O
VÉRTICE LUMINOSO DA PIRÂMIDE
(Romance)
por
Carmo
Vasconcelos
II PARTE
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Capítulo III
Desta vez, abstenho-me de quaisquer considerações sobre o que
acabais de ler. Na verdade, e como mulher, confesso que não encontro
palavras para exprimir o que sinto. Prefiro que os leitores se
deixem tomar pelas suas próprias emoções.
Continuemos, pois, a escutar Carmen:
– Toda a família aguardava ansiosamente o nosso regresso. Tínhamos
acordado ficar a viver em casa dos meus sogros enquanto não
dispuséssemos de meios para montar casa própria. Os pais de Jorge –
Simão e Rosalina – eram naturais duma aldeia beirã onde ainda
possuíam casa e terras. Tinham emigrado para Lisboa logo após o
casamento e Jorge, filho único, já tinha nascido lisboeta.
Curiosamente, o meu sogro não tinha a simplicidade nem a rudeza das
gentes beirãs. Somente a linguagem – um ou outro termo vulgar na sua
terra – feria, às vezes, os meus ouvidos. Fora isso, era um homem de
aspecto citadino e porte elegante, que não descurava a aparência.
Mandava fazer os fatos por medida ao alfaiate, usava sempre chapéu a
condizer e frequentava assiduamente o barbeiro, onde, além do
cabelo, tratava das unhas. Mais tarde, descobri que até pintava os
cabelos brancos que surgiam em redor da sua calva. Nascido num tempo
e num local onde dificilmente se tinha acesso à cultura, posto a
trabalhar no campo ainda menino, singrara na vida à custa do
trabalho que viera encontrar na cidade grande. Depois de ter sido
alguns anos auxiliar de enfermagem num hospital de Lisboa, tinha-se
reformado cedo, após o que, adquiriu dois “Mercedes”, táxis que pôs
a circular na praça e que também conduzia. Nessa vida, conhecera de
perto muita gente importante. Não se podendo dizer que era culto,
era um homem que lia diariamente o jornal e que se mantinha
informado, sobretudo acerca da política vigente, da qual era um
discordante acérrimo. No trato, em geral, era afável e comunicativo,
gostando de ver a casa cheia, a mesa farta. Comigo, especialmente,
foi sempre muito afectuoso. Lamento que já não exista, pois gostava
muito dele!
Na minha sogra encontrei uma personalidade muito diferente. Era uma
mulher árida, brusca e seca, daquelas que desviam a cara quando se
pretende beijá-la. Falava aos repelões, e gestos de ternura não
sabia ter, nem aceitar. Nem mesmo o marido e o filho – a quem amava,
sem dúvida – eram alvo das suas demonstrações de afecto. No entanto,
era uma escrava daqueles dois homens! Vivia para lhes dar as
refeições a horas, manter as suas roupas em ordem. Raramente
participava das conversas, a não ser para falar de assuntos
familiares ou relacionados com as “terras”. Como mulher, que em nova
não tinha sido feia, deixara-se engordar e tinha desleixado a sua
aparência. As suas saídas de casa limitavam-se às idas ao mercado, e
as mulheres que se alindavam e frequentavam os cafés e os cinemas,
eram, na sua boca, todas “putas”. Circulava pela casa de robe e
pantufas e nestes trajes se sentava a coser, à tardinha, enquanto
esperava a família para o jantar. Uma vez por ano, o marido levava-a
ao Teatro de Revista. Então, punha o casaco de peles que ele lhe
tinha comprado para o efeito e, nessa noite, talvez o deixasse
“servir-se” dela... Minha sogra era o que se costuma chamar, um
“bicho de mato”; não gostava de convívios para além da família mais
chegada, e o filho, desde criança, nunca teve autorização para levar
lá a casa qualquer amigo... Não me surpreendeu, portanto, quando vim
a saber, não por ela nem por meu marido, que sempre esconderam de
mim esse facto, que o meu sogro tinha, desde há muito, uma
amante.
