
Álvaro Cunhal
13 de Junho de 2005

(Idolatrado por uns;
incompreendido por outros;
pouco apreciado por muitos) |

Destacado dirigente comunista, escritor e artista plástico, Álvaro Cunhal formou-se em
Direito pela Universidade de Lisboa em 1935 e no mesmo ano foi eleito secretário geral da
Juventude Comunista. Em 1949-51 promoveu a reorganização do PCP e em 1961 foi eleito seu
secretário geral cargo em que se manteve até 1992, quando foi substituído no cargo por
Carlos Carvalhas. Grande parte da sua vida decorreu nas prisões, na clandestinidade e no
exílio. Depois de 25 de Abril de 1974 regressou a Portugal e foi ministro sem pasta nos
primeiros governos provisórios. Líder incontestado e carismático exerceu forte
influência na política e nos movimentos sociais que demarcam o seu percurso.
A sua famosa fuga do Forte de
Peniche foi uma das mais espectaculares da história do fascismo português, por se tratar
de uma das prisões de mais alta segurança do Estado Novo.
No dia 3 de Janeiro de 1960
evadem-se do forte de Peniche: Álvaro Cunhal, Joaquim Gomes, Carlos Costa, Jaime Serra,
Francisco Miguel, José Carlos, Guilherme Carvalho, Pedro Soares, Rogério de Carvalho e
Francisco Martins Rodrigues.
No fim da tarde pára na vila de
Peniche, em frente ao forte, um carro com o porta-bagagens aberto. Era o sinal de que do
exterior estava tudo a postos. Quem deu o sinal foi o actor, já falecido, Rogério Paulo.
Dado e recebido o sinal, no
interior do forte dá-se início à acção planeada. O carcereiro foi neutralizado com
uma anestesia e com a ajuda de uma sentinela - José Alves - integrado na organização da
fuga, os fugitivos passaram, sem serem notados, a parte mais exposta do percurso. Estando
no piso superior, descem para o piso de baixo por uma árvore. Daí correm para a muralha
exterior para descerem, um a um, através de uma corda feita de lençóis para o fosso
exterior do forte. Tiveram ainda que saltar um muro para chegar à vila, onde estavam à
espera os automóveis que os haviam de transportar para as casas clandestinas onde
deveriam passar a noite.
Álvaro Cunhal passou a noite na
casa de Pires Jorge, em São João de Estoril, onde ficaria a viver durante algum tempo.
Esta fuga só foi possível graças
a um planeamento muito rigoroso e uma grande coordenação entre o exterior e o interior
da prisão.
Do interior a comissão de fuga era
composta por Álvaro Cunhal, Jaime Serra e Joaquim Gomes. Do exterior, organizaram a fuga
Pires Jorge e Dias Lourenço, com a ajuda de Otávio Pato, Rui Perdigão e Rogério Paulo.
A Arte, o Artista e a
Sociedade
"Constitui um direito
à liberdade que um artista concentre exclusivamente o seu talento e a sua criatividade na
busca de novos valores formais: o da cor, do volume, da musicalidade, da linguagem. Essa
atitude tem conduzido a enriquecimentos e descobertas dando vida à obra por virtude dos
novos valores formais conseguidos.
Constitui também um direito à
liberdade que um artista parta à descoberta de novos valores formais (da cor, do volume,
da musicalidade, da linguagem) com o propósito de os tornar adequados e capazes de levar
à sociedade, ao ser humano em geral, uma mensagem de alegria ou tristeza, de
solidariedade ou de protesto, de sofrimento ou de revolta, em qualquer caso, como é de
desejar de optimismo e de confiança no ser humano e no seu futuro."(pp.20-21)
"Quando se fala de uma arte
voltada para o povo, para a sua vida e as suas aspirações e da mensagem que o artista,
com a sua obra, leva ao povo, não se pretende que, no domínio da arte e da criatividade
artística, o povo seja apenas objecto e destinatário. O povo é também autor, é
também criador de valor estético. A criação popular funde o talento individual com o
talento colectivamente considerado." (p.111)
"A imaginação artística dos
povos envolve gerações, num quase inimaginável longo processo criativo, que, mantendo
vivas mesmo que não evidentes as origens, as enriquece e traduz com elementos e valores
estéticos novos." (p.111)
"Arte é liberdade. É
imaginação, é fantasia, é descoberta e é sonho. É criação e recriação da beleza
pelo ser humano e não apenas imitação da beleza que o ser humano considera descobrir na
realidade que o cerca."(p.201)
"(...)É bom que jamais percam
a necessidade e o gosto de escrever, de pintar, de tocar um instrumento, de mesmo em
silêncio, sem assim se chamarem, continuarem a ser artistas."(p.202)
Álvaro Cunhal
Editorial Caminho, Lisboa, 1996
O Romance "Até
Amanhã Camaradas" de Miguel Tiago (Álvaro Cunhal)
Comentário de Eduardo Cintra
Torres
Manual do Militante e Epopeia do
PCP
O romance "Até Amanhã,
Camaradas", de Manuel Tiago, pseudónimo de Álvaro Cunhal, é antes do mais um
documento histórico. Relata a vida interna do PCP nos anos difíceis da Segunda Guerra
Mundial, em torno das lutas populares que organizou no vale do Tejo em 1944.
