
Padre António Vieira
(O Crisóstomo Português)

Morreu a 18 de Julho de 1697 |

Padre António Vieira, nasceu em Lisboa a 6 de Fevereiro de 1608 e recebeu a sua primeira
educação no Brasil, por ter acompanhado seus pais, com apenas 6 anos de idade. Em finais
de 1640, acompanhou D. Fernando de Mascarenhas que o Brasil tinha mandado a Portugal, para
saudar o novo rei (D. João 4º), depois da Restauração de Portugal, depois de ter
estado 60 anos sob o jugo de Espanha. Pronunciou então o seu admirável sermão sobre o
bom sucesso das Armas de Portugal contra as da Holanda. D. João 4º, nomeou-o pregador da
Corte e encarregou-o de importantes missões diplomáticas no estrangeiro. Entre 1665 e
1667, esteve o Padre António Vieira preso nos cárceres do Santo Ofício (Inquisição).
Assim que recuperou a liberdade, partiu para Roma, onde alcançou grandes triunfos
oratórios. A Rainha Cristina da Suécia, que então residia em Roma, nomeou-o seu
confessor e pregador, mas em 1681, já septuagenário, regressou ao Brasil. Sofreu ainda
grandes dissabores antes de falecer com quase 90 anos. As obras do Padre António Vieira
abrangem 26 volumes, sendo cerca de 200 sermões, 500 cartas e muitos estudos políticos e
literários. O estilo dos sermões é de extraordinário brilho. Nenhum outro escritor
português se lhe pode comparar na riqueza e propriedade do vocabulário e na variedade
das expressões. As frases, porém, saem-lhe por vezes arrebicadas, contorcidas, vergadas
ao peso de metáforas, alegorias e trocadilhos. Nas suas cartas, pelo contrário, salvo
algumas excepções, é pela singeleza desartificiosa que o seu estilo encanta, sem nada
perder da sua opulência verbal. Padre António Vieira é uma das figuras principais da
Literatura Portuguesa.
A Vida do Padre António
Vieira
06 de Fevereiro de 1608 -
Nasce António Vieira, filho de Cristóvão Vieira Rovasco e de Maria de Azevedo, na Rua
dos Cónegos, em Lisboa.
15 de Fevereiro de 1608 - António
Vieira é baptizado na Freguesia da Sé.
1609 - Cristóvão Vieira Rovasco
embarca para a Bahia, para ocupar o ofício de escrivão dos agravos e apelações da
relação da Bahia.
1612 - Cristóvão Vieira Rovasco
retorna para Lisboa com o intuito de buscar a mulher e o filho.
1614 - Cristóvão Vieira Rovasco
volta para a Bahia com a família a 11 de Março de 1623 - Primeiro movimento do espírito
de Vieira em direcção a Companhia de Jesus, ao ouvir o Auto de São Lourenço, pregado
pelo Padre Manuel de Conto.
05 de Maio de 1623 - António
Vieira foge de casa com o objectivo de pedir permissão para os padres da Companhia de
Jesus para que o aceite na Companhia, sendo recebido ao noviciado no dia seguinte.
1625 - Vieira teria realizado um
voto de dedicação aos índios.
1626 - Começa a leccionar
retórica no Colégio de Olinda.
30 de Julho de 1626 - Dada da Carta
Anua, composta por António Vieira e dirigida ao Geral da Companhia.
1633 - Sobe ao púlpito pela
primeira vez, em Salvador.
1634 - Prega o sermão de São
Sebastião, contra o domínio dos espanhóis sobre Portugal.
10 de Dezembro de 1634 - É
ordenado presbítero.
1638 - É nomeado Prof. de Teologia
em Salvador.
1640 - Prega o Sermão do bom
sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda, na Bahia.27 de Fevereiro de 1641 -
Vieira embarca para Portugal, junto a uma comitiva brasileira que levaria a adesão da
Colónia à Restauração Portuguesa e ao Rei D. João IV, chegando em Lisboa em 30 de
Abril de 1641.
01 de Janeiro de 1642 - Prega pela
primeira vez no púlpito da capela real.
26 de Maio de 1644 - realiza seus
últimos votos na Companhia, alcançando o grau de professo.
1644 - É nomeado pregador régio.
01 de Fevereiro de 1646 - Parte
para Haia em primeira missão diplomática em nome do Rei. Passa pela França, em busca de
apoio. Chega em Haia no dia 18 de Abril de 1646, partindo de volta a Lisboa em julho.30 de
Agosto de 1647 - Parte para a França em missão diplomática, onde levava proposta de
casamento do Filho do Rei de Portugal (D. Teodósio) com a filha do Duque de Orléans
(Melle de Montpensier). Se aceito fosse, D. João IV abdicaria ao trono de Portugal a
favor de seu filho, retirando-se para o Brasil, que se tornaria uma monarquia. Chega em
Paris em 11 de Outubro de 1647, partindo depois para Haia com o objectivo de auxiliar nas
questões diplomáticas com a Holanda.
08 de Janeiro de 1650 - Parte para
Roma, em missão diplomática, com o intuito de promover uma revolta de Nápoles contra a
Espanha, além de propor casamento do príncipe D. Teodósio com a herdeira do trono
espanhol, D. Maria Teresa, chegando a Roma em 16 de Fevereiro de 1650.
22 de Novembro de 1652 - Embarca
para o Maranhão, desembarcando em São Luís à 16 de Janeiro de 1653.
02 de Fevereiro de 1653 - Prega
pela primeira vez no Maranhão: Sermão do Primeiro Domingo da Quaresma (o das
tentações).
1654 - Parte em excursão
missionária ao Rio dos Tocantis, onde tem desavenças com o sertanejo Gaspar Cardoso, que
ignora a presença dos padres na excursão.
16 de Junho de 1654 - Parte para
Portugal, buscando as garantias necessárias para a actuação missionária no Maranhão,
chegando no mês de Novembro em Lisboa.
16 de Abril de 1655 - Parte
vitorioso de volta ao Brasil, chegando ao Maranhão em 16 de Maio de 1655.1656 - Morte de
D. João IV e início da decadência de Vieira na corte.
13 de Abril de 1660 - É pedido,
pela Inquisição, a carta de Vieira enviada ao Padre André de Barros e intitulada
"Esperanças de Portugal".
10 de Janeiro de 1661 - Carta da
câmara de São Luís ao Padre António Vieira, onde se coloca a necessidade da
utilização da mão de obra indígena.
17 de Julho de 1661 - Colégio dos
jesuítas é assaltado e os padres da Companhia de Jesus são todos presos. Logo em
seguida Vieira é preso em Belém do Pará. É deportado para Portugal juntamente com os
demais padres da Companhia. A 06 de Janeiro de 1662 - Já em Portugal, prega o Sermão da
Epifania na capela real, em defesa dos jesuítas.
1662 - Vieira é proibido de
retornar às missões. É mandado para a cidade do Porto, em desterro.
21 de Junho de 1662 - É chamado
para comparecer junto ao tribunal inquisitório, em Coimbra.
05 de Abril de 1664 - É dado o
libelo inquisitorial à Vieira: culpado. É permitido a Vieira responder suas acusações
por escrito.
Fevereiro de 1665 - Recebe os
livros do Abade Joaquim e de Santo Isidoro de Sevilha.
01 de Outubro de 1665 - É
encarcerado pela inquisição de Coimbra.
1666 - Ano em que Vieira esperava
que fosse se estabelecer o Quinto Império.
21 de Junho de 1666 - Entrega sua
representação ao Santo Ofício.
23 de Dezembro de 1667 - Sentença
de Vieira pela Inquisição: reclusão no antigo Mosteiro de Pedroso e proibição de
pregar ou escrever.
12 de Junho de 1668 - Vieira é
absolvido da pena, por influência da Corte Portuguesa.
21 de Agosto de 1669 - parte para
Roma, onde chega à 21 de Novembro de 1669.
17 de Abril de 1675 - Adquire um
breve Papal que o isenta de qualquer jurisdição dos inquisidores portugueses. Logo em
seguida retorna à Portugal, chegando à Lisboa em 23 de Agosto de 1675. A 27 de Janeiro
de 1681 - Parte para a Bahia.
1685 - Na Espanha, espalha-se que
Vieira teria sido queimado em um auto de fé.
1688 - É nomeado Visitador da
província do Brasil, exercendo o cargo por três anos.
15 de Dezembro de 1688 - Prega, na
Bahia, sermão em comemoração ao nascimento, em Lisboa, da nova esperança do Quinto
Império, o infante D. João, filho de D. Pedro II, que morre depois de um mês.
06 de Fevereiro de 1694 - Vieira
solicita, em circular para seus amigos, que não se comuniquem mais com ele.
18 de Junho de 1697 - Morre em
Salvador (Bahia - Brasil).
