Carmo Vasconcelos

 

 

O VÉRTICE LUMINOSO DA PIRÂMIDE
(Romance) 
 

por

Carmo Vasconcelos

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I PARTE
 
Capítulo XI

 

Carmen continua de férias. Eu, que tal como ela, sou o “pivot” de uma família que é a minha, não consegui este ano sincronizar a minha disponibilidade, de modo a poder ausentar-me da cidade. Escrever tornou-se, portanto, a minha evasão, uma outra forma de viajar, de tomar contacto com outras gentes, outros hábitos, outras vidas... 
Rebusco os meus papéis. Tenho o hábito de guardar todas as anotações, rascunhos, pequenos memorandos e, agora, em especial os que tenho colhido das minhas conversas com Carmen. Releio-os atentamente. Descubro neste trabalho de busca que, na minha ansiedade de tudo absorver, houve passagens que omiti, pormenores que julguei insignificantes, personagens que deixei para trás. É deles que me ocuparei enquanto a minha amiga não regressa. 
Recordam-se de Rui, o elegante amigo de Carlos que se tornou tio da nossa Carmen e pai da sua prima Lurdes? Creio que nos separámos dele na altura em que Augusta teve a mesma atitude e rumou ao Alentejo. 
Dissolvida a sua união com Augusta, Rui juntou-se com Olga, filha única de um comerciante abastado, bem estabelecido em Lisboa e para quem Rui fazia a escrita da firma. Senhora solteira, de saúde delicada, Olga tinha ao seu serviço, entre outras, uma criadinha jovem, de nome Mariana, oriunda de uma família muito pobre dos arredores. Não demorou que a criadita se insinuasse ao novo e bonito patrão. Era ela que o esperava quando ele regressava a altas horas e Olga já se encontrava recolhida; que lhe preparava o banho, lhe engraxava os sapatos e lhe escovava o casaco antes de ele sair pela manhã.  
Quanto tempo Olga e Rui viveram em comum? Carmen não sabe. Mas, deduz-se que muito pouco. O que se sabe é que patrão e criada fugiram juntos e só a morte os separou, mais de quarenta anos passados. Menos afortunada, Olga, cuja saúde frágil não resistiu àquele golpe, morreu pouco depois. 
O que o tempo mostrou foi que Rui tinha encontrado a última mulher da sua vida. Com ela acabou por construir finalmente um lar. A princípio, com dificuldades, pois os pais continuavam a não aceitar as aventuras daquele filho – dessa vez com uma criada! Mas, com o decorrer dos anos, aquela mulher simples revelou-se uma companheira dedicada, capaz dos maiores sacrifícios para segurar o seu amor. E conseguiu! 
Rui, mais firmado na vida, enceta agora uma luta com Augusta para reaver Lurdes, a filha de ambos, e vai ao Alentejo várias vezes, no intuito de a trazer consigo. Queria pô-la a estudar, dizia. Augusta diz, repetidamente, não! E para que Rui tirasse da cabeça aquela ideia, interna a menina num colégio de freiras em Vila Viçosa. Era um colégio caro, para meninas ricas. Lurdes permaneceu aí, talvez uns dois anos, até que a mãe, sem posses para manter aquela situação, desiste da sua teimosia e deixa que Lurdes venha viver com o pai e a madrasta para Lisboa. Teria talvez um futuro melhor... pensou. Mas Lurdes apanhou tempos difíceis. A madrasta, Mariana, mulher de fibra, fazia rendas e encarregava Lurdes de as vender pela vizinhança. E enquanto Mariana se entregava ao “crochet”, Lurdes tinha ainda a seu cargo o serviço doméstico. Hipótese de estudar, nem pensar! E com tudo isto, a jovem era a que mais sofria; tinha saudades da mãe, da infância despreocupada, e até mesmo do colégio de freiras. Só as paredes do seu quarto eram testemunhas mudas das suas lágrimas. Não obstante, adorava o pai, não porque ele a mimasse como ela desejava, mas porque o sangue assim lho pedia. Contudo, Rui, acima de tudo e de todos, só