Retrata a realidade pelos olhos de
um interveniente nos acontecimentos, depois secretário-geral do PCP, urdindo capazmente
uma teia de personagens numa trama colectiva com inúmeros episódios.
É por esse lado que o primeiro
romance de Cunhal cativa como texto transponível para o ecrã. Apesar do estilo
desinteressante e "kitsch", Cunhal construiu uma narrativa credível. Manejou as
personagens do mesmo modo que, como secretário-geral, dominou a estrutura de alto a baixo
do partido. O romance é um organograma em movimento.
O êxito do livro é em parte
consequência do êxito político do PCP. Sobrevivendo ao fascismo e às cisões, o PCP
chegou até hoje, reclamando para si muita da oposição ocorrida em décadas de fascismo.
Sem o diminuir, pode dizer-se que esse palmarés é exagerado. Além das pequenas
oposições "burguesa", republicana, maçónica ou católica, houve um
importante movimento à esquerda do PCP a partir dos anos 60. E houve, também, um forte
movimento anarquista até aos anos 30, hoje quase ignorado histórica e até
literariamente.
O silêncio que cobre as outras
oposições estende-se por osmose a ficções igualmente importantes enquanto documentos
históricos e melhores literariamente do que "Até Amanhã, Camaradas", como
"O Arcanjo Negro", de Aquilino Ribeiro, "A Lã e a Neve", de Ferreira
de Castro, e outras páginas de ficção atravessada pela política em Rodrigues Miguéis,
Paço d'Arcos, Branquinho da Fonseca, Manuel da Fonseca, Torga, Sena e outros.
Esse passado histórico e esses
romances apagam-se na memória e os romances de Cunhal sobrepõem-se-lhes porque, ao
contrário do que se costuma ler ou dizer, Cunhal é um vencedor da História. Se tivesse
desaparecido do palco, "Até Amanhã, Camaradas" seria apenas fonte histórica
especializada.
Antes de passar à série
televisiva co-produzida pela SIC (28 e 29/01), convém situar "Até Amanhã,
Camaradas". Trata-se de um livro singular. O protagonista é colectivo e chama-se
"PCP". A narrativa centra-se nos militantes clandestinos e nos seus problemas
políticos, pessoais e de segurança. Como se comportam se passam à clandestinidade? Como
vivem nas "casas de apoio"? Como se portam se são presos?
Outro tema central é a
(re)organização do PCP. Quais as preocupações dos clandestinos na ligação entre as
estruturas de base, as intermédias e o Comité Central? Quais os tipos de militantes que
se encontram? Os que falam e não fazem nada, os problemáticos, os voluntaristas, os
totalmente dedicados à causa? Quais as tarefas importantes? Distribuir a imprensa?
Participar nas reuniões? Organizar greves? Como fazer o PCP crescer, que é o objectivo
principal?
A trama narrativa serve para
responder a estas questões. Quem julga que "Até Amanhã, Camaradas" é um
romance sobre lutas populares engana-se redondamente. Cunhal escreveu um romance sobre o
PCP e para o PCP. É uma espécie de manual de clandestinidade para os seus camaradas
aprenderem as regras internas do partido. Em vez de textos maçudos para "O
Militante", o jornal interno do PCP, Cunhal forneceu-lhes uma estória escorreita e
até empolgante, povoada de dirigentes e militantes de base em acção.
A estrutura do romance, que a
série da SIC muito bem reproduziu, revela o quanto este é um livro sobre o PCP. As fases
da narrativa são as três da intriga mínima: a) situação inicial estável de
sobrevivência do partido e aproveitamento das privações de operários e camponeses; o
PCP procura reforçar-se capitalizando o descontentamento popular; b) na parte central do
romance, o PCP lidera greves e manifestações que apanham as autoridades desprevenidas:
é um sucesso político do PCP, mas logo seguido de brutal repressão; c) a este estado de
desequilíbrio seguem-se o esforço e corroboração da reorganização do PCP, levada a
bom termo, regressando-se a um estado semelhante ao inicial, mas melhor para o PCP segundo
a versão de Cunhal. "Happy end".