O Padre António Vieira escapou com
vida do fogo sempre aceso pela Inquisição. Foi punido com o silêncio. Acusado, não
escapou do cárcere. Sua pena foi branda: perdeu o direito à palavra e teve sua
residência fixada em colégio jesuítico. Lançando mão de seus contactos na Corte,
Vieira consegue deixar Portugal em missão da Companhia. Não era difícil para um grande
orador como ele defender a canonização de mártires jesuítas em Roma. Sua proximidade
com o papado favoreceu negociações que resultaram na revisão de seu processo. Em 1675,
Vieira retorna para Portugal livre das determinações do Tribunal, recuperando o direito
à palavra. A oratória foi instrumento de seu génio. Manteve sempre com entusiasmo em
suas pregações a profundidade e a clareza necessárias para a reflexão dos textos
bíblicos. Estudava, pensava, escrevia. Assim, não edificou sua história com vistas a um
desfecho épico nem tampouco se prestou a construções que lhe atribuíssem um perfil
heróico. Ao contrário, usou de sua habilidade política para obter em Roma um diploma
que o isentava da Inquisição portuguesa: gesto nada heróico. Em geral, construímos com
maior ênfase e glória a história dos perseguidos pelo Santo Ofício que, mantendo-se
fiéis às suas crenças, sofreram suplícios e foram executados. A sentença de Vieira,
desta forma, retira-o do modelo heróico, exclui violências físicas, deixando-o apenas
com a sua solidão no silêncio do cárcere. A cena inquisitorial, da qual Vieira é
parte, não terminou em tragédia, nem tampouco foi gerida por gestos comovedores. Tudo
transcorreu em meio a negociações sustentadas por sua primorosa defesa diante do
Tribunal. O espectáculo teve início com a sobrevivência (e não morte) do narrador e
concluiu-se com um longo trabalho de reelaboração de textos, cuja versão final foi
refinada nos seus últimos anos de vida. Sem a glória dos heróis, pôde produzir,
lentamente, um trabalho precioso, cujo poder de reflexão mantém sua obra viva até os
dias de hoje. Afinal, os sermões eram seu ofício, sua vida. Ainda hoje, não é simples
abandonar a estética romântica. Ela nos comove e nos impressiona. Facilmente enobrecemos
a história daqueles que morreram em nome de seus ideais. A acção heróica valoriza
comportamentos que explicitam seu conteúdo ético, a inteireza de carácter das
personagens, facilitando para o receptor da mensagem a separação pedagógica entre bem e
mal. Tudo pode ser explicado, tudo fica claro no dualismo vítima - algoz. Nesse sentido,
a morte se constitui na maior prova que o herói pôde dar a si mesmo e aos outros de que
tem certeza plena (fé) de que não existe dúvida alguma para aqueles que vi venciam o
papel central do drama. A resposta final, conclusiva, exige apoteose da cena e passa a ser
retida na memória dos sobreviventes, através de descrições enobrecidas pela firmeza
com que se aceita a morte.
.
O Célebre "Sermão de
Santo António" - pelo padre António Vieira
Pregado em S. Luís do Maranhão
(Brasil) , três dias antes de se embarcar ocultamente para o Reino
Vos estis sal terrae. S. Mateus, V,
l3.
Vós, diz Cristo, Senhor nosso,
falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que
façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a
terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de
sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não
salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os
pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os
ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o
sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não
deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem.
Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a
terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus
apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal!
Suposto, pois, que ou o sal não
salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há-de fazer a este sal e que se há-de
fazer a esta terra? O que se há-de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Quod
si sal evanuerit, in quo salietur? Ad nihilum valet ultra, nisi ut mittatur foras et
conculcetur ab hominibus. «Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar
à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há-de fazer, é lançá-lo fora como inútil para
que seja pisado de todos.» Quem se atrevera a dizer tal cousa, se o mesmo Cristo a não
pronunciara? Assim como não há quem seja mais digno de reverência e de ser posto sobre
a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o
desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o
contrário. Isto é o que se deve fazer ao sal que não salga. E à terra que se não
deixa salgar, que se lhe há-de fazer? Este ponto não resolveu Cristo, Senhor nosso, no
Evangelho; mas temos sobre ele a resolução do nosso grande português Santo António,
que hoje celebramos, e a mais galharda e gloriosa resolução que nenhum santo tomou.
Pregava Santo António em Itália
na cidade de Arimino, contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de
entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o santo, mas chegou
o povo a se levantar contra ele e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que
faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como
Cristo aconselha em outro lugar? Mas António com os pés descalços não podia fazer esta
protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra não tinham que sacudir. Que
faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria
porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia
naquele peito, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o
púlpito e o auditório, mas não desistiu da doutrina. Deixa as praças, vai-se às
praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: Já que me não
querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes. Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do
que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os
grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da
água, António pregava e eles ouviam. Se a Igreja quer que preguemos de Santo António
sobre o Evangelho, dê-nos outro. Vos estis sal terrae: É muito bom texto para os outros
santos doutores; mas para Santo António vem-lhe muito curto. Os outros santos doutores da
Igreja foram sal da terra; Santo António foi sal da terra e foi sal do mar. Este é o
assunto que eu tinha para tomar hoje. Mas há muitos dias que tenho metido no pensamento
que, nas festas dos santos, é melhor pregar como eles, que pregar deles. Quanto mais que
o são da minha doutrina, qualquer que ele seja tem tido nesta terra uma fortuna tão
parecida à de Santo António em Arimino, que é força segui-la em tudo. Muitas vezes vos
tenho pregado nesta igreja, e noutras, de manhã e de tarde, de dia e de noite, sempre com
doutrina muito clara, muito sólida, muito verdadeira, e a que mais necessária e
importante é a esta terra para emenda e reforma dos vícios que a corrompem. O fruto que
tenho colhido desta doutrina, e se a terra tem tomado o sal, ou se tem tomado dele, vós o
sabeis e eu por vós o sinto. Isto suposto, quero hoje, à imitação de Santo António,
voltar-me da terra ao mar, e já que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes. O
mar está tão perto que bem me ouvirão. Os demais podem deixar o sermão, pois não é
para eles. Maria, quer dizer, Domina maris: «Senhora do mar»; e posto que o assunto seja
tão desusado, espero que me não falte com a costumada graça. Ave Maria.
Enfim, que havemos de pregar hoje
aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de
ouvintes: ouvem e não falam. Uma só cousa pudera desconsolar ao pregador, que é serem
gente os peixes que se não há-de converter. Mas esta dor é tão ordinária, que já
pelo costume quase se não sente. Por esta causa mão falarei hoje em Céu nem Inferno; e
assim será menos triste este sermão, do que os meus parecem aos homens, pelos encaminhar
sempre à lembrança destes dois fins. Vos estis sal terrae. Haveis de saber, irmãos
peixes, que o sal, filho do mar como vós, tem duas propriedades, as quais em vós mesmos
se experimentam: conservar o são e preservá-lo para que se não corrompa. Estas mesmas
propriedades tinham as pregações do vosso pregador Santo António, como também as devem
ter as de todos os pregadores. Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem
para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só
aos homens, porque também nos peixes tem seu lugar. Assim o diz o grande Doutor da Igreja
S. Basílio: Non carpere solum, reprehendereque possumus pisces, sed sunt in illis, et
quae prosequenda sunt imitatione: «Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender
nos peixes, senão também que imitar e louvar.» Quando Cristo comparou a sua Igreja à
rede de pescar, Sagenae missae in mare, diz que os pescadores «recolheram os peixes bons
e lançaram fora os maus»: Elegerunt bonos in vasa, malos autem foras miserunt. E onde
há bons e maus, há que louvar e que repreender. Suposto isto, para que procedamos com
clareza, dividirei, peixes, o vosso sermão em dois pontos: no primeiro louvar-vos-ei as
vossas virtudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios. E desta maneira
satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que
experimentá-las depois de mortos. Começando pois, pelos vossos louvores, irmãos peixes,
bem vos pudera eu dizer que entre todas as criaturas viventes e sensitivas, vós fostes as
primeiras que Deus criou. A vós criou primeiro que as aves do ar, a vós primeiro que aos
animais da terra e a vós primeiro que ao mesmo homem. Ao homem deu Deus a monarquia e o
domínio de todos os animais dos três elementos, e nas provisões em que o honrou com
estes poderes, os primeiros nomeados foram os peixes: Ut praesit piscibus maris et
volatilibus caeli, et bestiis, universaeque terrae. Entre todos os animais do Mundo, os
peixes são os mais e os peixes os maiores. Que comparação têm em número as espécies
das aves e as dos animais terrestres com as dos peixes? Que comparação na grandeza o
elefante com a baleia? Por isso Moisés, cronista da criação, calando os nomes de todos
os animais, só a ela nomeou pelo seu: Creavit Deus cete grandia. E os três músicos da
fornalha da Babilónia o cantaram também como singular entre todos: Benedicite, cete et
omnia quae moventur in aquis, Domino. Estes e outros louvores, estas e outras excelências
de vossa geração e grandeza vos pudera dizer, ó peixes; mas isto é lá para os homens,
que se deixam levar destas vaidades, e é também para os lugares em que tem lugar a
adulação, e não para o púlpito. Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as
que só podem dar o verdadeiro louvor, a primeira que se me oferece aos olhos hoje, é
aquela obediência com que, chamados, acudistes todos pela honra de vosso Criador e
Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca
de seu servo António. Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes e grande afronta e
confusão para os homens! Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e
ainda do Mundo, se pudessem, porque lhes repreendia seus vícios, porque lhes não queria
falar à vontade e condescender com seus erros, e no mesmo tempo os peixes em inumerável
concurso acudindo à sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando com
silêncio e com sinais de admiração e assenso (como se tiveram entendimento) o que não
entendiam. Quem olhasse neste passo para o mar e para a terra, e visse na terra os homens
tão furiosos e obstinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de
dizer? Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os
homens não em peixes, mas em feras. Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes;
mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão.
