo pensar
que o aumento do poder do leitor é apenas "uma representação idílica, que suporia
que o autor de um hipertexto teria, na realidade, renunciado a manipular o contexto de
recepção do leitor", ou que "a liberdade aparente dada ao leitor mais não faz
do que reforçar a posição soberana do autor, que surge como o senhor de todos os
desenvolvimentos possíveis". (37) E o facto de "os hipertextos electrónicos
possibilitarem marcações e anotações a uma meta-nível, só mostra que o hipertexto em
si mesmo, como objecto-nível, se encontra frequentemente "trancado", como uma
colecção de ficheiros read-only. O grau de interacção criativa que os
hipertextos oferecem ao leitor continua a ser, na prática, limitado", como escreve
Floridi. Do mesmo modo, não nos devemos deixar iludir na Web pelas oportunidades
oferecidas pelas ilimitadas possibilidades de ligação. Existe uma enorme diferença
entre um hipertexto totalmente marcado, que é uma totalidade de nós e links, e a simples
conexão com outro hipertexto que não está directamente sob o controlo do autor".
E,muitas vezes, "os hipertextos são tão finitos, autoritários e imutáveis como um
livro e apresentam um percurso igualmente claro em que o leitor é convidado a mover-se,
no fundo uma narrativa axial." (38)
Talvez por isso Aarseth afirme que
com as actuais diferenças entre sistemas hipertextuais, nomeadamente os utilizados para
fins poéticos, é perigoso elaborar teorias gerais sobre hiperliteratura e que, ao
invés, devemos olhar para cada sistema como um medium técnico potencialmente diferente,
com consequências estéticas distintas. Para ele, "o hipertexto é tanto uma
categoria técnica como ideológica, construída com base na sua pressuposta diferença
de, e superioridade sobre, os média impressos e devemos ter o cuidado de não permitir
que este mito influencie subconscientemente as nossas leituras de textos
individuais." (39)
Mark Bernstein, citado por José
Augusto Mourão, a propósito da narrativa na rede, escreve: "A Rede está
permanentemente dilacerada por duas forças poderosas, aparentemente irresistíveis e
irreconciliáveis. Por em lado, a utilização e a engenharia de interface favorecem a
simplicidade, a consistência e a clareza, um minimalismo meramente funcional. Por outro
lado, os padrões e as tecnologias da rede que estão a surgir alimentam uma
eflorescência permanente de novas abordagens ao design da rede. Por um lado, trata-se de
uma estrutura hierarquicamente rígida cunhada como Arquitectura da Informação que
promete claridade e coerência; por outro lado, essa mesma rigidez parece proporcionar
esterilidade e enfado." E comenta Mourão: "Aí estamos. Entre um minimalismo
funcional; entre estruturas rígidas que prometem ao mesmo tempo claridade e coerência,
mas também esterilidade e aborrecimento. Enquanto as novas tecnologias para o hipertexto
e gráficos animados baseados na rede prometem trazer à rede experiências narrativas
poderosas, a realidade não é assim tão cor-de-rosa: continua a ser difícil encontrar
narrativas na rede atraentes e os gráficos comerciais animados têm sobretudo que aliar a
interacção sofisticada com uma narracão sedutora. É verdade que as velhas ideias de
design se tornaram caducas com esta arremetida; é verdade que os antigos erros parecem
ridículos; é verdade que as abordagens anteriores ficam muito ultrapassadas. Mas esta
corrida tumultuosa, com claques de ambas as partes, ignora uma terceira força: o poder da
narrativa. Objecto perdido?" E mais adiante: "Aquilo que a escrita electrónica
«conta» não é senão a linguagem das bifurcações, das descontinuidades e das
descontextualizações: organizar a estabilidade das relações mais do que a invenção
das palavras, ir até à raiz das diferenças imateriais que fundam a linguagem. Que
linguagem a do vazio?" (40)
Talvez por isso, a insuspeita Jane
Yellowlees Douglas quase reduza agora as características do hipertexto a "uma
tecnologia que existe em grande medida como reflexo do que pode ser entendido como crucial
para criar, armazenar, pesquisar e manipular informação." E acrescente que o
"o hipertexto se torna um aparato pelo qual diferentes grupos fixam as qualidades que
consideram centrais para a comunicação através de palavras. Na maior parte da
literatura sobre os aspectos do design do interface e da engenharia do software do
hipertexto, os investigadores assinalam que existem praticamente tantos tipos diferentes
de sistemas hipertexto quanto utilizações óbvias para a tecnologia, e que o próprio
design do software tende a reflectir os tipos de actividades para cujo suporte foi criado.