adorava Mariana! E ambos acabam por legalizar, indissoluvelmente, a sua união, casando pela Igreja. Os pais de Rui rendem-se àquele casamento, abrem-lhe a bolsa, e uma nova era se inicia para o casal. Uma era mais abastada e não isenta de requinte. Acaba-se o “crochet” para vender! Rui providencia uma professora que vai a casa leccionar Mariana e que começa por ensiná-la a ler e a escrever. Depois, ministra-lhe ensinamentos de etiqueta, boas maneiras, regras de comportamento em sociedade. Por outro lado, a mãe de Rui, senhora distinta com quem Mariana passa a conviver, tem também um papel preponderante na sua ascensão social. Leva-a às melhores modistas, aos salões de beleza mais em voga. A beleza morena de Mariana, de cariz forte e um tanto primitivo, estilizou-se. Breve, passa a acompanhar a sogra às compras e aos chás no Chiado; seguem-se as temporadas de termas nos melhores hotéis; Buçaco, Luso, Curia, lugares preferidos pela alta sociedade da época. Mas, enquanto Rui manteve inalterada a sua distinção nata, o seu “berço”, Mariana nunca passou de uma “nouvelle riche”. O frágil verniz de que se revestira, estalava a cada momento, quando não caía de todo. 
Decerto por conhecimento de causa, nunca consentiu criadas portas adentro. Ela própria, com a ajuda de Lurdes e de uma ou outra empregada diária, mantinha a casa em perfeita ordem. Mariana era a mulher com que todos os homens sonham: um misto de mãe, esposa, amante, e aia pessoal. O que ela nunca conseguiu foi dar-lhe um filho! Apesar disso, Lurdes nunca foi tida como filha, na verdadeira acepção da palavra, e nada aproveitou daquela mudança de vida. Não retomou quaisquer estudos e raramente participava das saídas do casal. Quando as viagens de Rui e Mariana se prolongavam, Lurdes era levada para casa da tia Diolinda e lá ficava ao seu cuidado. Tinha mais dez anos do que Carmen e era como uma irmã mais velha para todos os primos. No lar de Carmen, Lurdes namorou, e desse mesmo lar saiu vestida de noiva, pelo braço de António que a acompanhou ao altar, cerimónia a que o pai e a madrasta se furtaram. – Para não se cruzarem com Augusta, argumentaram…   
Mariana tinha-se apressado a casar a enteada, não lhe dando tempo nem oportunidade a que pudesse fazer a sua própria escolha. Também não se preocupou em escolher-lhe um marido à altura dos meios sociais que frequentava, embora Lurdes o merecesse, pois era bonita, educada e, apesar da curta instrução a que tivera acesso, tinha o que Mariana nunca conseguiu – um porte naturalmente elegante e uma distinção nata (coisa de sangue). 
Mariana cozinhara-lhe o casamento com um vizinho, operário de profissão, que tinha virtudes, é certo! Era um bonito rapaz, honesto, trabalhador, e apaixonado por Lurdes. Será que foi o suficiente para a fazer feliz?... O que sei é que esse casamento teria durado para sempre, não fora a morte tê-lo levado ao fim de mais de cinquenta anos de união! 
Certo é, também, que as conversas são como as cerejas e que eu sempre me deixo arrastar pelas palavras.  
O que queria mesmo dizer-vos é que Carmen sempre frequentou a casa do tio Rui e de Mariana, a quem chamava “os padrinhos” desde que começara a falar. Da sua convivência com eles durante a meninice, Carmen tem lembranças vagas, mas tem gratas e nítidas memórias desse relacionamento, quando já adolescente. 
Os “padrinhos” gostavam muito dela. Não lhe poupavam elogios. Admiravam-lhe a inteligência, as boas notas que tirava nos estudos; gabavam-lhe a honestidade e a forma como sabia ser discreta. A propósito da honestidade, Mariana, que tinha muitas jóias e tinha o péssimo hábito de as deixar por qualquer sítio, costumava dizer: “Com Carmen estou descansada, pode até achar “ouro em pó”, que não lhe toca...” Ou, a propósito da discrição: “Ninguém arranca nada daquela boca, mesmo que se lhe puxe pela língua...” Isto, no que se referia a ditos e mexericos, bem entendido!  
