Carmo Vasconcelos

 

 

O VÉRTICE LUMINOSO DA PIRÂMIDE
(Romance) 
 

por

Carmo Vasconcelos

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I PARTE
 
Capítulo VI
 

O tempo, que ora nos parece demasiado veloz, quando queremos eternizar os momentos felizes, ora se nos afigura demasiado lento, quando queremos libertar-nos de uma angústia ou de uma ansiedade que nos consome, passou, na sua cadência ritmada e alheia a sentimentos. 
Volvido um mês sem ter notícias de Carmen e não podendo mais dominar a minha ansiedade – o meu romance reclamava os seus pés para andar, a sua voz para se fazer ouvir, as suas emoções para vibrar – decidi telefonar-lhe. 
– Como está, Carmen? Que se passou? Esqueceu-se de mim?    
– Ora viva, minha cara amiga! Claro que não a esqueci! Mas... Passou tanto tempo assim? 
– Um mês! Não é costume... Estranhei. 
– Um mês? Já? Nem dei por isso! Irá compreender quando lhe contar. Podemos encontrar-nos amanhã à tarde? 
– Com certeza! Onde? 
– No Jardim da Estrela, às três horas, pode ser? 
– Combinado! 
Enquanto esperei pelo dia seguinte, cogitei: “No Jardim da Estrela? Porquê? Nem moramos perto...” Depois: “Algo de muito bom se deve ter passado, para Carmen ter perdido assim a noção do tempo...” 
Finalmente, chegou o momento esperado. Carmen trazia realmente um ar feliz! Rapidamente, saciou a minha curiosidade. 
– Perdoe, minha amiga, o tê-la deixado sem notícias, o ter relegado para segundo plano o seu romance. Mas é que aconteceu uma coisa maravilhosa! Nasceu o meu primeiro neto! Um menino lindo, a quem os pais puseram o nome de Diogo, embora, carinhosamente, lhe chamemos Didi. Também ele traz a marca da família: moreno, olhos negros. 
– Mas que novidade, Carmen! Agora compreendo. É, de facto, um acontecimento capaz de fazer esquecer tudo. Parabéns! 
– Curioso é que nasceu sob o signo de “Gémeos”, como eu. Oxalá ele venha a saber lidar com isso!  
– Porquê? É assim tão difícil? 
– Difícil…? Se é! É necessário ter uma noção exacta do Bem e do Mal e uma força incrível para não deixar o segundo sobrepor-se ao primeiro; não se deixar mover por influências nem deixar-se arrastar totalmente pelo elemento “Ar”, perdendo a “Terra” de vista! Os “Gémeos” são dois e, embora a interpretação mitológica deste signo simbolize a acesa amizade, a união harmónica de duas naturezas ou caracteres, não exclui uma certa duplicidade, o que faz gerar frequentemente sentimentos contraditórios, neles e nos que lhe são próximos. Muitas vezes, aparentam o que interiormente não são, porque, revestidos de uma couraça, raramente mostram o que sentem; excepcionalmente desnudam os verdadeiros sentimentos. À conta desta duplicidade, não raro são injustiçados, por mal compreendidos. A ponto de se pôr uma dupla questão a seu respeito: “Os Gémeos são felizes? É-se feliz com eles?” 
– Mas, deixando de lado a astrologia e a mitologia, o que não cessa de me maravilhar é o que considero o “milagre mais perfeito da Criação”: o nascimento de uma criança, na sua miniatural perfeição externa e interna; a sua transcendência para além da Biologia e da Genética... 
– Partilho plenamente desse seu sentimento! – Exclamei, vivamente emocionada.        
– Então, estou perdoada?  
– Eu é que lhe peço mil perdões pela minha incontrolável ansiedade! 
– Não diga tal, minha amiga! Entendo-a muito bem! O seu romance justifica-a totalmente. Quando escrevemos é como se o mundo parasse ao nosso redor, alheamo-nos da realidade, às vezes, da própria existência. – Relembre-me então onde ficámos, por favor.  
– No final da sua infância. 
A partir daí, Carmen esqueceu o presente, trepou às nuvens do tempo e pôs a funcionar a máquina das lembranças remotas que nos transportou ao início da sua adolescência.  
Tinham finalmente decorrido os dois anos necessários para que ela pudesse iniciar os seus estudos pós primários. Era o início de uma nova aventura! 