Essas actividades são ler, escrever e aprender, elas mesmos processos que se transformam
de um contexto social para outro, de umas tarefas, géneros e textos para outros."
(41)
Parece assim de aceitar a ideia de
Floridi para quem "o hipertexto literário entendido como um novo estilo de narrativa
«aberta» permanece um fenómeno apenas marginal." (42) E, entre outros, talvez para
isso concorra um ponto sublinhado por João Arriscado Nunes ao afirmar que "apesar
das frequentes tentativas de assimilar o texto em suporte impresso ao texto em suporte
electrónico, a qualidade de «literário» de um dado texto parece estar estreitamente
vinculada ao suporte impresso. O livro, enquanto objecto impresso, aparece como a forma
quase «natural» de existência dos textos que são classificados, pelos especialistas,
como «literários». As formas electrónicas de existência dos textos literários são
vistas, nesta perspectiva, seja como um recurso para alargar a difusão de um texto que,
no essencial, foi definido e fixados na(s) sua(s) versões impressas (ou para facilitar o
trabalho dos especialistas de teoria, crítica e história literária sobre o próprio
texto), seja como uma ameaça à existência e à integridade de obras que encontram no
suporte impresso a sua forma «natural» de existência física." (43)
Também por isso Steiner pode
afirmar que "é claro que os livros tal como os conhecemos desde Gutenberg vão
continuar a ser escritos, publicados, comercializados e lidos." E que "muito
provalmente o número de títulos em formatos tradicionais vai aumentar nos tempos mais
próximos" (...) As "Belles lettres, a literatura destinada ao prazer e à
consolação irão continuar, num futuro previsível, a aparecer no seu modo
tradicional." (44)
Apesar disso, não nos devemos
deixar iludir, pois tal não impede que o livro tenha perdido, no oceano textual, a sua
hegemonia e a sua centralidade simbólica e que a leitura e as suas práticas, bem como a
nossa relação com a escrita, se encontrem igualmente num processo de clara
transformação.
Na verdade, tem-se previsto amiúde
quer "a morte do livro" quer "a morte do leitor", referindo-se
argumentos estatísticos sobre o declínio dos hábitos de leitura, os crescentes
problemas que a edição tradicional enfrenta ou ainda o inevitável triunfo da «cultura
do écrã»". Os dados resultantes de diversos estudos e inquéritos apontam para
tendências dificilmente questionáveis, como a explosão do universo do audiovisual e do
multimédia, a generalização da diversificação das práticas culturais (favorecida
pelo uso do telecomando e do "rato"), a diminuição do número dos «grandes
leitores» ou a transferência dos jovens leitores para o segmento das revistas, livros
práticos ou profissionais. Assiste-se ainda a uma clara revalorização do modelo a que
os franceses chamam «lecture ordinaire» que se estende agora a todas as categorias de
leitores e que, como refere Christine Détrez, "revela a rejeição dos cânones
tradicionais e dos valores que fundavam a legitimidade da leitura «clássica»."
Mais ainda, "a evolução não se situa tanto nos próprios modos de leitura que,
recorde-se, sempre coexistiram, como na sua reivindicação aberta por os que as cultivam:
se Comme un roman, de Daniel Pennac, alcançou um tal sucesso isso deve-se sem dúvida ao
facto de proclamar alto e bom som a legitimidade de um modelo de leitura até então
estigmatizado." (45) Acresce que a leitura de livros, agora enquadrada no mercado dos
lazeres, é cada vez menos relevante no conjunto das práticas culturais, superada pelo
desporto, cinema e música, pelas actividades viradas para os outros e para o exterior e,
sobretudo, relacionadas com fenómenos de sociabilização.