Esta era, pois, a minha nova família. Mas não a única com quem eu
iria conviver. A casa, enorme, doze divisões nas Avenidas Novas,
tinha sido alugada a meias por meu sogro e por um irmão mais velho,
enfermeiro, tido quase como médico, que nela habitava com a mulher e
um filho jovem, ainda solteiro. Dois filhos mais velhos, casados,
habitavam já em casas próprias.
Jorge e os primos tinham crescido juntos. Para meu marido, filho
único, os primos eram como irmãos. Para eles, que já eram três
irmãos entre si, suponho que Jorge era “apenas” o primo. E todos
sabemos como algumas crianças podem, às vezes, sem querer, ser
cruéis; nas suas brincadeiras, nas suas preferências, no seu
desprezo...
– Desculpe interrompê-la, Carmen, mas a que propósito diz isso sobre
as crianças?
– Sobre as crianças? Não propriamente sobre todas! Estou a falar de
um contexto familiar sobre o qual fui obrigada a cogitar.
– Porquê? Pode dizer-me?
– Talvez porque à força de tentar compreender certas atitudes
aberrantes de meu marido, dei comigo a dissecar todas as
justificativas ao meu alcance.
– Continuo sem compreender...
– É que estamos a andar com o carro à frente dos bois. Ainda não lhe
disse – pensava fazê-lo mais adiante – que meu marido alargou o seu
ciúme doentio aos meus próprios irmãos, a ponto de desconfiar de
qualquer gesto fraternal entre nós.
– Ciúmes de seus irmãos!?
– Ciúmes tais que o levavam a sugerir actos incestuosos...
– Mas isso não é normal...
– Daí, as minhas cogitações. Seria ciúme de mim ou deles?...
Dever-se-ia essa atitude ao facto de ele mesmo nunca ter tido
irmãos? De nunca se ter sentido tratado como tal? De se ter sentido,
de alguma forma, discriminado naquela irmandade que o rodeava?...
– Começo a compreender. No entanto...
– No entanto, minha amiga, tal como eu, nunca o saberá. Restar-nos-á
sempre a dúvida... O certo é que eu, com a mania que tenho de tudo
compreender e justificar, pensava: “Deve haver uma razão, deve haver
uma razão...”, e assim, ia desculpando essa e outras atitudes de
Jorge que, por não fazerem sentido para mim, por pouco não me
deixaram louca.
– Posso imaginar!
– Entre o imaginar e o sentir, minha amiga, corre uma estrada
imensa... Mas, voltemos ao ponto onde nos perdemos:
– Naquela família fui recebida de braços abertos, e eu tomei-a de
igual modo. Por parte da minha sogra, eu não sentia calor humano;
aparentemente, prestava-me apenas servidão e respeito. Mas, a seu
modo, creio que se foi afeiçoando a mim.
Jorge começou então a dar mostras de me considerar uma propriedade
sua, uma propriedade cercada, a que só ele, como rei e senhor, podia
ter acesso. O simples facto de eu querer visitar a minha mãe e o meu
padrasto – que tinha sido o meu verdadeiro pai – e o meu irmão que
eu vira nascer, era já motivo de discórdia. Os seus olhos eram como
sentinelas que vigiavam todos os meus passos, os meus mais
insignificantes gestos. Bruscamente, largou o emprego, só para ter a
possibilidade de me ir esperar ao serviço diariamente. Os estudos,
que fazia em horário pós-laboral, foram igualmente abandonados.
Tanta insegurança e insensatez preocupavam-me. A seus pais também. A
eles, que desejavam – e podiam – dar um curso superior ao seu único
filho!
As discussões começaram a surgir entre nós, em surdina, só ouvidas
pelas quatro paredes do nosso quarto.
– Agora tudo mudou, és uma mulher casada! A tua família é esta!
– Mas, a minha mãe?
– Nunca gostei dela, sempre quis mandar, agora mando eu!
– O meu padrinho?