Muito louvor mereceis, peixes, por
este respeito e devoção que tivestes aos pregadores da palavra de Deus, e tanto mais
quanto não foi só esta a vez em que assim o fizestes. Ia Jonas, pregador do mesmo Deus,
embarcado em um navio, quando se levantou aquela grande tempestade; e como o trataram os
homens, como o trataram os peixes? Os homens lançaram-no ao mar a ser comido dos peixes,
e o peixe que o comeu, levou-o às praias de Nínive, para que lá pregasse e salvasse
aqueles homens. É possível que os peixes ajudam à salvação dos homens, e os homens
lançam ao mar os ministros da salvação?! Vede, peixes, e não vos venha vanglória,
quanto melhores sois que os homens. Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar,
e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra. Mas porque nestas
duas acções teve maior parte a omnipotência que a natureza (como também em todas as
milagrosas que obram os homens) passo às virtudes naturais e próprias vossas. Falando
dos peixes, Aristóteles diz que só eles, entre todos os animais, se não domam nem
domesticam. Dos animais terrestres o cão é tão doméstico, o cavalo tão sujeito, o boi
tão serviçal, o bugio tão amigo ou tão lisonjeiro, e até os leões e os tigres com
arte e benefícios se amansam. Dos animais do ar, afora aquelas aves que se criam e vivem
connosco, o papagaio nos fala, o rouxinol nos canta, o açor nos ajuda e nos recreia; e
até as grandes aves de rapina, encolhendo as unhas, reconhecem a mão de quem recebem o
sustento. Os peixes, pelo contrário, lá se vivem nos seus mares e rios, lá se mergulham
nos seus pegos, lá se escondem nas suas grutas, e não há nenhum tão grande que se fie
do homem, nem tão pequeno que não fuja dele. Os autores comummente condenam esta
condição dos peixes, e a deitam à pouca docilidade ou demasiada bruteza; mas eu sou de
mui diferente opinião. Não condeno, antes louvo muito aos peixes este seu retiro, e me
parece que, se não fora natureza, era grande prudência. Peixes! Quanto mais longe dos
homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos livre! Se os animais da
terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o
fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio,
mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes; faça-lhes
bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão de lhes roer um osso, mas levado
onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o
jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar
freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os leões lhe comem a
ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de
ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só
convosco, sim, mas como peixe na água. De casa e das portas a dentro tendes o exemplo de
toda esta verdade, o qual vos quero lembrar, porque há filósofos que dizem que não
tendes memória. No tempo de Noé sucedeu o dilúvio que cobriu e alagou o Mundo, e de
todos os animais quais livraram melhor? Dos leões escaparam dois, leão e leoa, e assim
dos outros animais da terra; das águias escaparam duas, fêmea e macho, e assim das
outras aves. E dos peixes? Todos escaparam, antes não só escaparam todos, mas ficaram
muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois se morreram
naquele universal castigo todos os animais da terra e todas as aves, porque mão morreram
também os peixes? Sabeis porquê? Diz Santo Ambrósio: porque os outros animais, como
mais domésticos ou mais vizinhos, tinham mais comunicação com os homens, os peixes
viviam longe e retirados deles. Facilmente pudera Deus fazer que as águas fossem
venenosas e matassem todos os peixes, assim como afogaram todos os outros animais. Bem o
experimentais na força daquelas ervas com que, infeccionados os poços e lagos, a mesma
água vos mata; mas como o dilúvio era um castigo universal que Deus dava aos homens por
seus pecados, e ao Mundo pelos pecados dos homens, foi altíssima providência da divina
Justiça que nele houvesse esta diversidade ou distinção, para que o mesmo Mundo visse
que da companhia dos homens lhe viera todo o mal; e que por isso os animais que viviam
mais perto deles, foram também castigados e os que andavam longe ficaram livres. Vede,
peixes, quão grande bem é estar longe dos homens. Perguntando um grande filósofo qual
era a melhor terra do Mundo, respondeu que a mais deserta, porque tinha os homens mais
longe. Se isto vos pregou também Santo António e foi este um dos benefícios de
que vos exortou a dar graças ao Criador bem vos pudera alegar consigo, que quanto
mais buscava a Deus, tanto mais fugia dos homens. Para fugir dos homens deixou a casa de
seus pais e se recolheu a uma religião, onde professasse perpétua clausura. E porque nem
aqui o deixavam os que ele tinha deixado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e
finalmente Portugal. Para fugir e se esconder dos homens mudou o hábito, mudou o nome, e
até a si mesmo se mudou, ocultando sua grande sabedoria debaixo da opinião de idiota,
com que não fosse conhecido nem buscado, antes deixado de todos, como lhe sucedeu com
seus próprios irmãos no capítulo geral de Assis. De ali se retirou a fazer vida
solitária em um ermo, do qual nunca saíra, se Deus como por força o não manifestara e
por fim acabou a vida em outro deserto, tanto mais unido com Deus, quanto mais apartado
dos homens.
Este é, peixes, em comum o natural
que em todos vós louvo, e a felicidade de que vos dou o parabém, não sem inveja.
Descendo ao particular, infinita matéria fora se houvera de discorrer pelas virtudes de
que o Autor da natureza a dotou e fez admirável em cada um de vós. De alguns somente
farei menção. E o que tem o primeiro lugar entre todos, como tão celebrado na
Escritura, é aquele santo peixe de Tobias a quem o texto sagrado não dá outro nome que
de grande, como verdadeiramente o foi nas virtudes interiores, em que só consiste a
verdadeira grandeza. Ia Tobias caminhando com o anjo S. Rafael, que o acompanhava, e
descendo a lavar os pés do pó do caminho nas margens de um rio, eis que o investe um
grande peixe com a boca aberta em acção de que o queria tragar. Gritou Tobias
assombrado, mas o anjo lhe disse que pegasse no peixe pela barbatana e o arrastasse para
terra; que o abrisse e lhe tirasse as entranhas e as guardasse, porque lhe haviam de
servir muito. Fê-lo assim Tobias, e perguntando que virtude tinham as entranhas daquele
peixe que lhe mandara guardar, respondeu o anjo que o fel era bom para sarar da cegueira e
o coração para lançar fora os demónios: Cordis eius particulam, si super carbones
ponas, fumus eius extricat omne genus daemoniorum: et fel valet ad ungendos oculos, in
quibus fuerit albugo, et sanabuntur. Assim o disse o anjo, e assim o mostrou logo a
experiência, porque, sendo o pai de Tobias cego, aplicando-lhe o filho aos olhos um
pequeno do fel, cobrou inteiramente a vista; e tendo um demónio, chamado Asmodeu, morto
sete maridos a Sara, casou com ela o mesmo Tobias; e queimando na casa parte do coração,
fugiu dali o Demónio e nunca mais tornou. De sorte que o fel daquele peixe tirou a
cegueira a Tobias, o velho, e lançou os demónios de casa a Tobias, o moço. Um peixe de
tão bom coração e de tão proveitoso fel, quem o não louvará mais? Certo que se a
este peixe o vestiram de burel e o ataram com uma corda, parecia um retrato marítimo de
Santo António. Abria Santo António a boca contra os hereges, e enviava-se a eles, levado
do fervor e zelo da fé e glória divina. E eles que faziam? Gritavam como Tobias e
assombravam-se com aquele homem e cuidavam que os queria comer. Ah homens, se houvesse um
anjo que vos revelasse qual é o coração desse homem e esse fel que tanto vos amarga,
quão proveitoso e quão necessário vos é! Se vós lhe abrísseis esse peito e lhe
vísseis as entranhas, como é certo que havíeis de achar e conhecer claramente nelas que
só duas cousas pretende de vós, e convosco: uma é alumiar e curar vossas cegueiras, e
outra lançar-vos os demónios fora de casa. Pois a quem vos quer tirar as cegueiras, a
quem vos quer livrar dos demónios perseguis vós?! Só uma diferença havia entre Santo
