O
VÉRTICE LUMINOSO DA PIRÂMIDE
(Romance)
por
Carmo
Vasconcelos
II PARTE
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Capítulo
VI
Sem quase nos darmos conta, os meses foram passando velozes.
Cada tarde que eu e Carmen passamos juntas parece ter a duração
de escassos minutos. Só o crescimento do nosso romance nos vai
dando a medida do tempo, como uma criança que ainda ontem
gatinhando, nos surpreende agora, caminhando pelo seu pé.
O Inverno emigrou já para outras paragens e o regresso do sol e
das andorinhas anunciam que uma primavera florida e um verão
quente não tardarão aí.
Se bem conheço Carmen, sei que não demorará a esquivar-se aos
nossos encontros. A sua ânsia de sol e liberdade começam a
fazê-la sentir-se inquieta.
E, tal como eu previa, o temido dia chegou.
– Minha amiga, vamos ter de parar um pouco – disse-me Carmen –
tenho revivido demais o passado. Urge que me retempere com algo
de novo, que dê descanso às minhas memórias.
– Espero que não sejam umas longas férias...
– Não. Apenas uns dias. Uma curta ida ao Porto a convite de uma
amiga.
– Já me falou dela?
– Creio que ainda não, mas poderei falar-lhe. É uma escritora de
talento e uma crítica inteligente e perspicaz, capaz de
reconhecer de imediato um “valor literário” que mal se desenha,
ainda envergonhado.
– Uma escritora? Ainda por cima crítica literária? Por favor,
não ouse mostrar-lhe a minha primeira hipótese de romance.
Sentir-me-ia pequenina como um grão de milho.
– Que ideia, minha amiga! Diz isso, porque não a conhece. É uma
mulher sensível e despretensiosa e tem uma qualidade que
raramente se encontra entre os que se movimentam no mundo das
letras. Não só é completamente despida de inveja ou despeito,
como é sempre incentivadora e capaz de ajudar e estimular os
principiantes mais tímidos. Vou contar-lhe como a conheci:
– Alguns meses depois de meu marido ter partido deste mundo, um
fenómeno estranho começou a passar-se comigo. Toda a poesia que,
inerte e amalgamada, se aquietara dentro de mim, acordou de
repente e irrompeu feita lava que me queimava. Eu escrevia como
que alucinada, quase como de psicografia se tratasse. Daí a
proporcionar-se um convite para integrar um cenáculo literário,
depois uma associação de poetas, foi um passo. Como se tudo
estivesse cumprindo uma pré-definida calendarização cósmica. Foi
num desses cenáculos que conheci a Simone. E de uma forma
curiosa. Um dia, depois de eu ter lido alguns poemas meus, e já
no final da sessão, ela acercou-se de mim e disse-me:
– Sabe que é uma grande poetisa?
– Fiquei sem palavras, frente a uns olhos azuis que esperavam a
minha resposta – uma resposta que eu não sabia dar-lhe.
Intimidada, apenas consegui articular:
– Amabilidade sua... Também escreve poesia?
– Não! Sou prosadora. Mas adoro poesia e invejo os poetas.
– A partir daí, fomos trocando prosas e versos e conheci a
Escritora. Breve nos tornámos amigas. Se ela “invejava” a poesia
que morava em mim, eu “invejava” nela os conhecimentos de música
e pintura, os livros já publicados, as viagens que fizera, os
museus que visitara. E dessa troca de “invejas” nasceu a nossa
amizade e um grande estímulo para a continuidade da minha
poesia.
– Agora já conhece a minha amiga! Quando acabar o seu romance,
faço questão de lha apresentar.
– Quando será isso, Carmen?...
– Quer que lhe responda? Então, ouça:
Para tudo
um tempo certo,
o momento inadiável!
A pétala que cai
fatigada,
o fruto que tomba
maduro,
o poema que irrompe,
definitivo! |
– Entendi! Neste caso, o romance que irrompe definitivo,
não é verdade? Vá, Carmen, vá e retempere-se. Eu e ele
esperaremos por si, pacientemente.
– Até mais ver, minha amiga! Contar-lhe-ei tudo quando chegar.
Carmen não demorou, de facto. Uma semana bastou para que
voltasse reanimada e me procurasse de imediato. Carmen é
daquelas pessoas que vive intensamente as alegrias singelas, os
momentos mais simples. Vai sorvendo a vida a tragos lentos,
aspirando o seu odor, apreciando-lhe a cor, sem pressa, como um
especialista que bebe, deliciado, um vinho generoso.
– Então, Carmen? Como foram esses dias? Pelo seu ar, que eu
diria “lavado”, não é difícil adivinhar.