No nosso caso, ainda recentemente
João Teixeira Lopes e Lina Antunes confirmaram estes traços, salientando algumas
tendências consistentes no universo dos jovens, designadamente em relação à
organização dos tempos livres: "É avassalador, embora nada surpreendente, o peso
ocupado pelo audiovisual. Ver televisão e ouvir música são as práticas hegemónicas,
apenas acompanhadas pela cultura de diversão convivial, isto é, pela importância
atribuída a estar com os amigos, sinal que confirma algo amplamente constatado pelos
diversos estudos efectuados à(s) juventude(s) portuguesa(s): a predominância de um ethos
e de uma hexis assentes no modelo do individualismo relacional, ou, se preferirem, no
viver o quotidiano de forma lúdica mas sócio-centrada. (...) ... O investimento dos
jovens na conjugação do paradigma audiovisual com a "cultura diversão" da
sociabilidade dos grupos de pares insere-se numa profunda modificação dos "mundos
da cultura", em particular nas suas instâncias de legitimação e na propriedade do
monopólio de classificação de "quem é ou não culto". (...) Paulatinamente,
consagra-se um novo paradigma de "ser-se culto" que já não é sinónimo de
"ser-se cultivado" ou de acumular referências próprias à cultura clássica,
escolar e patrimonial. Aliás, quanto mais se progride no percurso escolar menos se lê,
em particular por fruição. (...) Parece também consistente afirmar que a leitura de
revistas e de jornais suplanta, regra geral, a leitura de livros, não só porque
permitem, principalmente nas revistas uma aproximação ao paradigma audiovisual (textos
curtos, profusão de imagens), em particular nas que se dirigem aos vários segmentos
juvenis, mas também porque facilitam o zapping, a selecção rápida e eficaz daquilo que
interessa ser lido."(46)
Como refere Armando Petrucci, pela
primeira vez o livro e os outros produtos impressos se encontram "confrontados com um
público, real e potencial, que se serve de outras técnicas de informação e que
adquiriu outros métodos de aculturação, os dos meios audiovisuais, que se habituou a
ler mensagens em movimento, que, em numerosos casos, escreve e lê mensagens por meios
electrónicos (
) e que, mais ainda, se habitua a aculturar-se através de
intrumentos e métodos não só sofisticados mas onerosos, e que os domina, os utiliza, de
um modo absolutamente diferente daquele que o processo normal de leitura requeria."
(47)
Estas perspectivas não são muito
distante das conclusões de Christian Baudelot: "o lugar e o estatuto do livro no
espaço social, as condições da sua produção, da sua transmissão e do seu consumo, o
papel da leitura na construção de si e a elaboração de uma cultura comum
modificaram-se profundamente no decurso dos últimos decénios, em particular entre os
jovens". E não se trata de uma ocorrência circunstancial, "mas de uma
tendência de fundo, cujas causas, longe de serem conjunturais, devem ser procuradas no
âmago de vários registos de mutações que afectaram as nossas sociedades: tecnologias
dos média e dos suportes materiais dos textos, nova configuração das diferentes
componentes da vida cultural, perturbações da instituição escolar, transformação da
figura do intelectual de referência, instauração de novos ritmos sociais impostos à
vida quotidiana pelas mutações económicas e sociais."(48)
Essa mudança também não deriva
de um determinismo do hardware e do software, pelo que teremos muito provavelmente que
aceitar que a palavra impressa faz parte de uma ordemde que nos estamos irremediavelmente
a afastar. E isto porque, como refere Zygmunt Bauman, "o destino do livro no nosso
mundo globalizante não depende, e não pode ser explicado apenas pelas tecnologias (...)