Carmen nunca contava aos padrinhos o que ouvia da boca de sua mãe quando esta se referia a Rui: “Pois é, agora que está rico, esqueceu-se dos amigos que tanto o ajudaram... Já nem conhece mais o teu pai!” Também não contava a Diolinda o que Rui comentava para Carmen: “O teu pai era um homem muito inteligente, pena que não tivesse tido cabeça, desbaratava tudo com os amigos... (Rui já não se recordava de que tinha sido um deles...) A dada altura, eu quis dar-lhe a mão, mas ele era muito orgulhoso, não quis aceitar.” 
Carmen ouvia de um lado e do outro, tirava as suas conclusões, mas calava-as. Considerava-se um ser independente. Os padrinhos tratavam-na com carinho, com um certo respeito, até! Isso bastava-lhe! Convidavam-na amiúde para sua casa. Para animar a conversa não havia como ela. Sempre que Carmen almoçava ou jantava com eles, Rui dizia, rindo: “És tal e qual o teu pai! Tens tudo no prato, falas mais do que comes!”  
Todas as semanas havia um dia em que Carmen saía com eles. Iam jantar fora, depois ao cinema Tivoli ou São Jorge. Outras vezes, ao Teatro D. Maria ou ao Trindade. Nesse tempo, os espectáculos tinham longos intervalos. Os “foyers” ficavam repletos, especialmente em noite de estreia. Era o momento das senhoras mostrarem as toaletes e as jóias, os cavalheiros fumarem o seu charuto, cumprimentarem amigos e comparsas de negócios. Carmen gostava daquele movimento, alimentava a sua curiosidade, o seu espírito de observação.  
Terminado o espectáculo, metiam-se no carro apressadamente, para poderem arranjar mesa na Versalhes, onde se servia o melhor chocolate quente com torradas. Nessa época, a Versalhes fechava às duas da manhã... Durante a ceia, Rui gostava de discutir o filme ou a peça de teatro com Carmen, altura em que Mariana ficava a perceber melhor algumas subtilezas que não tinha entendido. Terminada a ceia e a conversa, deixavam a pequena em casa, para ela ouvir de sua mãe o tradicional: “Tão tarde! Para a outra vez não vais! Escusam de me vir pedir!” Mas, na semana seguinte, tudo se repetia.       
No Verão, era a piscina do Hotel Atlântico, no Estoril. Rui não gostava de praia – com muita pena de Carmen! Contudo, a piscina como variante, não lhe desagradava. E aqueles almoços, servidos com requinte à beira do rectângulo verde, valiam a troca. 
Havia também os dias em que os padrinhos não saíam. Carmen almoçava com eles, após o que, Rui e Mariana recolhiam ao quarto para fazerem a sesta, coisa que Carmen sempre detestou. Porém, antes de se recolherem, diziam-lhe: 
– Faz uma sesta na sala, se quiseres... ou vai para o escritório, lê o que te apetecer...            
Era o que ela queria ouvir! Ia para o escritório e aí sentia-se bem acompanhada, à semelhança do que acontecia no escritório dos Bastos. Com uma diferença: a dificuldade de escolha era maior. Albergando uma rica biblioteca, as estantes de Rui iam do chão ao tecto, razão por que, dissimulado numa das portas, se encontrava um pequeno escadote onde Carmen se empoleirava para alcançar os títulos mais altos. Foi lá que leu “Os Maias”, “O Crime do Padre Amaro”, “A Cidade Eterna”, “O Vermelho e o Negro”, o “Bon Jour Tristesse”, entre outros. Com que rapidez se passavam aquelas horas! Quem poderia trocar “aquilo” por uma sesta?... 
Tenho de dizer-vos que hoje os Bastos e os padrinhos Rui e Mariana já não são deste mundo, e que Carmen recorda com saudade aqueles “ninhos” onde poisava nos seus verdes anos. 