António e aquele peixe: que o peixe abriu a boca contra quem se lavava, e Santo António
abria a sua contra os que se não queriam lavar. Ah moradores do Maranhão, quanto eu vos
pudera agora dizer neste caso! Abri, abri estas entranhas; vede, vede este coração. Mas
ah sim, que me não lembrava! Eu não vos prego a vós, prego aos peixes. Passando dos da
Escritura aos da história natural, quem haverá que não louve e admire muito a virtude
tão celebrada da rémora? No dia de um santo menor, os peixes menores devem preferir aos
outros. Quem haverá, digo, que não admire a virtude daquele peixezinho tão pequeno no
corpo e tão grande na força e no poder, que não sendo maior de um palmo, se se pega ao
leme de uma nau da Índia, apesar das velas e dos ventos, e de seu próprio peso e
grandeza, a prende e amarra mais que as mesmas âncoras, sem se poder mover, nem ir por
diante? Oh se houvera uma rémora na terra, que tivesse tanta força como a do mar, que
menos perigos haveria na vida e que menos naufrágios no Mundo! Se alguma rémora houve na
terra, foi a língua de Santo António, na qual, como na rémora, se verifica o verso de
São Gregório Nazianzeno: Lingua quidem parva est, sed viribus omnia vincit. O Apóstolo
Santiago, naquela sua eloquentíssima Epístola, compara a língua ao leme da nau e ao
freio do cavalo. Uma e outra comparação juntas declaram maravilhosamente a virtude da
rémora, a qual, pegada ao leme da nau, é freio da nau e leme do leme. E tal foi a
virtude e força da língua de Santo António. O leme da natureza humana é o alvedrio, o
piloto é a razão: mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos precipitados do
alvedrio? Neste leme, porém, tão desobediente e rebelde, mostrou a língua de António
quanta força tinha, como rémora, para domar a fúria das paixões humanas. Quantos,
correndo fortuna na nau Soberba, com as velas inchadas do vento e da mesma soberba (que
também é vento), se iam desfazer nos baixos, que já rebentavam por proa, se a língua
de António, como rémora, não tivesse mão no leme, até que as velas se amainassem,
como mandava a razão, e cessasse a tempestade de fora e a de dentro? Quantos, embarcados
na nau Vingança, com a artilharia abocada e os botafogos acesos, corriam infunados a
dar-se batalha, onde se queimariam ou deitariam a pique se a rémora da língua de
António lhes dão detivesse a fúria, até que, composta a ira e ódio, com bandeiras de
paz se salvassem amigavelmente? Quantos, navegando na nau Cobiça, sobrecarregada até às
gáveas e aberta com o peso por todas as costuras, incapaz de fugir, nem se defender,
dariam nas mãos dos corsários com perda do que levavam e do que iam buscar, se a língua
de António os não fizesse parar, como rémora, até que, aliviados da carga injusta,
escapassem do perigo e tomassem porto? Quantos, na nau Sensualidade, que sempre navega com
cerração, sem sol de dia, nem estrelas de noite, enganados do canto das sereias e
deixando-se levar da corrente, se iriam perder cegamente, ou em Sila, ou em Caribdes, onde
não aparecesse navio nem navegante, se a rémora da língua de António os não
contivesse, até que esclarecesse a luz e se pusessem em vista. Esta é a língua, peixes,
do vosso grande pregador, que também foi rémora vossa, enquanto o ouvistes; e porque
agora está muda (posto que ainda se conserva inteira) se vêem e choram na terra tantos
naufrágios. Mas para que da admiração de uma tão grande virtude vossa, passemos ao
louvor ou inveja de outra não menor, admirável é igualmente a qualidade daquele outro
peixezinho, a que os latinos chamaram torpedo. Ambos estes peixes conhecemos cá mais de
fama que de vista; mas isto têm as virtudes grandes, que quanto são maiores, mais se
escondem. Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a bóia sobre a água, e
em lhe picando na isca o torpedo começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior, mais
breve e mais admirável efeito? De maneira que, num momento, passa a virtude do
peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do
pescador. Com muita razão disse que este vosso louvor o havia de referir com inveja. Quem
dera aos pescadores do nosso elemento, ou quem lhes pusera esta qualidade tremente, em
tudo o que pescam na terra! Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que me espanta
é que pesquem tanto e que tremam tão pouco. Tanto pescar e tão pouco tremer! Pudera-se
fazer problema; onde há mais pescadores e mais modos e traças de pescar, se no mar ou na
terra? E é certo que na terra. Não quero discorrer por eles, ainda que fora grande
consolação para os peixes; baste fazer a comparação com a cana, pois é o instrumento
do nosso caso. No mar, pescam as canas, na terra, as varas, (e tanta sorte de varas);
pescam as ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões e até os ceptros pescam, e
pescam mais que todos, porque pescam cidades e reinos inteiros. Pois é possível que,
pescando os homens cousas de tanto peso, lhes não trema a mão e o braço?! Se eu pregara
aos homens e tivera a língua de Santo António, eu os fizera tremer. Vinte e dois
pescadores destes se acharam acaso a um sermão de Santo António, e às palavras do Santo
os fizeram tremer a todos de sorte que todos, tremendo, se lançaram a seus pés; todos,
tremendo, confessaram seus furtos; todos, tremendo, restituíram o que podiam (que isto é
o que faz tremer mais neste pecado que nos outros); todos enfim mudaram de vida e de
ofício e se emendaram. Quero acabar este discurso dos louvores e virtudes dos peixes com
um, que não sei se foi ouvinte de Santo António e aprendeu dele a pregar. A verdade é
que me pregou a mim, e se eu fora outro, também me convertera. Navegando de aqui para o
Pará (que é bem não fiquem de fora os peixes da nossa costa), vi correr pela tona da
água de quando em quando, a saltos, um cardume de peixinhos que não conhecia; e como me
dissessem que os Portugueses lhe chamavam quatro-olhos, quis averiguar ocularmente a
razão deste nome, e achei que verdadeiramente têm quatro olhos, em tudo cabais e
perfeitos. Dá graças a Deus, lhe disse, e louva a liberalidade de sua divina
providência para contigo; pois às águias, que são os linces do ar, deu somente dois
olhos, e aos linces, que são as águias da terra, também dois; e a ti, peixezinho,
quatro. Mais me admirei ainda, considerando nesta maravilha a circunstância do lugar.
Tantos instrumentos de vista a um bichinho do mar, nas praias daquelas mesmas terras
vastíssimas, onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes
há tantos séculos! Oh quão altas e incompreensíveis são as razões de Deus, e quão
profundo o abismo de seus juízos! Filosofando, pois, sobre a causa natural desta
providência, notei que aqueles quatro olhos estão lançados um pouco fora do lugar
ordinário, e cada par deles, unidos como os dois vidros de um relógio de areia, em tal
forma que os da parte superior olham direitamente para cima, e os da parte inferior
direitamente para baixo. E a razão desta nova arquitectura, é porque estes peixinhos,
que sempre andam na superfície da água, não só são perseguidos dos outros peixes
maiores do mar, senão também de grande quantidade de aves marítimas, que vivem naquelas
praias; e como têm inimigos no mar e inimigos no ar, dobrou-lhes a natureza as sentinelas
e deu-lhes dois alhos, que direitamente olhassem para cima, para se vigiarem das aves, e
outros dois que direitamente olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes. Oh que bem
informara estes quatro olhos uma alma racional, e que bem empregada fora neles, melhor que
em muitos homens! Esta é a pregação que me fez aquele peixezinho, ensinando-me que, se
tenho fé e uso da razão, só devo olhar direitamente para cima, e só direitamente para
baixo: para cima, considerando que há Céu, e para baixo, lembrando-me que há Inferno.
Não me alegou para isso passo da Escritura; mas então me ensinou o que quis dizer David
em um, que eu não entendia: Averte oculos meos, ne videant vanitatem. «Voltai-me,
Senhor, os olhos, para que não vejam a vaidade.»