Os livros partilham a sorte das sociedades de que fazem parte e quando nos preocupamos com
o destino dos livros e da leitura, devemos olhar mais de perto para a sociedade e para as
suas tendências". (49) Se o fizermos, vemos que o que estamos a abandonar é essa
ordem em que «a leitura constituía uma espécie de facto cultural total, com a
obrigação de cumprir simultaneamente todas as funções possíveis e imagináveis
relacionadas com a formação e com a informação de uma pessoa(...)". (50) Leitura
integrada num consenso aparentemente natural, em que ler e escrever eram actos individuais
destinados a proporcionar uma compreensão sempre mais profunda de nós próprios e de
tudo o que nos rodeava, num gesto que só a intensidade de uma relação pessoal com o
texto pode permitir, como ainda a criar novos modos de organizar a experiência e de
participar e contribuir para o progresso material e espiritual do mundo.
Mas esta literacia depende tanto da
sedimentação da cultura do «impresso» como, por exemplo, daquilo que Steiner refere
como uma tríade vital constituída pelo "espaço, pela privacidade e pelo silêncio,
iconizada por S. Jerónimo no seu estúdio ou por Montaigne na sua torre." E essa
congruência privilegiada está relacionada inevitavelmente com as camadas emancipadas do
ponto de vista educativo e económico nas sociedades ocidentais. "Ler privadamente e
em silêncio, possuir os meios para essa leitura, o livro e a biblioteca privada, é
beneficiar, em sentido lato, das relações de poder de um ancien régime." (51)
Estamos pois a viver a crise das estruturas institucionais e ideológicas que tinham até
agora mantido a antiga "ordem da leitura" e encontramo-nos no dealbar de uma
outra era a que por agora corresponde, na expressão de Petrucci, uma "desordem"
na leitura.
Teixeira Lopes e Antunes referem
que aquela expressão de Baudelot, "o fim da leitura como facto cultural total",
pretende salientar a crescente indiferença das populações juvenis face às "normas
culturais dominantes". De qualquer modo não se trata da "crise" ou da
"morte" da leitura como prática em si mas, simplesmente, de uma metamorfose num
modelo outrora tido como único e universal." (52) Como afirma Luca Ferrieri,
"nos próximos anos ler será cada vez menos uma «obrigação» imposta pelo
comércio social, por força do sucesso escolar ou profissional. Em muitos destes
âmbitos, a leitura de livros será substituída por outras formas de comunicação:
vídeo, tv, computador e outras telemáticas massmediológicas vão tornar supérflua,
para certo tipo de informação, a consulta de obras impressas ou de livros." (53)
Emerge assim uma nova
multiliteracia dos textos electrónicos num momento intersticial entre a leitura e a
hiperleitura. Nessa passagem do livro impresso para o livro electrónico não é possível
ignorar aqueles fenómenos da interactividade, do multimédia ou da hipertextualidade,
dotados de uma força cognitiva que não sabemos ainda quantificar ou qualificar por
completo. É claro que ler num écrã não é o mesmo que ler um livro; as pragmáticas da
leitura (para usar uma expressão de Nicholas Burbules (54)), isto é, a velocidade da
leitura, o momento das pausas, a duração da concentração, a frequência com que
saltamos texto ou voltamos atrás para reler, etc. vão ser diferentes, e essas
diferenças vão ter efeitos no modo como compreendemos e recordamos o que lemos.
É então necessário reflectir
sobre algumas das tendências dessas novas práticas de leitura. Brigitte Juanals refere
que, interiorizada no decurso de vários séculos, "a espacialidade da escrita na
página do livro constituiu-se progressivamente como sistema semiótico abstracto. A
mudança de suporte necessitou de uma redefinição das relações entre pensamento e
espaço e o interface representa esse novo espaço semiótico em construção. O
objecto-livro desapareceu e a espacialidade da página no suporte livro encontra-se
transposta para o interface gráfico no espaço do écrã do computador. Esta mutação
decisiva coloca o leitor face a (ou nos) ambientes virtuais que são novos espaços de
lecto-escrita." E acrescenta que "no espaço informacional global, aberto e em
rede da Internet apresentam-se imensos depósitos de informações dispersas sob uma forma
fragmentada, muito heterogénea nos planos da sua forma, da sua qualidade, da sua
classificação e do seu acesso, instáveis a vários níveis, pouco estruturadas e em
renovação permanente, pois a lógica de rede é uma lógica de fluxos. Os dados
apresentam-se sob uma forma modular e parcelar; suportes, documentos e dados encontram-se
doravante dissociados. A dimensão das mutações operadas na selecção, organização,
apresentação e acesso a um corpus de informações, transformado pela lógica de fluxo,
assim como os meios agora necessários para lhe aceder é especialmente significativa.