– Um homem qualquer que não é teu pai!
– E o meu irmão Eduardo?
– Irmão? Qual irmão? Se não é filho do mesmo pai...
– Mas... é a minha família!
– Uma família de doidos é o que são todos!...
Perante discussões tão insólitas, toda a minha dialéctica caía por
terra, por inútil. O espanto calava-me as palavras...
Depois, como se nada houvesse a separar-nos, meu marido fazia do
leito conjugal um prado verde onde vestia a pele do mais manso dos
cordeiros...
Sem tempo para digerir todas as estranhas atitudes com que me
defrontava, passados três meses engravidei.
Por esta altura, adivinhando o cansaço de Carmen, e porque a minha
mão também reclamava uma pausa, sugeri:
– E se pedíssemos mais um café?
– Boa ideia! – Anuiu, Carmen. – Creio que ambas estamos a
precisar...
Enquanto tomávamos o nosso café, atrevi-me a perguntar:
– E quando se viu grávida? Não teve qualquer hesitação em levar por
diante essa gravidez?
– Boa pergunta, minha amiga! Qualquer mulher nas minhas
circunstâncias teria hesitado, sim! Mas eu desejei desde logo aquele
filho. No meu íntimo houve sempre uma grande ternura pelas crianças
e uma forte repulsa pelo aborto. Não que critique a mulher que, por
qualquer contingência da sua vida, seja levada a fazê-lo! Mas vejo-o
como um acto que, pessoalmente, repudio.
– Porquê essa repulsa, Carmen, quando assistimos hoje à luta de
milhares de mulheres em todo o mundo que pugnam pelo direito ao
aborto? Pelo que sei de si, penso que não seja uma questão
religiosa...
– E pensa bem, minha amiga! Não é uma questão religiosa. Se fosse um
sentimento recente, poderia explicá-lo, talvez, à luz do misticismo,
do sentido da Reencarnação, do propósito que cada alma traz ao
encetar uma nova vida, do ciclo que interrompemos e da dívida
cármica que contraímos ao praticar voluntariamente um aborto. Mas, o
meu sentimento é mais antigo, vem de longe...
– Como assim, Carmen?
– Um dia, durante uma daquelas discussões juvenis com a minha mãe,
durante as quais eu sempre me mostrava insubmissa, ela exclamou,
fora de si: “Bem que fiz tudo para que não nascesses, mas já aí
foste teimosa!” – Quem sabe, portanto, quando foi insuflada em mim
esta repulsa? Talvez no momento em que ouvi aquela confissão… Talvez
muito mais cedo, pressentida no ventre materno...
– Quem sabe? – Deixei escapar, vagamente, enquanto recomeçava a
escrever, na ânsia de não perder palavra do que ouvia.
– Mas, retomemos o fio à meada – disse Carmen. Onde tínhamos
ficado?
Como frequentemente acontecia, as palavras tomavam as rédeas e
levavam-nos para onde queriam, deixando-nos perdidas. Tive de reler
as últimas folhas.
– Na sua gravidez – respondi.
– Continuemos então!
– Verdade seja dita, meu marido também quis aquele filho e os meus
sogros, mais o meu sogro, mostraram-se contentes com a perspectiva
de serem avós e apoiaram-me no que precisei. Só não podiam ajudar-me
naquilo que desconheciam: a estranha angústia que me consumia e que
eu não tornava visível aos olhos fosse de quem fosse. Só aquele
filho, que eu comecei a amar acima de tudo e de todos, era
testemunha invisível das minhas mágoas.