Pois David não podia voltar os
seus olhos para onde quisesse?! Do modo que ele queria, não. Ele queria voltados os seus
olhos, de modo que não vissem a vaidade, e isto não o podia fazer neste Mundo, para
qualquer parte que voltasse os olhos, porque neste Mundo «tudo é vaidade»: Vanitas
vanitatum et omnia vanitas. Logo, para não verem os olhos de David a vaidade, havia-lhos
de voltar Deus de modo que só vissem e olhassem para o outro Mundo em ambos seus
hemisférios; ou para o de cima, olhando direitamente só para o Céu, ou para o de baixo,
olhando direitamente só para o Inferno. E esta é a mercê que pedia a Deus aquele grande
profeta, e esta a doutrina que me pregou aquele peixezinho tão pequeno. Mas ainda que o
Céu e o Inferno se não fez para vós, irmãos peixes, acabo, e dou fim a vossos
louvores, com vos dar as graças do muito que ajudais a ir ao Céu, e não ao Inferno, os
que se sustentam de vós. Vós sois os que sustentais as Cartuxas e os Buçacos, e todas
as santas famílias, que professam mais rigorosa austeridade; vós os que a todos os
verdadeiros cristãos ajudais a levar a penitência das quaresmas; vós aqueles com que o
mesmo Cristo festejou a Páscoa as duas vezes que comeu com seus discípulos depois de
ressuscitado. Prezem-se as aves e os animais terrestres de fazer esplêndidos e custosos
os banquetes dos ricos, e vós gloriai-vos de ser companheiros do jejum e da abstinência
dos justos! Tendes todos quantos sois tanto parentesco e simpatia com a virtude, que,
proibindo Deus no jejum a pior e mais grosseira carne, concede o melhor e mais delicado
peixe. E posto que na semana só dois se chamam vossos, nenhum dia vos é vedado. Um só
lugar vos deram os astrólogos entre os signos celestes, mas os que só de vós se mantêm
na terra, são os que têm mais seguros os lugares do Céu. Enfim, sois criaturas daquele
elemento, cuja fecundidade entre todos é própria do Espírito Santo: Spiritus Domini
foecundabat aquas. Deitou-vos Deus a bênção, que crescêsseis e multiplicásseis; e
para que o Senhor vos confirme essa bênção, lembrai-vos de não faltar aos pobres com o
seu remédio. Entendei que no sustento dos pobres tendes seguros os vossos aumentos. Tomai
o exemplo nas irmãs sardinhas. Porque cuidais que as multiplica o Criador em número tão
inumerável? Porque são sustento de pobres. Os solhos e os salmões são muito contados,
porque servem à mesa dos reis e dos poderosos; mas o peixe que sustenta a fome dos pobres
de Cristo, o mesmo Cristo os multiplica e aumenta. Aqueles dois peixes companheiros dos
cinco pães do deserto, multiplicaram tanto, que deram de comer a cinco mil homens. Pois
se peixes mortos, que sustentam os pobres, multiplicam tanto, quanto mais e melhor o
farão os vivos! Crescei, peixes, crescei e multiplicai, e Deus vos confirme a sua
bênção.
Antes, porém, que vos vades, assim
como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões.
Servir-vos-ão de confusão, já que não seja de emenda. A primeira cousa que me
desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este,
mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os
grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram
os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos,
não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Olhai como estranha isto Santo
Agostinho: Homines pravis, praeversisque cupiditatibus facti sunt, sicut pisces invicem se
devorantes: «Os homens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que
se comem uns aos outros.» Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma
natureza, que sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria e
todos finalmente irmãos, vivais de vos comer! Santo Agostinho, que pregava aos homens,
para encarecer a fealdade deste escândalo, mostrou-lho nos peixes; e eu, que prego aos
peixes, para que vejais quão feio e abominável é, quero que o vejais nos homens. Olhai,
peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os
olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de
olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de
cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele
andar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as
calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é
andarem buscando os homens como hão-de comer e como se hão-de comer. Morreu algum deles,
vereis logo tantos sobre o miserável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros,
comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, comem-no os acredores; comem-no os
oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou
ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o sangue; come-a a mesma mulher, que de
má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a
cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantando, o levam a enterrar; enfim, ainda o
pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra. Já se os homens se
comeram somente depois de mortos, parece que era menos horror e menos matéria de
sentimento. Mas para que conheçais a que chega a vossa crueldade, considerai, peixes, que
também os homens se comem vivos assim como vós. Vivo estava Job, quando dizia: Quare
persequimini me, et carnibus meis saturamini? «Porque me perseguis tão desumanamente,
vós, que me estais comendo vivo e fartando-vos da minha carne?» Quereis ver um Job
destes? Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e
olhai quantos o estão comendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o
escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come-o o inquiridor, come-o a
testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São
piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão
depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem
sentenciado, e já está comido. E para que vejais como estes comidos na terra são os
pequenos, e pelos mesmos modos com que vós comeis no mar, ouvi a Deus queixando-se deste
pecado: Nonne cognoscent omnes, qui operantur iniquitatem, qui devorunt plebem meam, ut
cibum panis? «Cuidais, diz Deus, que não há-de vir tempo em que conheçam e paguem o
seu merecido aqueles que cometem a maldade?» E que maldade é esta, à qual Deus
singularmente chama maldade, como se não houvera outra no Mundo? E quem são aqueles que
a cometem? A maldade é comerem-se os homens uns aos outros, e os que a cometem são os
maiores, que comem os pequenos: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Nestas palavras,
pelo que vos toca, importa, peixes, que advirtais muito outras tantas cousas, quantas são
as mesmas palavras. Diz Deus que comem os homens não só o seu povo, senão
declaradamente a sua plebe: Plebem meam, porque a plebe e os plebeus, que são os mais
pequenos, os que menos podem e os que menos avultam na república, estes são os comidos.
E não só diz que os comem de qualquer modo, senão que os engolem e os devoram: Qui
devorant. Porque os grandes que têm o mando das cidades e das províncias, não se
contenta a sua fome de comer os pequenos um por um, ou poucos a poucos senão que devoram
e engolem os povos inteiros: Qui devorant plebem meam. E de que modo os devoram e comem?
Ut cibum panis: não como os outros comeres, senão como pão. A diferença que há entre
o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias
de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os
dias, que sempre e continuadamente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o
pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em
tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não
carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem
e devorem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Parece-vos bem isto, peixes?
Representa-se-me que com o movimento das cabeças estais todos dizendo que não, e com
olhardes uns para os outros, vos estais admirando e pasmando de que entre os homens haja
tal injustiça e maldade! Pois isto mesmo é o que vós fazeis. Os maiores comeis os
pequenos; e os muito grandes não só os comem um por um, senão os cardumes inteiros, e
isto continuamente sem diferença de tempos, não só de dia, senão também de noite, às
claras e às escuras, como também fazem os homens. Se cuidais, porventura, que estas
injustiças entre vós se toleram e passam sem castigo, enganais-vos. Assim como Deus as
castiga nos homens, assim também por seu modo as castiga em vós. Os mais velhos, que me
ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado, e quando menos ouviríeis murmurar aos
passageiros nas canoas, e muito mais lamentar aos miseráveis remeiros delas, que os
maiores que cá foram mandados, em vez de governar e aumentar o mesmo Estado, o
destruíram; porque toda a fome que de lá traziam, a fartavam em comer e devorar os
pequenos. Assim foi; mas, se entre vós se acham acaso alguns dos que, seguindo a esteira
dos navios, vão com eles a Portugal e tornam para os mares pátrios, bem ouviriam estes
lá no Tejo que esses mesmos maiores que cá comiam os pequenos, quando lá chegam, acham
outros maiores que os comam também a eles. Este é o estilo da divina justiça tão
antigo e manifesto, que até os Gentios o conheceram e celebraram:
Vos quibus rector maris, atque
terrae
Ius dedit magnum necis, atque
vitae;
Ponite inflatos, tumidosque vultus;
Quidquid a vobis minor extimescit,
Maior hoc vobis dominus minatur.
Notai, peixes, aquela definição
de Deus: Rector maris atque terrae: «Governador do mar e da terra»; para que não
duvideis que o mesmo estilo que Deus guarda com homens na terra, observa também convosco
no mar. Necessário é logo que olheis por vós e que não façais pouco caso da doutrina
que vos deu o grande Doutor da Igreja Santo Ambrósio, quando, falando convosco, disse:
Cave nedum alium insequeris, incidas in validiorem: «Guarde-se o peixe que persegue o
mais fraco para o comer, não se ache na boca do mais forte», que o engula a ele. Nós o
vemos aqui cada dia. Vai o xaréu correndo atrás do bagre, como o cão após a lebre, e
não vê o cego que lhe vem nas costas o tubarão com quatro ordens de dentes, que o
há-de engolir de um bocado. E o que com maior elegância vos disse também Santo
Agostinho: Praedo minoris fit praeda maioris. Mas não bastam, peixes, estes exemplos para
que acabe de se persuadir a vossa gula, que a mesma crueldade que usais com os pequenos
tem já aparelhado o castigo na voracidade dos grandes? Já que assim o experimentais com
tanto dano vosso, importa que de aqui por diante sejais mais repúblicos e zelosos do bem
comum, e que este prevaleça contra o apetite particular de cada um, para que não suceda
que, assim como hoje vemos a muitos de vós tão diminuídos, vos venhais a consumir de
todo. Não vos bastam tantos inimigos de fora e tantos perseguidores tão astutos e
pertinazes, quantos são os pescadores, que nem de dia nem de noite deixam de vos pôr em
cerco e fazer guerra por tantos modos?! Não vedes que contra vós se emalham e entralham
as redes, contra vós se tecem as nassas, contra vós se torcem as linhas, contra vós se
dobram e farpam os anzóis, contra vós as fisgas e os arpões? Não vedes que contra vós
até as canas são lanças e as cortiças armas ofensivas? Não vos basta, pois, que
tenhais tantos e tão armados inimigos de fora, senão que também vós de vossas portas a
dentro o haveis de ser mais cruéis, perseguindo-vos com uma guerra mais que civil e
comendo-vos uns aos outros? Cesse, cesse já, irmãos peixes, e tenha fim algum dia esta
tão perniciosa discórdia; e pois vos chamei e sois irmãos, lembrai-vos das obrigações
deste nome. Não estáveis vós muito quietos, muito pacíficos e muito amigos todos,
grandes e pequenos, quando vos pregava Santo António? Pois continuai assim, e sereis
felizes.