Classificações temáticas, topológicas, cronológicas, por tipos de documentos, etc.,
juxtapostas ou combinadas, permitem rearranjos permanentes, calculados em tempo real em
função das necessidades do leitor. A escolha de um ou vários modos de classificação
depende do próprio leitor, em função de um objecto de pesquisa que deve definir
previamente. A multiplicidade, flexibilidade e diversidade das escolhas de estruturação
adaptáveis dos dados, assim como modos de organização e de classificação, são
característicos dos dispositivos hipermédia. O espaço tornou-se agora movediço e
semanticamente estruturante e nele sobrepõem-se recombinações dinâmicas e
diversas."(55)
O leitor tem assim de construir o
seu próprio percurso para encontrar a informação de que necessita e é-lhe exigida a
capacidade de agir, criando, alterando ou aproveitando encontros no corpo de conhecimento
que se está a desenvolver. O que significa que tem de saber optar por percursos no
metatexto, servir-se de textos já disponíveis e ser capaz de criar ligações entre
documentos multimodais. Mas essa atitude vai mais fundo pois, no contexto de uma economia
da atenção, é-se levado a escrutinar a informação de modo muito veloz, a fazer
juízos rápidos, processando em paralelo outros materiais, de modo a captar e utilizar
sem demora o que nos interessa, e em que a contrapartida é uma crescente fragmentação
do conteúdo. Não é pois de estranhar que a leitura hipertextual confira especial relevo
a capacidades individuais como a economia, a intuição e a destreza técnica, bem como um
sentido da conectividade intertextual, do conhecimento relacional e do pensamento lateral
através de associações.
Por outro lado, como lembra
Ferrieri, qualquer mutação cultural é antes de mais uma reclassificação da
temporalidade, e "a temporalidade linear e sequencial (mas em certos casos também
circular) do livro" parece ceder agora o passo à "temporalidade ziguezagueante
da simultaneidade multimédia; o «tempo real» dos computadores, o eterno presente da TV,
cancelam aquele reenvio constante entre passado e futuro que é uma das características
típicas da cultura do livro." E acrescenta que "simultaneidade quer também
dizer fazer muitas coisas ao mesmo tempo: os novos média estão programados para isso. A
fruição desatenta que Benjamin indicava como característica do cinema e que Adorno
detestava, é agora o protocolo típico da utilização dos média..." (56) Na
verdade, a temporalidade dos novos média é baseada numa paroxística aceleração da
velocidade. Luc Bonneville refere-se a que, para os utilizadores da Internet,o tempo é
percebido antes do mais no quadro de um "momento presente" constantemente
actualizado. De facto, "a velocidade necessária para a realização de uma
actividade em linha assenta num tempo quantitavamente diferente do tempo moderno, baseado
nos intervalos perceptíveis entre momentos." Ora, "este tempo subjectivizado,
vivido, implica (...) uma valorização excessiva do momento presente, doravante concebido
independentemente do momento passado e do futuro." E interroga-se sobre se, no plano
psicológico, essa representação da temporalidade não podererá configurar uma
patologia, tendo em conta que "o utilizador se encontra mergulhado num tempo que é
instantâneo pois sempre presentificado." Essa patologia poderia derivar da
"valorização ou mesmo da obsessão da produtividade individual como norma de
conduta. A possibilidade de efectuar várias actividades de modo cada vez mais rápido e
ao mesmo tempo, isto é no mesmo momento, leva de facto a uma representação da
temporalidade que se baseia simultaneamente na obsessão da velocidade, da rapidez de
execução, e na profunda aspiração de nos tornarmos senhores do nosso tempo,
desalienando-nos de um tempo objectivo constrangedor." (57)
Umberto Eco, aAo ser interrogado
recentemente sobre oque hoje distingue ainda um livro de uma outra qualquer forma de