– “Lavado”, é isso! Curioso, ainda não tinha achado a palavra
certa. Acabou de ma dar, minha amiga. Dias que para muitos
seriam insignificantes, foram para mim o levantar da ponta do
véu que me ocultou uma parte do mundo, durante tantos anos, como
se eu tivesse vivido exilada noutro planeta.
– Mas, Carmen... Sei que viajou, percorreu a Espanha, pisou o
solo africano... Porquê uma simples viagem ao Porto?...
– O que importa, minha amiga, não são os caminhos que se
percorrem. São os olhos com que se vêem, o estado de alma com
que se apreciam. Do Porto, e dos vários percursos limítrofes,
apenas tinha conhecido a estrada, aprisionada num automóvel que
corria veloz, insensível aos meus desejos; ruminando a minha
frustração por não poder parar nos lugares desejados, tocar de
perto castelos e mosteiros, conhecer a sua história, os tesouros
que escondiam. Parando, apenas, nos restaurantes onde saciava o
apetite, permanecendo, contudo, mordida pela mesma fome, uma
fome antiga de beleza e de cultura...
– Foi esta fome que eu fui saciar agora. Sabe que eu não
conhecia o Palácio da Bolsa, recheado de pinturas lindíssimas a
forrarem-lhe as paredes e os tectos; o seu esplendoroso salão
árabe, azul e dourado? Sabe que eu não conhecia sequer o Museu
Soares dos Reis, com as suas magníficas esculturas e pinturas?
Ah, minha amiga, como me extasiei perante a escultura de “O
Desterrado”, duma leveza de linhas que mais parece ter sido
esculpido a fina pena de ave e não a cinzel! Como me esqueci do
tempo, frente às pinturas de Henrique Pousão – pintor português
que fez escola em Itália! Como não dei pelo cair do sol,
olhando, deslumbrada, as maravilhosas porcelanas e faianças e
tantos outros encantamentos, alguns com mais de quatro
séculos!
– Fora isso, eu e a minha preciosa amiga (devo dizer que era ela
quem me guiava com a sua experiência) deambulámos pelas ruas do
Porto, descobrindo uma igreja aqui, um mosteiro acolá, onde
entrávamos sempre que estavam abertos, mirando e remirando um
ornato, uma imagem, uma velha fachada de azulejos antigos. A sua
paciência não apressava a minha curiosidade. Passadas as horas
das refeições sem darmos por isso, corríamos afogueadas para o
primeiro restaurante que nos servisse qualquer coisa de comer –
não importava o que fosse, porque a fome maior já estava
saciada.
– De regresso a Lisboa, tal como na ida, uma repousante viagem
de comboio, o meu transporte preferido. Não os comboios de
outrora, mencionados algures na minha narrativa, que me
conduziam de uma prisão para outra, mas os de hoje, comboios
libertadores que me levam às fontes onde mitigo a minha
sede!
– Vejo que lhe fizeram bem estes dias, Carmen!
– Sabe como me sinto, minha amiga? Como aquela menina deixada lá
muito atrás, que, depois das suas deambulações pela Feira da
Ladra, regressava a casa sentindo-se mais rica, carregando
consigo todas as preciosidades que a tinham encantado.
Recorda-se?
– Como esquecer essas páginas da sua juventude?
– E mais! Sinto-me de novo capaz de enfrentar as minhas
memórias.
– Óptimo, Carmen! Vamos a isso!
Depois de relermos juntas os últimos capítulos, situámo-nos no
tempo e retomámos o caminho interrompido.
Corriam os anos de 1965/66. Carmen tentava a todo o custo dar um
ar de normalidade à sua vida. Alguns pomos de discórdia com seu
marido – os que se relacionavam com a família dela – estavam
afastados. Seus irmãos, longe e dispersos. Eduardo, ao serviço
da aviação, tinha partido para a Guiné logo após o casamento de
Carmen. Carlos Alberto nunca se sabia onde parava. Os outros,
como já sabemos, em terras de África. Por outro lado, morando
Carmen fora de Lisboa, até mesmo as visitas de sua mãe e de seu
padrasto eram espaçadas. Mesmo assim, estavam sempre sujeitas à
má disposição de Jorge e eram motivo de sequentes discussões
entre o casal, razão porque se tornavam cada vez mais raras.
Carmen ia ficando dia a dia mais isolada dos seus. Restavam-lhe
apenas os que moravam a uma rua de distância: a prima Lurdes e a
tia Augusta, que, já de idade avançada, vivia agora com a filha.
Essa tia que ela adorava!
Mas, até dos poucos que restavam, Jorge continuava a ter ciúmes.