Dir-me-eis (como também dizem os
homens) que não tendes outro modo de vos sustentar. E de que se sustentam entre vós
muitos que não comem os outros? O mar é muito largo, muito fértil, muito abundante, e
só com o que bota às praias pode sustentar grande parte dos que vivem dentro nele.
Comerem-se uns animais aos outros é voracidade e sevícia, e não estatuto da natureza.
Os da terra e do ar, que hoje se comem, no princípio do Mundo não se comiam, sendo assim
conveniente e necessário para que as espécies se multiplicassem. O mesmo foi (ainda mais
claramente) depois do dilúvio, porque, tendo escapado somente dois de cada espécie, mal
se podiam conservar, se se comessem. E finalmente no tempo do mesmo dilúvio, em que todos
viveram juntos dentro na arca, o lobo estava vendo o cordeiro, o gavião a perdiz, o leão
o gamo, e cada um aqueles em que se costuma cevar; e se acaso lá tiveram essa tentação,
todos lhe resistiram e se acomodaram com a ração do paiol comum que Noé lhes repartia.
Pois se os animais dos outros elementos mais cálidos foram capazes desta temperança,
porque o não serão os da água? Enfim, se eles em tantas ocasiões, pelo desejo natural
da própria conservação e aumento, fizeram da necessidade virtude, fazei-o vós também;
ou fazei a virtude sem necessidade e será maior virtude. Outra cousa muito geral, que
não tanto me desedifica, quanto me lastima em muitos de vós é aquela tão notável
ignorância e cegueira que em todas as viagens experimentam os que navegam para estas
partes. Toma um homem do mar um anzol, ata-lhe um pedaço de pano cortado e aberto em duas
ou três pontas, lança-o por um cabo delgado até tocar na água, e em o vendo o peixe,
arremete cego a ele e fica preso e boqueando, até que, assim suspenso no ar, ou lançado
no convés, acaba de morrer. Pode haver maior ignorância e mais rematada cegueira que
esta? Enganados por um retalho de pano, perder a vida? Dir-me-eis que o mesmo fazem os
homens. Não vo-lo nego. Dá um exército batalha contra outro exército, metem-se os
homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e porquê? Porque houve quem os
engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade entre os vícios é o
pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por
isco na ponta desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou
branco, que se chama hábito de Malta, ou verde, que se chama de Avis. ou vermelho, que se
chama de Cristo e de Santiago; e os homens, por chegarem a passar esse retalho de pano ao
peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. E depois que sucede? O mesmo que a vós.
O que engoliu o ferro, ou ali, ou noutra ocasião ficou morto; e os mesmos retalhos de
pano tornaram outra vez ao anzol para pescar outros. Por este exemplo vos concedo, peixes,
que os homens fazem o mesmo que vós, posto que me parece que não foi este o fundamento
da vossa resposta ou escusa, porque cá no Maranhão, ainda que se derrame tanto sangue,
não há exércitos, nem esta ambição de hábitos. Mas nem por isso vos negarei que
também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais
ignoradamente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? Um homem do
mar com uns retalhos de pano. Vem um mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das
lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhes passou a era e não têm gasto; e
que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra: dá-lhes uma sacadela e
dá-lhes outra, com que cada vez lhes sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que querem
parecer, todos esfaimados aos trapos, e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um
ano para outro ano, e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é
encarecimento. Todos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou
no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quem o leva? Não o levam os coches, nem as
liteiras, nem os cavalos, nem os escudeiros, nem os pajens, nem os lacaios, nem as
tapeçarias, nem as pinturas nem as baixelas, nem as jóias; pois em que se vai e despende
toda a vida? No triste farrapo com que saem à rua, e para isso se matam todo o ano. Não
é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está que sim;
nem vós o podeis negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de
pano, quem tem obrigação de se vestir; vós, a quem Deus vestiu do pé até à cabeça,
ou de peles de tão vistosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e doiradas,
vestidos que nunca se rompem, nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as
modas; não é maior ignorância e maior cegueira deixardes-vos enganar ou deixardes-vos
tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano? Vede o vosso Santo António, que pouco o pode
enganar o Mundo com essas vaidades. Sendo moço e nobre, deixou as galas de que aquela
idade tanto se preza, trocou-as por uma loba de sarja e uma correia de cónego regrante; e
depois que se viu assim vestido, parecendo-lhe que ainda era muito custosa aquela
mortalha, trocou a sarja pelo burel e a correia pela corda. Com aquela corda e com aquele
pano, pescou ele muitos, e só estes se não enganaram e foram sisudos.
Descendo ao particular, direi
agora, peixes, o que tenho contra alguns de vós. E começando aqui pela nossa costa: no
mesmo dia em que cheguei a ela, ouvindo os roncadores e vendo o seu tamanho, tanto me
moveram o riso como a ira. É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis
de ser as roncas do mar?! Se, com uma linha de coser e um alfinete torcido, vos pode
pescar um aleijado, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o
espadarte porque não ronca? Porque, ordinariamente, quem tem muita espada, tem pouca
língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer roncadores e que
tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam. S. Pedro, a quem muito
bem conheceram vossos antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou contra um
exército inteiro de soldados romanos; e se Cristo lha não mandara meter na bainha, eu
vos prometo que havia de cortar mais orelhas que a de Malco. Contudo, que lhe sucedeu
naquela mesma noite? Tinha roncado e barbateado Pedro que, se todos fraqueassem, só ele
havia de ser constante até morrer se fosse necessário; e foi tanto pelo contrário, que
só ele fraqueou mais que todos, e bastou a voz de uma mulherzinha para o fazer tremer e
negar. Antes disso já tinha fraqueado na mesma hora em que prometeu tanto de si.
Disse-lhe Cristo no horto que vigiasse, e vindo de aí a pouco a ver se o fazia, achou-o
dormindo com tal descuido, que não só o acordou do sono, senão também do que tinha
blasonado: Sic non potuisti una hora vigilare mecum? Vós, Pedro, sois o valente que
havíeis de morrer por mim, «e não pudestes uma hora vigiar comigo»? Pouco há, tanto
roncar, e agora tanto dormir? Mas assim sucedeu. O muito roncar antes da ocasião, é
sinal de dormir nela. Pois que vos parece, irmãos roncadores? Se isto sucedeu ao maior
pescador, que pode acontecer ao menor peixe? Medi-vos, e logo vereis quão pouco
fundamento tendes de blasonar, nem roncar. Se as baleias roncaram, tinha mais desculpa a
sua arrogância na sua grandeza. Mas ainda nas mesmas baleias não seria essa arrogância
segura. O que é a baleia entre os peixes, era o gigante Golias entre os homens. Se o rio
Jordão e o mar de Tiberíades têm comunicação com o Oceano, como devem ter, pois dele
manam todos, bem deveis de saber que este gigante era a ronca dos Filisteus. Quarenta dias
contínuos esteve armado no campo, desafiando a todos os arraiais de Israel, sem haver
quem se lhe atrevesse; e no cabo, que fim teve toda aquela arrogância? Bastou um
pastorzinho com um cajado e uma funda, para dar com ele em terra. Os arrogantes e soberbos
tomam-se com Deus; e quem se toma com Deus, sempre fica debaixo. Assim que, amigos
roncadores, o verdadeiro conselho é calar e imitar a Santo António. Duas cousas há nos
homens, que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder. Caifás
roncava de saber: Vos nescitis quidquam. Pilatos roncava de poder: Nescis quia potestatem
habeo? E ambos contra Cristo. Mas o fiel servo de Cristo, António, tendo tanto saber,
como já vos disse, e tanto poder, como vós mesmos experimentastes, ninguém houve jamais