comunicação, afirmava: "antes de tudo, os mecanismos psicológicos da atenção. A
espécie humana habituou-se a um certo tipo de atenção que implica folhear as páginas e
de nelas se deter intencionalmente. A leitura em écrã é fatalmente diferente, mais
rápida e a velocidade com que nos deslocamos é muito maior." (58)
A leitura é de facto uma
actividade lenta, destilada, concentrada, o que significa também, ou significa sobretudo,
a possibilidade de voltar atrás, de reler. A releitura, momento dissipativo e
antieconómico por excelência, leva ao extremo aquilo a que Luca Ferrieri chama a
tendência cronófaga da leitura: ou seja, submete-a a um conflito inevitável com a ordem
temporal de uma sociedade dominada pela pressa, pelo controlo rígido do tempo, pelas
diversas formas de taylorismo social.(59)
Como já referimos, Vandendorpe
sublinha uma tendência para a «desverbalização» dos textos electrónicos e Coover,
por seu lado, refere que esse facto tem como contraponto que a palavra, "a própria
matéria da literatura e de todo o pensamento humano, cede progressivamente o terreno ao
image-surfing, ao hipermédia, ao ícone linkado". O que parece equivaler ao aparente
do triunfo da cultura dos média centrados na imagem e da comunicação electrónica sobre
a palavra impressa. Essa perspectiva tinha sido já detectada por Vilém Flusser no
início dos anos oitenta. Escrevia ele então, referindo-se aos problemas relacionados com
o futuro da escrita perante a crescente importância das mensagens não escritas na nossa
vida: "proponho-me analisar uma tendência que está na base destes problemas,
designadamente a tendência para um afastamento dos códigos lineares, como a escrita, e
para uma aproximação a códigos bidimensionais como fotografias, filmes ou a televisão,
tendência que pode ser observada se prestarmos atenção, mesmo que superficialmente, ao
mundo codificado que nos rodeia. O futuro da escrita, desse gesto que alinha símbolos
para produzir textos, deve ser encarado no quadro dessa tendência." (60) Esta
questão vai a par com uma outra a que se refere Chartier e que passa, no fundo, pela
própria noção tradicional de «livro», que a textualidade electrónica põe em
questão. Na verdade, no mundo digital "todos os textos, sejam eles quais forem, são
dados a ler num mesmo suporte (o écrã de um computador) e nas mesmas formas. Cria-se
assim um continuum que já não diferencia os diversos géneros ou repertórios textuais,
doravante semelhantes na sua aparência e equivalentes na sua autoridade. Daí a
inquietação do nosso tempo confrontado com o desaparecimento dos critérios antigos que
permitiam distinguir, classificar e hierarquizar os discursos." (61)
É possível que estes aspectos
sejam já fruto do desvanecimento do paradigma da literacia clássica do impresso, bem
como é provável que estejamos a assistir à passagem do livro objecto ao livro em
extensão, do livro monumento ao livro fluxo, no fundo, ao que Steiner chamou "the
end of bookishness"... Ainda Vandendorpe, reflectindo sobre a questão da
convergência, afirma que "o computador, ao disponibilizar através de um único
écrã livros, música e vídeos, tende a homogeneizar o estatuto das diferentes artes
pois tudo se encontra afinal submetido às mesmas manipulações. Os efeitos desta
convergência sobre o estatuto da actividade de leitura são já evidentes. Esta, tal como
a conhecemos no mundo físico do impresso, é por excelência uma actividade privada, com
ritmos inconstantes e incertos, tanto rápida como lenta e meditativa. Ao invés, quando
se exerce sobre um texto digital, ela é quase obrigatoriamente definida pelo clicar do
rato sobre as ligações hipertextuais, e a estrutura fragmentada do texto e a posição
rígida de leitura imposta pelo medium convidam a saltar rapidamente de um ponto para
outro. Estes constrangimentos podem ser perfeitamente convenientes para uma leitura
orientada para uma acção ou para a pesquisa; mas são completamente desadequados para