Na estrutura e na narrativa, as
lutas populares são pretexto para o PCP se fortalecer e para se provar que a
reorganização de Cunhal era correcta. Os métodos conspirativos e clandestinos e a nova
estrutura organizacional são legitimados e explicados minuciosamente. As massas populares
são tão-só um pano de fundo de parte do romance, com pouco interesse. Em "Até
Amanhã, Camaradas", o povo serve para validar o PCP e serve para o PCP regressar
reforçado da repressão e da reorganização.
"Até Amanhã, Camaradas"
não é um elogio da personagem colectiva povo ou operários e camponeses unidos. É um
elogio e um manual do PCP e do "centralismo democrático", isto é, das regras
internas que ainda hoje governam o partido de Cunhal.
Romance de tese, didáctico e
escrito num estilo realista apagado, usa a potencialidade com que o género romance mostra
um mundo amplo e concreto para transmitir em narrativa a ideologia e instruções do seu
autor.
Mas "Até Amanhã,
Camaradas" tornou-se também, com o tempo, uma epopeia do PCP, o passado épico
absoluto do partido, um grande fresco narrativo com inúmeros heróis entre o humano e o
divino agindo numa polifonia romanesca que conduz sempre ao objectivo de elucidar
militantes e promover o "centralismo democrático".
Se o protagonista do romance é o
PCP, as três personagens secundárias dominantes são Vaz, Ramos e Maria. Vaz é o
militante profissional totalmente dedicado ao partido, sem tempo a perder com a alegria de
viver. Ramos é igual, mas com a alegria que falta a Vaz. O lado austero e monomaníaco,
quase maquinal, de Vaz tem levado a escrever-se que se trata de um "alter ego"
de Cunhal. Mas poderá ver-se também em Ramos outra projecção de Cunhal, um
"self" que o Cunhal real quereria igualmente mostrar mas não poderia por
achá-lo incompatível com a sua política.
"Até amanhã,
camaradas"
Se nos idos de 75, quando
a li pela primeira vez, me empolguei com a obra, agora não podia de modo nenhum ficar
indiferente à sua versão televisiva.
Manuel Tiago/Álvaro Cunhal não é
um romancista, antes será um narrador. Épico, sem dúvida. Porque o que nos conta neste
seu primeiro livro a chegar-nos ás mãos, assim como noutros que lhe sucederam, são
factos reais, vividos e sentidos por boa parte do povo deste país. Actos de coragem e
abnegação, de quem acredita na sua luta por um mundo melhor. Não lhe poderia faltar o
traço colorido ou o toque fantasista, mas apenas para que a narrativa tenha ritmo, sem
soluções de continuidade. Porque no fundamental, a que nos é mostrada era a vida real
dos trabalhadores e a dos militantes comunistas. Com a sua dureza e sofrimento. Com as
pequenas alegrias do quotidiano. Com a satisfação de vencer uma luta. Com a inerente
repressão. Está ali tudo, o empenhamento na militância, a dureza da vida na
clandestinidade, a traição, a cobardia, a sabotagem, a prisão, a tortura, a
resistência. O continuar da luta, maugrado os revezes. E sempre, sempre, uma bicicleta
como protagonista muda de toda a história.
Mais e acima disso, o importante
papel da mulher numa vida de riscos constantes e de responsabilidades acrescidas, a da
clandestinidade. Raramente ela foi a responsável política (ou controleira). Era
essencialmente o complemento indispensável da célula pseudo-familiar. Zelava pela
segurança da "casa", da mesma forma que o fazia com as tarefas domésticas e a
gestão do escasso orçamento "familiar". Estudava também, e por vezes a
imprensa do partido dependia do seu esforço. Mas era a "dona-de-casa"
tradicional de todos os tempos. Quase sempre tendo que renunciar à sua própria família,
em condições dramáticas, para que a organização partidária pudesse usufruir de uma
sempre precária segurança. (V. "As Clandestinas", Elsa Barradas, Ed. Ela por
Ela).
Outros romances de Manuel
Tiago: ou a reincidência ficcionista
Com a recente publicação
do romance A Casa de Eulália, Manuel Tiago reincide pelos caminhos da ficção, mesmo
sabendo-se agora que se trata do pseudónimo literário de Álvaro Cunhal. Concluída a
trilogia narrativa composta pelos romances Até Amanhã, Camaradas, Cinco Dias, Cinco
Noites e A Estrela de Seis Pontas, e feito o aviso público de que ficou de uma vez por
todas confirmado esse "mistério" de que tais romances foram encontrados
"junto de outros originais, num arquivo formado, no decurso dos anos, ao sabor de
incidentes e de acidentes da vida agitada daqueles mesmos dos quais o romance dá alguns
exemplos típicos", importa agora salientar que, passada a barreira dos oitenta anos
e posta de parte uma intensa e actuante intervenção política, Manuel Tiago tem as mãos
livres e dispõe do tempo necessário para arrumar todos os seus papéis e concluir o que
no fio dos anos e no incessante combate não teve ocasião de arrumar, talvez por não
desejar, como parece evidente, confundir as águas, misturar a acção política com a
criação literária e, por uma clara influência política e partidária, levar a que os
seus livros fossem quase de leitura "obrigatória".