Mais uma das minhas ignorâncias de então, era o quanto a mãe pode
intervir na educação de um filho, antes do seu nascimento; de como
pode estruturar a personalidade e o carácter da criança ainda em
gestação. Da mesma maneira que planeja preparar o lar adequadamente
para a chegada do filho, da mesma maneira que o médico prepara seu
corpo para que seja o habitat são da criança que vai nascer, deve a
mãe empreender uma purificação geral da mente, ou seja, preparar o
mundo mental em que vai viver durante os meses da gravidez. Houve
tempos em que a ideia de que a mãe podia ter alguma influência sobre
a criança que ia nascer era ridicularizada e considerada uma
superstição. Felizmente, hoje já se fizeram progressos ao tomarmos
consciência de que os deveres e as funções da mãe em relação ao
futuro filho, são mais do que simplesmente biológicos e
fisiológicos. Suas obrigações estendem-se também ao campo espiritual
e ao desenvolvimento cultural, como: ouvir boa música, praticar
leituras educativas e sadias, evitar toda a espécie de imagens
violentas, chocantes ou agressivas, através do cinema, da televisão
ou de outros meios de comunicação social; manter um ambiente
harmonioso ao seu redor, reforçar-se de atitudes tolerantes e de
amor ao próximo e, sobretudo, manter um estado mental de alegria,
isento de ódios, invejas e sentimentos de vingança.”
Ouvindo Carmen com toda a minha atenção, não pude deixar de
recalcitrar:
– Tudo isso, seria o óptimo! Todavia, é sabido que há muitos
factores que influenciam a nossa vida e nos impedem de agir tão
adequadamente.
– É certo, minha amiga – respondeu Carmen – no entanto, se todas as
futuras mães soubessem isso e tentassem fazer, senão tudo, pelo
menos o possível, crianças mais saudáveis viriam ao mundo, melhores
adultos de amanhã. Se eu própria o soubesse naquele tempo, teria
varrido a minha angústia, engolido as minhas lágrimas!...
– Por que diz isso, Carmen?
– Porque ainda hoje me interrogo se não teria sido já aí, durante a
gestação, que começou a germinar a neurose que ao fim de quinze anos
explodiu do meu filho Pedro.
– Por Deus! Não me diga que sente culpada?
– Não! Naquele tempo eu não sabia, sequer, como evitar o meu próprio
sofrimento...
Olhei o relógio, não que tivesse pressa, mas porque sentia um tom
doloroso nas palavras da minha narradora.
– Quer continuar, Carmen? Ou ficamos por aqui?
– Só mais um pouco, para encerrarmos este capítulo.
– Como queira!
– Os meses foram passando. Meu filho fazia-se já sentir dentro de
mim e era como se me segredasse: “Não chores, mamã! Eu estou aqui!”
E essa vozinha débil que só eu ouvia, dava-me alento e minorava a
minha dor.
Entretanto, Jorge tinha arranjado um novo emprego; eu continuava
seguindo o meu percurso de funcionária pública: galgando concursos,
mudando de Ministério para Ministério, subindo de “letra”, o que
equivalia a subir de vencimento.
Logo comecei a fazer projectos:
– Jorge, temos de arranjar casa.
– Para quê? Estamos aqui tão bem.
– O nosso filho vai precisar de espaço, de um quarto só para ele.
Além disso, será a nossa casa...
– Porém, meu marido, receoso e inseguro, não dava um passo. Eu, mais
audaz e confiante no futuro, tentava sempre ir mais além. Valeu-me a
habitual compreensão do meu sogro. Com a sua ajuda arrendámos e
mobilámos uma casa acabada de construir, na linha de Sintra. Era uma
casa vulgar; três assoalhadas num prédio de apartamentos. Contudo,
num sítio aprazível onde ainda existiam árvores ao redor. E porque
seria a primeira casa verdadeiramente nossa, pareceu-me um pequeno
palácio. A sua manutenção representava para nós o sacrifício de
alguns extras. Mas eu trocava de bom grado umas idas ao cinema e um
ou outro jantar fora, por um lar, pela nossa independência e
intimidade, pelo conforto do filho que esperávamos.
– E, tal como desejei, antes de quebrado o ovo já o ninho estava
preparado!
– Podemos, então, encerrar este capítulo, Carmen?
– Sim, sim, minha amiga. Chega por hoje!
E, com um abraço, nos despedimos.
Livro de Visitas
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