uma leitura de fundo, que consiste em acolher em si um pensamento novo e complexo ou em
mergulhar num universo romanesco. Se a isto acrescentarmos que, procurando seduzir o
leitor, o texto se torna cintilante, recorrendo a cores, ícones e imagens, podemos
compreender como a leitura tende a ser deportada para a ordem do espectáculo." (62)
Essa «deportação» pode ser ainda mais complexa pois, como refere Emmanuelle Jéhanno,
pode tornar o modelo económico do livro digital dependente dos modelos aplicados nas
práticas culturais de massa, como na música e no cinema. Jéhanno que salienta ainda
que, no universo do digital, as fronteiras entre livros, filmes ou discos tendem a
abolir-se, fundindo-se num oceano binário de zeros e uns, originando uma mistura de
conteúdos que "deixa pouca margem de manobra a produtores de conteúdos culturais
como os editores de livros, mesmo que digitais." (63) Livros que assim acabarão por
se integrar no universo da indústria do entretenimento, podendo vir a encontrar-se
submetidos aos interesses de Hollywood ou dos grandes grupos multimédia.
Se é certo que o surto da edição
electrónica tem potencialidades para introduzir novas modalidades para o enquadramento e
comunicação do conhecimento, para a sua construção colectiva através do intercâmbio
do saber, da especialização e da compreensão (
), por outro lado a revolução
electrónica pode agravar, e não diminuir, as desigualdades. É perfeitamente possível
que nos deparemos com um novo tipo de literacia, que já não se caracteriza pelas
competências de ler e escrever, mas pela facilidade de acesso e capacidade de
manipulação dos média digitais pelos quais a escrita é agora também transmitida. (64)
Como escreve, a este propósito, Juanals, "naturalmente que as vantagens das bases de
dados hipermédia em termos de modos de armazenamento, de organização e de acesso ao
corpus, em comparação com as versões impressas são inegáveis: multiplicação dos
pontos de acesso, automatização das ligações, utilização de filtros semânticos,
cruzamento de critérios (opções de pesquisa avançadas), utilização de operadores
booleanos para pesquisas multicritérios, imediatez e possibilidades de refinamento dos
resultados. (...) Mas se as potencialidades de automatização das ligações calculadas e
geradas pelo software torna possível o acesso em todos os pontos a imensas bases de
dados, isso acontece, no entanto, "em detrimento de um ambiente semântico que o
leitor se vai ver forçado a reconstruir. Mais ainda, estas técnicas estavam até agora
reservadas a utilizações e a públicos profissionais e a sua disponibilização em obras
destinadas ao grande público levanta sérias questões referentes à sua utilização
adequada e eficaz." (65)
As novas materialidades que
suportam a escrita não anunciam o fim do livro ou a morte do leitor. Existirá como
sempre, escreve Derrida, "coexistência e sobrevivência estrutural de modelos
passados no momento em que a génese faz surgir novas possibilidades." (66)
Mas essas novas materialidades
pressupõem que os papéis vão ser redistribuídos, implicando uma competição mas
também certamente uma persistente complementaridade entre os vários suportes do
discurso, levando ao aparecimento de novas relações (tanto físicas como estéticas e
cognitivas) com o universo textual, à convivência de todas as modalidades de produção,
reprodução e distribuição do livro e a complexas configurações entre diferentes
hierarquias e tipologias de leitura e entre diversas formas de literacia.
Para concluir, trata-se de
reconhecer com Derrida que é uma nova economia que se estabelece. Uma nova economia que
"faz coexistir de um modo dinâmico uma multiplicidade de modelos, de modos de
arquivo e de acumulação. E que isso é, desde sempre, a história do livro." (67)
José Afonso Furtado - (15/11/2002)

Trabalho e pesquisa de Carlos Leite Ribeiro -
Marinha Grande - Portugal
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