Podemos assim afirmar que a
"escrita" usada no processo narrativo dos romances anteriores se revela
nitidamente tributária de um "neo-realismo" literário marcante nos anos 40 e
50, em cujo movimento estético Manuel Tiago conscientemente se integrou, e, mesmo com as
possíveis "falhas" de estilo ou de inventiva ficcional, se pode dizer que pelas
páginas densas e amargas da trilogia iniciada com Até Amanhã, Camaradas perpassa esse
profundo e autêntico testemunho de quem sofreu muitos anos de prisão e na luta política
forjou esse sonho de consolidar um mundo melhor e sempre mais justo, embora seja
claramente visível a influência literária de Caldwell ou de Steinbeck, de Jorge Amado
ou de Graciliano Ramos, que nesses anos tiveram uma acentuada importância cultural para
os escritores neo-realistas portugueses, como Alves Redol, Fernando Namora, Manuel da
Fonseca ou Carlos de Oliveira.
Mas seria talvez de esperar que A
Estrela de Seis Pontas, no plano da sua própria estrutura narrativa e literária,
avançasse no mesmo sentido de uma evidente denúncia do que foram os anos de luta contra
o salazarismo no poder. E de algum modo assim acontece, apesar de a acção do romance
decorrer na Penitenciária de Lisboa, em que um preso político convive e comunga dos
anseios e das lutas de muitos outros presidiários ali fechados por crimes de delito
comum, afastados de uma profunda razão de estar preso e sentir em absoluta consciência a
perda da liberdade, defender outras ideias e combater com razão outros valores humanos e
sociais. Mas a descrição ficcional do romance mostrou-se muito pouco incisiva na
"verdade" do que desejava narrar, mesmo nos contornos psicológicos das
personagens ou no uso e abuso de o narrador ter adoptados um certo "calão"
prisional, que não valorizou nem enriqueceu muito o "sentido" literário e o
ritmo narrativo desse romance.
Agora, com A Casa de Eulália,
Manuel Tiago recupera, a sessenta anos de distância, as razões de um testemunho vivo com
incidência nos dolorosos conflitos da Guerra Civil de Espanha. Por entre sinais de luta e
de esperança, em tempo que foi antecipador de outras hecatombes na segunda metade deste
século, o romance desvenda outras cumplicidades entre três portugueses que procuraram
comungar das mesmas lutas ao lado de uma Espanha republicana, comunista e anarquista nos
dias empolgantes de as gentes de Madrid se imporem ao levantamento fascista das tropas de
Franco. Mas o que importa pôr em relevo, na verdade ficcionista como tudo desfila pelos
fios da memória, nos actos de coragem e de generosidade, de luta e de fraternidade, é
ainda o sentido memorialista desse tempo de esperança se redescobrir por entre valores
humanos e literários que foram de ontem e são de hoje, ao mesmo tempo que Manuel Tiago,
na força e lição de vida que proclama nas duzentas páginas deste romance, poder
enfileirar por direito próprio nesse coro de vozes que sempre se ergueram na defesa das
mesmas ideias: André Malraux ou Georges Orwell, Jean-Paul Sartre ou Hemingway, La
Passionária ou Jorge Semprun.
Por último, podemos dizer que o
que se impõe em A Casa de Eulália, pela verdade romanesca das suas páginas, é esse
firme e combativo sentido denunciador das condições de clandestinidade e de combate de
quem soube lutar (fossem eles Manuel, António ou Renato), com toda a dignidade, honra,
esperança e coragem contra o fascismo franquista. E, na sentida evocação do que foi a
Guerra Civil de Espanha (1936-1939), saber-se que este romance de Manuel Tiago nada fica a
dever a algumas das melhores obras de ficção que são ainda referência necessária no
entendimento dos postulados estéticos e ideológicos que definiram o neo-realismo
literário português no domínio da poesia e da prosa de ficção.
Manuel Tiago
A CASA DE EULÁLIA
Editorial Caminho / Lisboa, 1997.
Serafim Ferreira

Trabalho e pesquisa de Carlos Leite
Ribeiro - Marinha Grande - Portugal
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