SEBO LITERÁRIO
Benedita Azevedo
CONTOS
O PRÍNCIPE E A PROFESSORA
- Sabe o que a Diana me perguntou?
- Não, o quê?
- Se eu tinha ficado mais riquinho com o que roubei da minha
irmã, vendendo o hotel.
- E o que você respondeu?
- O que você acha que eu deveria responder para uma criança
de dez anos?
- Ela só tem dez anos, mas sabe te hostilizar. Devem ser
estes os comentários dos teus parentes.
- Eles não têm o que comentar. Ainda que eu tivesse vendido,
pois era tudo do meu pai e eu era filho único. As pessoas que me
hostilizam, como você diz, foram beneficiadas pelo meu pai. Até hoje
vivem do que ele construiu. Só que a ganância não as deixa ver isso.
E se um dia pudessem, elas tirariam tudo dos herdeiros diretos do
meu pai, que na verdade, sou eu e os meus filhos. Ou você acha que
eles gostam de mim? Os cuidados e álbuns onde estão fotos do meu
pai, para mim, é tudo uma grande hipocrisia. Pois dele só queriam o
prestígio. A prova disso é a maneira como você me encontrou. Todos
sabiam que eu estava numa situação muito difícil, mas ninguém se
preocupou de me ver andando na rua todo roto. Você não era parente
nem me conhecia e se preocupou comigo. As pessoas que tiveram todo o
apoio do meu pai, que viveram comigo desde que nasci e sabiam como
fui criado, não tiveram a sensibilidade de perceber que eu precisava
de apoio. Mesmo que fosse um pouco de atenção, uma palavra de
carinho.
- Será que estavam conscientes da tua real situação?
- Sabiam. Para completar a minha desgraça, minha irmã entra
lá em casa com uma ordem judicial para pegar uns móveis que eram
dela. Eu nunca disse que não os entregaria. Foi um golpe mortal em
nosso relacionamento.
- Ela precisava dos móveis para quê, se você já lhe doara o
sítio com a casa toda mobiliada? De porteira fechada, não é assim
que dizem?
- Ela não precisava deles, vendeu-os a preço de banana
podre.
- Não acredito que alguém seja tão insensível a tal ponto!
A não ser que desconhecesse a situação grave pela qual você passava.
- Conhecia sim. Ela foi à minha casa perguntar para minha
ex-mulher por que eu andava tão maltratado na rua e soube que era
porque não tínhamos dinheiro para comprar roupas.
- Mas isso aconteceu antes dela pegar os móveis?
- Ela perguntou se eu queria ficar com os móveis pelo preço
que foram avaliados, mas eu não tinha como. Estava atravessando a
pior fase da minha vida. Mas, ela não queria saber de nada. É por
isso, e por outras coisas desse tipo que aconteceram durante a
doença da minha mãe, que minha ex-mulher não perdoa a minha irmã.
- Mas, você também não tinha, ao seu lado, uma pessoa que lhe
apoiasse como precisava. Ela estava por fora de tudo! Não tinha
nenhuma condição de ser a âncora de que você precisava após a morte
de sua mãe.
- Coitada! Ela também não estava preparada para enfrentar os
dissabores que nos atingiram. Quando a conheci, tinha as pernas e o
bumbum muito bonitos.
- Só por curiosidade: os homens quando escolhem uma
companheira, só olham a parte física? Não se preocupam com mais
nada?
- Em nenhum momento pensei que viesse a precisar de uma mulher
para me orientar na vida. Mesmo porque, na época, acreditava que o
advogado, meu compadre, a pessoa em quem, segundo meu pai, eu
poderia confiar se um dia precisasse, cuidaria dos meus negócios
honestamente.
- Essa é uma questão séria em sua vida. Mais uma pessoa usando
você e se aproveitando da amizade que seu pai lhe dedicou para tirar
proveito da situação. Apoiando-se no fato de você ser uma pessoa boa
e sem malícia que acredita em todo mundo.
- É, parece que todos que se aproximaram de mim, depois da
morte do meu pai, só queriam tirar vantagens.
- Quem, por exemplo?
- Em primeiro lugar, a minha irmã que ficou contra mim,
querendo participar da partilha dos bens do meu pai. Depois o meu
compadre, que aproveitando a atitude dela, vendo que eu estava
sozinho no mundo, manipulou-me à vontade e acabou subtraindo quase
tudo que ele administrava. Dentro da mais perfeita ordem, tudo
documentado como se eu tivesse vendido. Mas isso ele vai pagar no
fogo do inferno. Por fim, a Catarina que me passou uma rasteira e
obrigou-me a passar para o nome dela uma fazenda que comprei em
Minas. Soube depois que vendeu a propriedade e comprou um
apartamento, na Lagoa, para o filho.
- E a Manuela, qual o significado dela em sua vida?
- É a mãe dos meus filhos. Uma pobre mulher que não tem culpa
de nada. Apenas, talvez, tenha sonhado com uma vida milionária e sem
querer, e por não ter nenhuma condição de ajudar, pois não tem
nenhuma habilitação, a não ser a de dona de casa de classe média
baixa, ajudou a jogar-me no fundo do poço.
- E você não trabalhava?
- Quando meu pai era vivo eu trabalhei na Companhia de
Álcalis, no Banco Boa Vista e, por fim, trabalhei com ele. Quando o
perdi, fiquei numa boa situação. Eu vivia dos rendimentos dos
aluguéis, das ações e da firma administrada pelo meu compadre. Hoje
vejo que se tivesse assumido os negócios quando meu pai morreu,
poderia estar muito bem. Mas acreditei muito e perdi quase tudo. O
resto você já sabe. Como já lhe falei, quando nos encontramos eu
estava atravessando a pior fase da minha vida. Sofri as piores
humilhações que um homem pode passar. Trabalhei nas condições mais
subalternas possíveis. Vendi quadros, carnês e quando você me
conheceu eu estava trabalhando de segurança numa esquina onde morava
o presidente do Banco Boa Vista, onde trabalhei como advogado e que
foi fundado pelo meu tio avô. Tinha de esconder-me cada vez que um
conhecido passava.
- Você não acha que faltou empenho da sua parte para evitar
toda essa situação?
- Acho que não fui preparado para enfrentar a vida. Fui
educado como um príncipe. Os obstáculos eram tirados do meu caminho
pelo meu pai. Depois da morte dele, fiquei perdido sem saber o que
fazer. Fui jogado aos leões e não sabia me defender. Como um animal
domesticado, fui jogado na jaula, no meio de feras selvagens. Se eu
já te conhecesse, as coisas seriam diferentes.
- Talvez não. Naquela época eu ainda não era como hoje. Era
também um animal domesticado, no meio de algumas feras. Só que hoje
as feras viraram cordeiros. Aprendi a conquistar o meu espaço à
custa de muita luta. Provavelmente, você nem ia ligar para mim. Uma
simples professora.
- É isso seria possível. Mas, graças a Deus eu te encontrei e a
minha vida tomou uma nova direção. És o meu Anjo da Guarda.
Praia do Anil, outubro de 2004