que o ouvisse falar em saber ou poder, quanto mais blasonar disso. E porque tanto calou,
por isso deu tamanho brado. Nesta viagem, de que fiz menção, e em todas as que passei a
Linha Equinocial, vi debaixo dela o que muitas vezes tinha visto e notado nos homens, e me
admirou que se houvesse estendido esta ronha e pegado também aos peixes. Pegadores se
chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade, porque sendo pequenos, não só
se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados. que jamais os
desferram. De alguns animais de menos força e indústria se conta que vão seguindo de
longe aos leões na caça, para se sustentarem do que a eles sobeja. O mesmo fazem estes
pegadores, tão seguros ao perto como aqueles ao longe; porque o peixe grande não pode
dobrar a cabeça, nem voltar a boca sobre os que traz às costas, e assim lhes sustenta o
peso e mais a fome. Este modo de vida, mais astuto que generoso, se acaso se passou e
pegou de um elemento a outro, sem dúvida que o aprenderam os peixes do alto, depois que
os nossos Portugueses o navegaram; porque não parte vice-rei ou governador para as
Conquistas, que não vá rodeado de pegadores, os quais se arrimam a eles, para que cá
lhes matem a fome, de que lá não tinham remédio. Os menos ignorantes, desenganados da
experiência, despegam-se e buscam a vida por outra via; mas os que se deixam estar
pegados à mercê e fortuna dos maiores, vem-lhes a suceder no fim o que aos pegadores do
mar. Rodeia a nau o tubarão nas calmarias da Linha com os seus pegadores às costas, tão
cerzidos com a pele, que mais parecem remendos ou manchas naturais, que os hóspedes ou
companheiros. Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro soldados,
arremessa-se furiosamente à presa, engole tudo de um bocado, e fica preso. Corre meia
companha a alá-lo acima, bate fortemente o convés com os últimos arrancos; enfim, morre
o tubarão, e morrem com ele os pegadores. Parece-me que estou ouvindo a S. Mateus, sem
ser apóstolo pescador, descrevendo isto mesmo na terra. Morto Herodes, diz o Evangelista,
apareceu o Anjo a José no Egipto, e disse-lhe que já se podia tornar para a pátria,
porque «eram mortos todos aqueles que queriam tirar a vida ao Menino»: Defuncti sunt
enim qui quaerebant animam Pueri. Os que queriam tirar a vida a Cristo menino, eram
Herodes e todos os seus, toda a sua família, todos os seus aderentes, todos os que
seguiam e pendiam da sua fortuna. Pois é possível que todos estes morressem juntamente
com Herodes?! Sim: porque em morrendo o tubarão, morrem também com ele os pegadores:
Defuncto Herode, defuncti sunt qui quaerebant animam Pueri. Eis aqui, peixinhos ignorantes
e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que escolhestes. Tomai o
exemplo nos homens, pois eles o não tomam em vós, nem seguem, como deveram, o de Santo
António. Deus também tem os seus pegadores. Um destes era David, que dizia: Mihi autem
adhaerere Deo bonum est. Peguem-se outros aos grandes da terra, que «eu só me quero
pegar a Deus». Assim o fez também Santo António; e senão, olhai para o mesmo Santo, e
vede como está pegado com Cristo e Cristo com ele. Verdadeiramente se pode duvidar qual
dos dois é ali o pegador: e parece que é Cristo, porque o menor é sempre o que se pega
ao maior, e o Senhor fez-se tão pequenino, para se pegar a António. Mas António também
se fez menor, para se pegar mais a Deus. Daqui se segue, que todos os que se pegam a Deus,
que é imortal, seguros estão de morrer como os outros pegadores. E tão seguros, que
ainda no caso em que Deus se fez homem e morreu, só morreu para que não morressem todos
os que se pegassem a ele: Si ego me quaeritis, sinite hos abire. «Se me buscais a mim,
deixai ir a estes.» E posto que deste modo só se podem pegar os homens, e vós, meus
peixezinhos, não, ao menos devereis imitar aos outros animais do ar e da terra, que
quando se chegam aos grandes e se amparam do seu poder, não se pegam de tal sorte que
morram juntamente com eles. Lá diz a Escritura daquela famosa árvore, em que era
significado o grande Nabucodonosor, que todas as aves do céu descansavam sobre os seus
ramos e todos os animais da terra se recolhiam à sua sombra, e uns e outros se
sustentavam de seus frutos: mas também diz que, tanto que foi cortada esta árvore, as
aves voaram e os outros animais fugiram. Chegai-vos embora aos grandes; mas não de tal
maneira pegados, que vos mateis por eles, nem morrais com eles. Considerai, pecadores
vivos, como morreram os outros que se pegaram àquele peixe grande, e porquê. O tubarão
morreu porque comeu, e eles morreram pelo que não comeram. Pode haver maior ignorância
que morrer pela fome e boca alheia? Que morra o tubarão porque comeu, matou-o a sua gula;
mas que morra o pegador pelo que não comeu, é a maior desgraça que se pode imaginar!
Não cuidei que também nos peixes havia pecado original. Nós os homens, fomos tão
desgraçados, que outrem comeu e nós o pagamos. Toda a nossa morte teve princípio na
gulodice de Adão e Eva; e que hajamos de morrer pelo que outrem comeu, grande desgraça!
Mas nós lavamo-nos desta desgraça com uma pouca de água, e vós não vos podeis lavar
da vossa ignorância com quanta água tem o mar. Com os voadores tenho também uma
palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes?
Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas.
Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes. Se acaso vos
não conheceis, olhai para as vossas espinhas e para as vossas escamas, e conhecereis que
não sois aves, senão peixes, e ainda entre os peixes não dos melhores. Dir-me-eis,
voador, que vos deu Deus maiores barbatanas que aos outros de vosso tamanho. Pois porque
tivestes maiores barbatanas, por isso haveis de fazer das barbatanas asas?! Mas ainda mal,
porque tantas vezes vos desengana o vosso castigo. Quisestes ser melhor que os outros
peixes, e por isso sois mais mofino que todos. Aos outros peixes, do alto mata-os o anzol
ou a fisga, a vós sem fisga nem anzol, mata-vos a vossa presunção e o vosso capricho.
Vai o navio navegando e o marinheiro dormindo, e o voador toca na vela ou na corda, e cai
palpitando. Aos outros peixes mata-os a fome e engana-os a isca; ao voador mata-o a
vaidade de voar, e a sua isca é o vento. Quanto melhor lhe fora mergulhar por baixo da
quilha e viver, que voar por cima das entenas e cair morto! Grande ambição é que, sendo
o mar tão imenso, lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro
elemento mais largo. Mas vedes, peixes, o castigo da ambição. O voador fê-lo Deus
peixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus que tenha os perigos de ave e mais os de
peixe. Todas as velas para ele são redes, como peixe, e todas as cordas, laços, como
ave. Vê, voador, como correu pela posta o teu castigo. Pouco há nadavas vivo no mar com
as barbatanas, e agora jazes em um convés amortalhado nas asas. Não contente com ser
peixe, quiseste ser ave, e já não és ave nem peixe; nem voar poderás já, nem nadar. A
natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo.
Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. Se o voador não quisera passar do segundo
ao terceiro, não viera a parar no quarto. Bem seguro estava ele do fogo, quando nadava na
água, mas porque quis ser borboleta das ondas, vieram-se-lhe a queimar as asas. À vista
deste exemplo, peixes, tomai todos na memória esta sentença: Quem quer mais do que lhe
convém, perde o que quer e o que tem. Quem pode nadar e quer voar, tempo virá em que
não voe nem nade. Ouvi o caso de um voador da terra: Simão Mago, a quem a arte mágica,
na qual era famosíssimo, deu o sobrenome, fingindo-se que ele era o verdadeiro filho de
Deus, sinalou o dia em que aos olhos de toda Roma havia de subir ao Céu, e com efeito
começou a voar mui alto; porém a oração de S. Pedro, que se achava presente, voou mais
depressa que ele, e caindo lá de cima o mago, não quis Deus que morresse logo, senão
que aos olhos também de todos quebrasse, como quebrou, os pés. Não quero que repareis
no castigo, se não no género dele Que caia Simão, está muito bem caído; que morra,
também estaria muito bem morto, que o seu atrevimento e a sua arte diabólica o merecia.