Relatar todas essas explosões seria exaustivo aqui.
Surpreende-me até que Carmen não tenha esquecido nenhuma delas.
Quanto a mim, não posso deixar de mencionar algumas que me
pareceram por demais inverosímeis. Por exemplo: aquele dia em
que Jorge, enfurecido, ordenou à empregada que deitasse fora
toda a fruta e doces que a sogra, carinhosamente, e quem sabe se
com algum sacrifício, levara na sua visita. Dia em que, nem os
protestos de Carmen, nem os olhos esbugalhados da amedrontada
serviçal, impediram que os mimos fossem jogados pela janela...
Ou aquele domingo em que Jorge teve de se ausentar para
acompanhar os pais a terras da Beira, não podendo a mulher
acompanhá-lo porque o pequeno Pedro estava com febre. Até aqui,
nada de mais. O inacreditável aconteceu quando ele chegou, já
noite alta. Deparando com os primos (Lurdes e o marido) e a tia
Augusta que, preocupados, faziam companhia a Carmen e ao menino,
Jorge, sem qualquer respeito, numa atitude perfeitamente
alienada, abriu a porta da casa e pô-los na rua, berrando que
não admitia visitas na sua ausência...
Ou ainda, num certo aniversário de Carmen, quando Jorge chega a
casa com a primeira televisão. Carmen foi esperá-lo à porta,
alegremente. Entrados na sala, apressaram-se a retirar o
aparelho da caixa que o envolvia, colocando-o no sítio adequado.
Embora não se tratasse de um presente apenas para ela, Carmen
agradeceu-o como tal, retribuindo a seu marido com um terno
beijo. Prometia ser uma noite de alegria... Porém – havia sempre
um porém – Jorge, ao deparar com a sogra, que ajudava Carmen a
preparar o jantar de “festa”, virou uma fera. E, sem mais
aquelas, vai direito à recém-chegada televisão e, vociferando os
habituais “mimos”, volta a enclausurá-la na caixa
transportadora. Não haveria televisão para ninguém!... E não
houve, mesmo!
Durante estes e outros relatos, eu ainda me surpreendia:
– Mas, Carmen, é absolutamente inacreditável! Isto é: seria
inacreditável se não fosse contado por si!
– Mas é verdade, minha amiga! Esse era o meu marido, o pai do
meu filho, o homem com quem eu partilhava parte de mim. E digo
parte de mim porque houve uma outra parte que eu aprendi a
esconder, como se ela tivesse deixado de me pertencer. E assim,
às ocultas, como quem guarda um tesouro, consegui preservá-la,
intocável. Essa é hoje a minha riqueza!
– Como a admiro, Carmen!
– De nada me vanglorio, minha amiga! O que faço é agradecer
constantemente a Deus por Ele me ter privilegiado com uma enorme
capacidade de superar desaires e desgostos... Embora sem
esquecimento!
E a comprovar que não existe nela esquecimento, Carmen continua
falando, falando...
É essa sua nítida memória, de factos, sentimentos e emoções, que
me faz poder dizer-lhes hoje que aquele era o tempo em que
Carmen se debatia entre a angústia, a impotência e a
incompreensão. Sobretudo, a incompreensão, pois tudo lhe parecia
demasiado inconcebível. Era também o tempo em que ela se sentia
menos do que um trapo, pouco mais do que uma frágil rede, à qual
era arrancada cada dia mais um fio. Tempo em que dava por si a
caminhar pelas ruas, sem destino, o coração apertado, um nó na
garganta, as lágrimas rolando à revelia da sua vontade. Vezes
houve em que hesitou entre meter-se debaixo de um qualquer carro
ou entrar nele. Mas, seu filho era a ourela que segurava os fios
que ainda restavam naquela rede, e era ele, apenas ele, que, na
sua fragilidade, detinha a força que a impedia de cometer um
acto tresloucado.
Carmen tinha ainda outros suportes. A sua vida profissional, com
o respeito e a admiração de colegas e superiores, dava-lhe um
outro contraponto equilibrador. Por outro lado, Carmen aprendera
a munir-se de uma infinidade de cortinas que corria sempre que
precisava de isolar os seus mundos. No emprego entregava-se
responsavelmente às suas tarefas, alheando-se da sua vida
pessoal, e ninguém suspeitava do quanto ela era insatisfatória.
Também não levava a profissão para casa. E essa capacidade de
separar as águas defendeu-a duma inundação que teria sido
perniciosa para o seu cérebro.
Correu a cortina da família, a dos amigos, a do amor, a dos
sonhos; vezes sem conta, a cortina do orgulho. E, correndo
cortinas, se foi mantendo de pé.
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