Colocada longe de casa, numa Escola Técnica situada entre a Estrela e Campo de Ourique, tinha um longo percurso a fazer diariamente. As aulas começavam às oito da manhã e duravam todo o dia, apenas com alguns intervalos entre aulas. Para ela, era um princípio de independência e uma forma de se alhear dos problemas caseiros; de se libertar da vigilância atenta de sua mãe; das constantes e acesas discussões que Diolinda mantinha com os seus irmãos mais velhos; e de fugir das traquinices de Eduardo, à data com sete anos. 
A hora do começo das aulas era um suplício para Carmen que já nesse tempo deixava adivinhar uma péssima relação com horários, a qual, segundo me confessou, ainda mantém. Providencialmente, havia uma colega que morava próximo, encarregada de lhe tocar à porta para fazerem o trajecto juntas. Quantas vezes esse toque era o último “toque de alvorada” para Carmen que só perante esse sinal de alarme se levantava da cama para, de seguida, se lavar e vestir às pressas e galgar num ápice os degraus que a fariam juntar-se à paciente companheira. A “vítima” chamava-se Conceição. Não obstante, foram amigas por muitos anos. Porém, como eram diferentes! Por fora e por dentro!                  
Conceição tinha dois belos olhos azuis, tão azuis que pareciam dois retalhos de céu emoldurados por uma farta cabeleira castanha e encaracolada; os lábios finos, raramente deixavam passar uma gargalhada. De estatura baixa, magra e franzina, tinha um temperamento sereno e tímido, quase triste. Seu pai tinha uma loja de mercearia e taberna, anexas à casa farta. Homem rude, não deixava as filhas pisar em ramo verde. E digo filhas, porque Conceição tinha duas irmãs. Das três, Conceição, sob essa aparência frágil, era a que albergava maior ambição de se tornar “alguém”. Além de pontualíssima, era o que se podia chamar uma estudante aplicada. Os trabalhos de casa sempre feitos, as lições mais que estudadas, os cadernos rigorosamente em dia. Carregava diariamente uma pasta de fole, enorme e pesadíssima, com o material de todas as disciplinas, que eram muitas. Como bagagem extra, havia o fato e as sapatilhas de ginástica, os T’s e esquadros para o desenho, os acessórios para trabalhos manuais e lavores femininos.  
E, o que nunca podia faltar: a bata branca, cujo esquecimento equivalia a uma falta na caderneta. Para além desta parafernália, havia ainda as sanduíches e a fruta para o almoço. Tudo a Conceição levava! E como não gostava de ir de bata vestida, ainda a transportava no braço. 
Carmen, cumprindo a sua hereditariedade, era morena, e um espesso e longo cabelo negro condizia com dois olhos da mesma cor. A boca vermelha e carnuda alargava-se facilmente em gargalhadas sonoras. Pequena de estatura, era roliça e bem torneada. Tinha um temperamento alegre e fogoso – tudo menos sereno. E, ao contrário de Conceição, não albergava ambições. No seu íntimo, já se sentia “alguém”, pelo que, o seu desejo mais forte era apenas “viver”. Não era uma estudante aplicada – nem precisava – o que ouvia nas aulas por obrigação, colava-se-lhe à memória como o pez se agarra aos troncos à revelia da vontade das árvores. 
Não admira, portanto, que carregar tal equipamento estudantil fosse complicação demais para Carmen! Aliás, ciente das dificuldades familiares, não dava a saber em casa nem da metade do material que era preciso adquirir. Num único caderno tomava nota dos sumários de todas as disciplinas. Orientava-se pelos livros das companheiras de carteira, pedia emprestados os apetrechos de ginástica às colegas de outras turmas; e, exercendo o seu sentido prático, levava a bata já vestida de casa, o que até lhe convinha, para camuflar as vestimentas impostas por sua mãe, nem sempre do seu agrado. O lanche, do qual não prescindia, era praticamente a sua bagagem. Transportava-o, juntamente com o único caderno, numa pasta de pele, muito leve, que fechava com um fecho “éclair”. Essa pasta, considerada, na época, um acessório de luxo, tinha-lhe sido dada por seu pai que a comprara em tempo de vacas gordas, e Carmen orgulhava-se muito dela. Levando-a debaixo do braço, caminhava saltitante, de mãos confortavelmente metidas nos bolsos da bata