Mas que de uma queda tão alta não rebente, nem quebre a cabeça ou os braços, se não
os pés?! Sim, diz S. Máximo, porque quem tem pés para andar e quer asas para voar,
justo é que perca as asas e mais os pés. Elegantemente o Santo Padre: Ut qui paulo ante
volare tentaverat, subito ambulare non posset; et qui pennas assumpserat, plantas
amitteret. Se Simão tem pés e quer asas, pode andar e quer voar; pois quebrem-se-lhe as
asas para que não voe, e também os pés, para que não ande. Eis aqui, voadores do mar,
o que sucede aos da terra, para que cada um se contente com o seu elemento. Se o mar
tomara exemplo nos rios, depois que Ícaro se afogou no Danúbio não haveria tantos
Ícaros no Oceano. Oh alma de António, que só vós tivestes asas e voastes sem perigo,
porque soubestes voar para baixo e não para cima! Já S. João viu no Apocalipse aquela
mulher cujo ornato gastou todas as luzes ao Firmamento, e diz que «lhe foram dadas duas
grandes asas de águia»: Datae sunt mulieri alae duae aquilae magnae. E para quê? Ut
volaret in desertum: «Para voar ao deserto.» Notável cousa, que não debalde lhe chamou
o mesmo Profeta grande maravilha. Esta mulher estava no Céu: Signum magnum apparauit in
caelo, mulier amicta sole. Pois se a mulher estava no Céu e o deserto na terra, como lhe
dão asas para voar ao deserto? Porque há asas para subir e asas para descer. As asas
para subir são muito perigosas, as asas para descer muito seguras; e tais foram as de
Santo António. Deram-se à alma de Santo António duas asas de águia, que foi aquela
duplicada sabedoria natural e sobrenatural tão sublime, como sabemos. E ele que fez? Não
estendeu as asas para subir, encolheu-as para descer; e tão encolhidas que, sendo a Arca
do Testamento, era reputado, como já vos disse, por leigo e sem ciência. Voadores do mar
(não falo com os da terra), imitai o vosso santo pregador. Se vos parece que as vossas
barbatanas vos podem servir de asas, não as estendais para subir, porque vos não suceda
encontrar com alguma vela ou algum costado; encolhei-as para descer, ide-vos meter no
fundo em alguma cova; e se aí estiverdes mais escondidos, estareis mais seguros. Mas já
que estamos nas covas do mar, antes que saiamos delas, temos lá o irmão polvo, contra o
qual têm suas queixas, e grandes, não menos que S. Basílio e Santo Ambrósio. O polvo
com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos,
parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma
mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa,
testemunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja latina e grega, que o dito
polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do polvo primeiramente em se
vestir ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que
no camaleão são gala, no polvo são malícia; as figuras, que em Proteu são fábula, no
polvo são verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia,
faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo: e se está em alguma pedra, como mais
ordinariamente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E daqui que sucede? Sucede que
outro peixe, inocente da traição, vai passando desacautelado, e o salteador, que está
de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo
prisioneiro. Fizera mais Judas? Não fizera mais, porque não fez tanto. Judas abraçou a
Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os
braços fez o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que
foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às escuras, mas executou-a
muito às claras. O polvo, escurecendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira
traição e roubo que faz, é a luz, para que não distinga as cores. Vê, peixe aleivoso
e vil, qual é a tua maldade, pois Judas em tua comparação já é menos traidor! Oh que
excesso tão afrontoso e tão indigno de um elemento tão puro, tão claro e tão
cristalino como o da água, espelho natural não só da terra, senão do mesmo céu! Lá
disse o Profeta por encarecimento, que «nas nuvens do ar até a água é escura»:
Tenebrosa aqua in nubibus aeris. E disse nomeadamente nas nuvens do ar, para atribuir a
escuridade ao outro elemento, e não à água; a qual em seu próprio elemento é sempre
clara, diáfana e transparente, em que nada se pode ocultar, encobrir nem dissimular. E
que neste mesmo elemento se crie, se conserve e se exercite com tanto dano do bem público
um monstro tão dissimulado, tão fingido, tão astuto, tão enganoso e tão
conhecidamente traidor! Vejo, peixes, que pelo conhecimento que tendes das terras em que
batem os vossas mares, me estais respondendo e convindo, que também nelas há falsidades,
enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais perniciosas traições. E
sobre o mesmo sujeito que defendeis, também podereis aplicar aos semelhantes outra
propriedade muito própria; mas pois vós a calais, eu também a calo. Com grande
confusão, porém, vos confesso tudo, e muito mais do que dizeis, pois não o posso negar.
Mas ponde os olhos em António, vosso pregador, e vereis nele o mais puro exemplar da
candura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou engano. E sabei
também que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser português,
não era necessário ser santo. Tenho acabado, irmãos peixes, os vossos louvores e
repreensões, e satisfeito, como vos prometi, às duas obrigações do sal, posto que do
mar, e não da terra: Vos estis sal terrae. Só resta fazer-vos uma advertência muito
necessária, para os que viveis nestes mares. Como eles são tão esparcelados e cheios de
baixios, bem sabeis que se perdem e dão à costa muitos navios, com que se enriquece o
mar e a terra se empobrece. Importa, pois, que advirtais, que nesta mesma riqueza tendes
um grande perigo, porque todos os que se aproveitam dos bens dos naufragantes, ficam
excomungados e malditos. Esta pena de excomunhão, que é gravíssima, não se pôs a vós
senão aos homens, mas tem mostrado Deus por muitas vezes, que quando os animais cometem
materialmente o que é proibido por esta lei, também eles incorrem, por seu modo, nas
penas dela, e no mesmo ponto começam a definhar, até que acabam miseravelmente. Mandou
Cristo a S. Pedro que fosse pescar, e que na boca do primeiro peixe que tomasse, acharia
uma moeda, com que pagar certo tributo. Se Pedro havia de tomar mais peixe que este,
suposto que ele era o primeiro, do preço dele e dos outros podia fazer o dinheiro com que
pagar aquele tributo, que era de uma só moeda de prata, e de pouco peso. Com que
mistério manda logo o Senhor que se tire da boca deste peixe e que seja ele o que morra
primeiro que os demais? Ora estai atentos. Os peixes não batem moeda no fundo do mar, nem
têm contratos com os homens, donde lhes possa vir dinheiro; logo, a moeda que este peixe
tinha engolido, era de algum navio que fizera naufrágio naqueles mares. E quis mostrar o
Senhor que as penas que S. Pedro ou seus sucessores fulminam contra os homens que tomam os
bens dos naufragantes, também os peixes por seu modo as incorrem morrendo primeiro que os
outros, e com o mesmo dinheiro que engoliram atravessado na garganta. Oh que boa doutrina
era esta para a terra, se eu não pregara para o mar! Para os homens não há mais
miserável morte, que morrer com o alheio atravessado na garganta; porque é pecado de que
o mesmo S. Pedro e o mesmo Sumo Pontífice não pode absolver. E posto que os homens
incorrem a morte eterna, de que não são capazes os peixes, eles contudo apressam a sua
temporal, como neste caso, se materialmente, como tenho dito, se não abstêm dos bens dos
naufragantes.
Com esta última advertência vos
despido, ou me despido de vós, meus peixes. E para que vades consolados do sermão, que
não sei quando ouvireis outro, quero-vos aliviar de uma desconsolação mui antiga, com
que todos ficastes desde o tempo em que se publicou o Levítico. Na lei eclesiástica ou
ritual do Levítico, escolheu Deus certos animais que lhe haviam de ser sacrificados; mas
todos eles ou animais terrestres ou aves, ficando os peixes totalmente excluídos dos
sacrifícios. E quem duvida que esta exclusão tão universal era digna de grande
desconsolação e sentimento para todos os habitadores de um elemento tão nobre, que
mereceu dar a matéria ao primeiro sacramento? O motivo principal de serem excluídos os
peixes, foi porque os outros animais podiam ir vivos ao sacrifício, e os peixes
geralmente não, senão mortos; e cousa morta não quer Deus que se lhe ofereça, nem
chegue aos seus altares. Também este ponto era muito importante e necessário aos homens,
se eu lhes pregara a eles. Oh quantas almas chegam àquele altar mortas, porque chegam e
não têm horror de chegar, estando em pecado mortal! Peixes, dai muitas graças a Deus de
vos livrar deste perigo, porque melhor é não chegar ao sacrifício, que chegar morto. Os
outros animais ofereçam a Deus o ser sacrificados; vós oferecei-lhe o não chegar ao
sacrifício; os outros sacrifiquem a Deus o sangue e a vida; vós sacrificai-lhe o
respeito e a reverência. Ah peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural
irregularidade! Quanto melhor me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo
indignamente! Em tudo o que vos excedo, peixes, vos reconheço muitas vantagens. A vossa
bruteza é melhor que a minha razão e o vosso instinto melhor que o meu alvedrio. Eu
falo, mas vós não ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-me, mas vós não ofendeis
a Deus com a memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu
quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade. Vós fostes criados por Deus, para
servir ao homem, e conseguis o fim para que fostes criados; a mim criou-me para o servir a
ele, e eu não consigo o fim para que me criou. Vós não haveis de ver a Deus, e podereis
aparecer diante dele muito confiadamente, porque o não ofendestes; eu espero que o hei-de
ver; mas com que rosto hei-de aparecer diante do seu divino acatamento, se não cesso de o
ofender? Ah que quase estou por dizer que me fora melhor ser como vós, pois de um homem
que tinha as mesmas obrigações, disse a Suma Verdade, que «melhor lhe fora não nascer
homem»: Si natus non fuisset homo ille. E pois os que nascemos homens, respondemos tão
mal às obrigações de nosso nascimento, contentai-vos, peixes, e dai muitas graças a
Deus pelo vosso. Benedicite, cete et omnia quae moventur in aquis, Domino: «Louvai,
peixes, a Deus, os grandes e os pequenos», e repartidos em dois coros tão inumeráveis,
louvai-o todos uniformemente. Louvai a Deus, porque vos criou em tanto número. Louvai a
Deus, que vos distinguiu em tantas espécies; louvai a Deus, que vos vestiu de tanta
variedade e formosura; louvai a Deus, que vos habilitou de todos os instrumentos
necessários à vida; louvai a Deus, que vos deu um elemento tão largo e tão puro;
louvai a Deus, que, vindo a este Mundo, viveu entre vós, e chamou para si aqueles que
convosco e de vós viviam; louvai a Deus, que vos sustenta; louvai a Deus, que vos
conserva; louvai a Deus, que vos multiplica; louvai a Deus, enfim, servindo e sustentando
ao homem, que é o fim para que vos criou; e assim como no princípio vos deu sua
bênção, vo-la dê também agora. Amen. Como não sois capazes de Glória, nem de
Graça, não acaba o vosso Sermão em Graça e Glória.

Trabalho e pesquisa de Carlos Leite
Ribeiro - Marinha Grande - Portugal
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