Sempre que entro naquele velho palácio,
onde funcionam vários serviços úteis á
cidade e ainda a escola de danças de
salão, onde o meu filho tem sido
dançarino desde há três anos, uma
sensação estranha de irrealidade me
envolve, de velhas memórias do passado
trágico de pessoas apanhadas nas malhas
de um destino que enlutou toda uma
nação.
Pois que é voz corrente e aceite,
conforme lápide de pedra afixada na
frontaria do mesmo, que naquele local se
erguia no século XVI o solar dos Sousa
Coutinho, sob as ruínas do qual foi
construído o actual
Palácio Landal no século XVIII
o qual tem sido objecto de restauro e
usos diversos desde então.
Corria o século XVII, algures num
daqueles anos seguintes á tragédia da
batalha de Alcácer-Quibir, em que o rei
português D. Sebastião foi dado como
morto ou desaparecido em combate e com
ele vários dos seus companheiros, numa
batalha sangrenta no Norte de África e
por tal facto condenou a liberdade da
sua nação, ao morrer solteiro e sem
herdeiros directos.
Ocasião que foi aproveitada pelos reis
espanhóis que se aproveitaram de factos
sem contestação possível e se apoderaram
da coroa portuguesa, perante a revolta
impotente de vários fidalgos patriotas
mas que não sentiam legitimidade para se
rebelarem abertamente.
Entre esses, destacava-se D. Manuel de
Sousa Coutinho, casado em segundas
núpcias com D. Madalena, viúva de D.
João, falecido na batalha fatídica.
Era um fidalgo da velha estirpe, leal á
sua nação e ao sangue dos seus reis, que
vivia no seu palácio de Santarém, mas
que na altura por ordem real fora
mandado ocupar pelo rei estrangeiro,
para servir de acomodação aos seus
nobres.
Então D. Manuel num assomo de coragem e
patriotismo, preferiu mandar incendiar o
velho palácio dos seus antepassados a
ter que o entregar ao odiado governo
usurpador.
Deu assim ordem á sua esposa e filha
amadas, e ao seu servo, para preparem a
mudança urgente para o velho palácio
pertença do primeiro marido de sua
esposa, facto que esta repudiou, por
lembrar tempos antigos e infelizes, e
por temores próprios de mulher, como seu
marido classificou, mas que foi forçada
a acatar, pela forte determinação e
patriotismo de seu marido.
Consumado o facto, perante a admiração
velada e aplauso dos outros fidalgos,
não tardou contudo mais uma tragédia a
abater-se perante aquela família tão
unida e admirada.
Pois que estando D. Madalena um dia
atarefada com a reorganização da sua
rotina doméstica, o seu fiel servo Telmo,
lhe veio anunciar que um peregrino lhe
pretendia falar.
Assustada com o que a razão lhe apontava
com vagos pressentimentos, mas resoluta,
concordou em receber o estranho homem
que dizia voltar da Terra Santa, o que
teve lugar na sala de entrada, onde um
retrato do seu antigo marido, D, João
era peça principal.
Ao primeiro olhar, e porque aquele
trazia a face velada por longo capuz,
não soube porque o coração lhe deu um
sobressalto tão forte no seu peito fraco
de mulher.
Depois de algumas palavras trocadas,
contudo e porque o que o romeiro lhe
dizia a inquietava fortemente, ousou
perguntar:
- Mas, quem sois, senhor?
Ao que este respondeu apontando com o
seu cajado de peregrino, para o austero
retrato:
- Ninguém senhora, ninguém!
A partir deste facto desenrola-se a
tragédia anunciada e descrita pelo
grande escritor do romantismo, poeta,
dramaturgo, político e embaixador
português do século XIX, Almeida
Garrett, na sua obra-prima adaptada ao
teatro, Frei Luís de Sousa, nome
adoptado por D. Manuel de Sousa
Coutinho, ao recolher-se ao convento
depois do desenlace trágico do seu
casamento com a viúva de um fidalgo que
afinal reaparece das sombras do passado,
para provocar a desonra de uma família e
a morte de desgosto de sua inocente
filha Maria.
Almeida Garrett, grande viajante e
estudioso ao visitar Santarém no século
XIX, que descreveu como “Um grande livro
de pedra recortado”, visitou o local e
escreveu esta aplaudida peça de teatro,
baseada nessa tragédia do homem que
contudo depois como frade dominicano,
foi também reconhecido como um grandioso
vulto das letras lusas.