Carmen, finalmente, regressou de férias. E eu dei-me conta de como, verdadeiramente, tinha sentido a sua falta! Ela confessou-me o mesmo. Era como se Carmen e eu fôssemos a mesma, de tal modo me sentia misturada na sua vida. 
Falei-lhe da minha saturação da cidade e do que me dispus a escrever para colmatar a sua ausência. Carmen falou-me dos livros que lhe tinham feito companhia durante as férias – habitualmente lê mais do que um ao mesmo tempo – de como esquecia tudo ao ler Marguerite Yourcenar e de como se envolvia com Proust “Em Busca do Tempo Perdido”. Depois, mostrou-me alguns poemas que tinham brotado, não do lazer dos dias, mas da solidão das noites. Houve um que me tocou especialmente e que destaquei para o partilhar convosco:
 
ALGEMAS D’OIRO
 

Fecham-se em mim
as tuas mãos...
 
Algemas de oiro
na mansidão,
cerram com elas
ilhas de medos,
mares de ciladas...
 
E os teus dedos,
pontas de lume,
furam degelos,
abrem segredos,
nas madrugadas.

 

Entretanto, Carmen já me falava do Diogo e dos momentos de encantamento que passara, partilhando os seus primeiros sorrisos, os seus primeiros gestos.
A certa altura, disse-me: 
– Sabe, minha amiga? Sempre que uma vida nova cresce junto de mim sinto-me rejuvenescer! Com o nascimento do Diogo estou experimentando de novo essa sensação. A última vez que a experimentei, lembro-me bem, foi quando nasceu o meu filho Telmo, já o Pedro tinha quinze anos... E foi talvez essa criança, que todos (menos eu) achavam tardia, que me trouxe forças e alento para suportar a longa noite que se avizinhava... 
Carmen calou-se, como sempre fazia quando uma lembrança a magoava. Afigurou-se-me que, involuntariamente, tinha voltado ao passado. Mas eu não conseguia entender o porquê dessa sombra de tristeza, entrelaçada com a alegria do nascimento de Telmo. E como Carmen parecia não querer sair daquele silêncio imerso em bruma, resolvi quebrá-lo.
– Desculpe, Carmen, mas agora fiquei confusa... 
Carmen pareceu não me ouvir e deixou escapar: 
– Mas comigo é sempre assim! Nenhuma felicidade é completa, nenhum bem é duradouro, como se o bom e o mau tomassem cada uma das minhas mãos para me acompanharem a par e passo... 
– Por favor, Carmen, tente ser um pouco mais clara. Fale-me dessa longa noite... 
– Posso tentar, mas fá-lo-ei muito resumidamente, porque por mais que eu quisesse ser exacta, tudo sairia como uma tosca imitação de um quadro autêntico, impossível de reproduzir. 
– Foi assim tão mau?... 
– Logo a seguir ao nascimento de Telmo, corria o ano de 1979, como se de uma troca se tratasse, uma doença terrível quase me roubou Pedro, o meu Pedro, com apenas quinze anos... Uma doença sem rosto num corpo são, cuja causa continua a ser um enigma, e a sua localização uma incógnita. Algures no cérebro, esse desconhecido?... Ou na mente indecifrável?... Não era uma doença de morte, era pior, daquelas em que a razão e a loucura quase se tocam, separadas por um débil fio invisível que pode quebrar-se a qualquer momento.  
Até termos um diagnóstico que tornasse possível combatê-la, foram anos de corrida a neurologistas, psicólogos e psiquiatras e, em fases desesperadas, às Urgências dos Bancos Hospitalares. Até que encontrámos um médico extraordinário, um médico com “M” grande, que descobriu o nome da inimiga que atormentava o meu filho – “Neurose obsessiva-compulsiva” – e que se dedicou a fundo ao seu combate. Sem ele, não sei o que teria sido de Pedro, e de mim também. Sabe que me “apaixonei” por esse médico? Não, não era paixão no sentido comum do termo. Era mais do que isso. O meu sentimento era um misto de atracção, carência e admiração, talvez a força que inventei para me ajudar a suportar a dor imensa, um factor ilusório de sobreposição que relegasse para segundo plano o meu intenso sofrimento. Cedo percebi que o que eu perscrutava através dos seus profundos olhos azuis, era a ciência, a sabedoria capaz de me arrancar ao pesadelo. Era ele que, a par da assistência clínica que prestava ao meu filho, me explicava tudo sobre a doença, me aconselhava, me incentivava a ter esperança. E a minha “paixão”, da qual ele nunca suspeitou, não era, afinal, senão a forma de que se revestira a minha gratidão, enorme e silenciosa.  
