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PEQUENA
CRÔNICA SOBRE O CARNAVAL
Está bom, já que amanheceste enxergando
o mundo estreladinho, lá vou eu te falar
coisas de um passado remoto. Só que
remotas são essas músicas, e o passado
só foi ontem. Fazia tempo que eu
acompanhava esse bloco "Paroano sai
Milhó" somente pelos CD´s, mas ontem,
louco, fui um pouco lá in loco. Delícia
de bloco, remando rio~acima_rio~abaixo
pelas ruas do Pelô. Gente alegre,
ordeira, os coroas como eu, até
desafiando artroses mil, mas curtindo a
alegria de dançar na rua e ouvir bela
harmonia recheada de poesia. Um desfilar
das fantasias, das que se vê e as que
estão dentro do peito. Gente bonita,
meus amigos, em todos os sentidos, a
demonstrar que prá ser alegre não
precisa muito barulho, nem multidão,
empurra-empurra, gente burra, nem de som
tão alto que incomoda ao ser ouvido até
na outra quadra. Foram horas muito
gostosas e de lá trouxe essas músicas
que aqui eu compartilho. Então desata os
espartilhos e veste agora a camiseta.
Enquanto escrevo aqui, ali na televisão
fala um homem, e não tem nada a ver. A
alegria é do povo. Se o Governo cuidou
da segurança, não fez mais que a
obrigação. Se os empresários estão
satisfeitos com a taxa de ocupação nos
hotéis, isso prá mim também agora não
diz nada. Se houve ou não patrocínio da
empresa privada, se embaixadores
disseram alguma coisa a respeito
incensando o carnaval baiano, se o
carnaval dá muitos postos temporários de
emprego, se a crise bate forte ou bate
fraco, tudo isso é pertinente à
atualidade, mas não ao aqui e agora. Eu
preferiria que ali na TV só estivesse a
desfilar o canto da muvuca, mais que o
canto da sereia, e a corda e a pipoca.
Mesmo porque tem hora para tudo: tem
hora de planejar, de decidir, de
executar e de cumprir. Tem a hora da
"liberdade abre as asas sobre nós"; tem
a hora do grande Leviatã se apropriar de
tudo o que lhe escapa por entre os
dedos. Tem a hora do brincar e do
curtir. Tem hora de separar o que é
sucesso de outras pessoas e não procurar
superpor e vestir o sucesso alheio à
própria imagem, como se tudo de bom
resultasse dos seus atos, que isso é uma
outra fantasia, de lobo em pele de
cordeiro.
O Carnaval da Bahia está muito bonito,
como sempre esteve desde que o conheci
já há mais de quarenta anos. Viva a
alegria desse povo que sabe e gosta de
fazer festa, uma festa com pouca
violência, festa espontânea que
atravessou diversas conjunturas, as de
anos de chumbo ou de anos mais
dissimulados, embora isso em si não seja
indiferente. O Carnaval aqui é expressão
fidedigna da cultura e do espírito do
nosso povo.
Um pouco mais à frente, rolam outros
carnavais porque Carnaval não é um só e
há muitos diferentes. O espírito alegre
permanece e a alegria contagia. Um povo
carente e sensível é campo fértil para
paixões que invadem e aliciam. As massas
são imensas e bastam as cores vivas, a
arte, a iluminação feérica, o samba
rasgando na avenida os megawatts de
potência, as coxas, peitos, bundas e o
requebrado de mulheres lindas, que a
paixão pelas escolas e pelos blocos
incendeia. Na catarse do momento, nos
tantos dias, impera a fantasia a
compensar as frustrações do ano todo, no
agora esquecidas. O Carnaval-show, o
business, se repete, vem e acontece,
alimentando e alimentado pela grande
mídia, pelos investimentos
governamentais, pelos empresários, e se
elegem músicas, se criam deusas e se
fazem escolas campeãs. E todos faturam
alto: os operários da festa, os músicos,
os artistas, comerciantes e indústria,
hotéis, empresas de transporte, agências
de turismo, e até, coisa nunca vista,
autoridades deixam os seus palácios para
granjearem seus dividendos, distribuindo
simbolicamente camisinhas na avenida!. É
no aqui e é no agora, até a quarta-feira
de cinzas, quando tudo recomeça, quando
na dialética das contradições, na Praça
da Apoteose, o luxo e a alegria se
encontram com a decadência.
Marco Bastos. |