– Que fatalidade, Carmen! Nunca supus... Essa é, de facto, uma doença assustadora, porque perigosa e incapacitante. Hoje, chamam-lhe DOC (Distúrbio Obsessivo-Compulsivo) mas, embora a ciência esteja continuamente a fazer progressos, continuam a desconhecer-se concretamente os motivos que a desencadeiam. Mas continue, Carmen, por favor.  
– Depois de diagnosticada, foram sessões de terapia familiar, períodos de internamento hospitalar, fugas desses internamentos e recondução a eles. Só quem o sentiu na pele pode imaginar o que é o inferno dum hospital psiquiátrico... Depois, outros tantos anos se seguiram até se achar a fórmula certa de controlar a doença. Foi muito sofrimento... Mas Pedro foi, sem dúvida, quem mais sofreu: pela incompreensão do mal que o atingira, pelos estudos interrompidos, pela juventude refreada por medicamentos, pela liberdade truncada, pelo futuro comprometido. A ponto de Pedro só pensar em acabar com a vida... 
– É tarde, Carmen, e se ficássemos por aqui? – Interrompi, camuflando o meu nervosismo perante assunto tão doloroso. 
Porém, Carmen parecia surda às minhas palavras.   
– E eu, eu... lutando por todos os meios ao meu alcance para amenizar os seus dias e noites de angústia, secar-lhe as lágrimas, inventar razões que lhe devolvessem a vontade de viver. Por outro lado, esforçando-me por acalmar o meu marido, profundamente desiludido com o filho que lhe coubera, totalmente descontrolado face a uma situação com a qual não sabia lidar, porque não compreendia e, sobretudo, porque se recusava aceitá-la. Como se tudo isto fosse pouco, eu tinha ainda de enterrar fundo os meus sentimentos, amordaçar a minha dor, para deixar aflorar a serenidade necessária ao desenvolvimento tranquilo do meu filho recém-nascido. Meu Deus, ainda hoje me pergunto como fui capaz... 
De repente, Carmen emudeceu, como que parada no tempo e totalmente alheada da minha presença. 
Eu estava siderada, só a minha mão escrevia sem parar. Mas, era demais... Era preciso fazer com que Carmen voltasse rapidamente aos dias de hoje, apagar-lhe a memória, fazê-la correr a cortina do passado. Pelo que, decidi interceptá-la bruscamente, disfarçando a minha comoção: 
– Chega, Carmen, chega por hoje! Lembremos apenas que Pedro está hoje livre de tudo isso, que é um homem perfeito, inteligente, e um filho muito dedicado. 
– Tem razão, minha amiga! Nem sei porque enveredei por este assunto. Não tinha intenção... Como as memórias se atropelam...                            
E, já em jeito de despedida, Carmen entregou-me um volumoso envelope contendo folhas manuscritas. 
– De que se trata? – Indaguei.  
– Apontamentos, memórias soltas, material que fui compilando para si. Tirará deles o que achar que tem interesse para o seu romance.       
– Porquê, Carmen? Vai deixar-me de novo? – Perguntei, ansiosa.  
– Apenas por um tempo, minha amiga. Dois meses, ou pouco mais...  
– Vai viajar? – Continuei.   
– Não, minha amiga, se bem que era o que eu gostaria...  
– O que tenho agora é que me entregar totalmente à revisão de uma obra inglesa que foi traduzida para a nossa língua, trabalho que me propus fazer para uma editora, o que, depois de férias, se me afigura como transpor uma montanha.     
– Não sabia que também se dedicava a esses trabalhos. Como consegue?! A família, a poesia...                      
– Fazendo tudo com gosto! Até as tarefas mais rotineiras... Já Leonardo da Vinci dizia: “Mais importante do que fazer-se o que se gosta, é gostar-se daquilo que se faz...” Além disso, conto sempre com os serões pela noite dentro, a noite é a minha melhor companheira de trabalho!
E porque a hora já ia adiantada, Carmen despediu-se mesmo! Desta vez, não com um “até breve!”, mas dizendo:  
– Prometo transpor a montanha depressa! 
– Assim seja! – Respondi-lhe. 
Parti, pesarosa. Porém, ao apertar debaixo do braço o volumoso envelope que Carmen me trouxera, senti-me mais confortada.


 

 

 
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