branca. Porém, brevemente se livrava dessa bagagem que, apesar de pouca, ainda se lhe afigurava um estorvo. A cada pequeno intervalo da manhã ia dizimando, uma a uma, as sanduíches e as peças de fruta, até poder guardar a pasta vazia e dobrada na grande mala de fole da sua amiga Conceição. Chegada a hora do almoço – o intervalo às vezes era de duas horas – Carmen corria para o grande pátio do recreio para entrar a tempo nos campeonatos do jogo do “Ring”. Rompia meias e sapatos de tanto correr naquele pátio! Enquanto isso, Conceição tomava a sua refeição descansadamente e quando lhe sobrava tempo adiantava os deveres para o dia seguinte ou reunia algumas colegas para lhes dar explicações. Era uma aluna muito atilada, a Conceição! Porém, o que era incrível, é que quando se tornavam conhecidas as notas dos pontos e dos períodos, as de Carmen eram sempre mais altas, o que, para Conceição, representava uma afronta. Isso dava lugar a algumas desavenças entre as duas amigas, estremecendo temporariamente aquela amizade. Todavia, breve faziam as pazes e reconheciam não poder passar uma sem a outra, confirmando a teoria de que os opostos se atraem...  
Enquanto eu escrevia as palavras ditadas por Carmen, ocorreu-me um pensamento que não posso deixar de partilhar convosco: Como a vida daquela garota era feita de contrastes! Ao mesmo tempo que exibia uma pasta de pele genuína, não tinha umas sapatilhas de ginástica e nem sequer os necessários livros de estudo, porque, consciente dos tempos difíceis que assolavam a sua casa, nem sequer pedia que lhos comprassem... E mais… Os sapatos, rotos à força de tanto correr e brincar, tinham de caminhar com ela alguns meses, até que sua mãe pudesse comprar-lhe outros. Curioso é que nada disso abalava a sua alegria nem impedia que tirasse as melhores notas... 
Estava eu embrenhada nestas cogitações, quando a minha narradora me lança subitamente uma pergunta: 
– Não adivinhou ainda porque a trouxe aqui?                       
Apanhada de surpresa, fiquei momentaneamente sem resposta. Rapidamente, olhei em volta e acordei para o belíssimo Jardim da Estrela que nos cercava! 
– Parece-me que começo a compreender – respondi um pouco insegura. 
– Eu lhe direi, minha amiga. Frequentemente, quando faltavam professores (o que eu agradecia aos céus) aventurávamo-nos em grupos, em pequenas digressões fora da escola. Este jardim faz parte das minhas recordações dessa época. Aqui, passei momentos bem alegres e divertidos. Os rapazes, que apesar de frequentarem a mesma escola, estudavam separados de nós, seguiam-nos dizendo piropos às meninas suas preferidas – escolhas que raramente coincidiam com as nossas... Mas isso não era o mais importante. Havia muito riso, muita descoberta, nesses primeiros contactos com o sexo oposto e, ao mesmo tempo, tanta inocência! Como me sentia feliz e solta! Como se tivesse molas na voz e no corpo, era a mais eloquente e a mais vivaz dos grupos. O meu sentido de humor, a displicência com que lidava com as responsabilidades académicas, a pouca timidez perante os professores, creio que divertiam os colegas menos atrevidos, até mesmo a minha amiga Conceição, tão pouco dada a irreverências. Havia também a presença das graças da natureza – as flores coloridas, as árvores muito verdes, aqui e ali uma nesga de céu azul, um raio de sol, o cantar das fontes, o chilrear dos pássaros – coisas que sempre me extasiaram. Hoje, que me entendo melhor, percebo como tais cenários eram necessários ao meu equilíbrio; como eles traziam paz à minha inquietude! Aliás, os jardins sempre fizeram parte das minhas aventuras, das minhas escapadelas, receio até que venham a tornar-se uma constante no seu romance...  
Quando não íamos ao Jardim da Estrela, visitávamos um horto próximo onde se vendiam flores. Havia-as de todas as qualidades, era uma estonteante mistura de cores e cheiros. Os botões de rosa fascinavam-me. O meu desejo de comprar um daqueles botões era de tal modo irresistível, que me obrigou algumas vezes a regressar a casa a pé, por ter gasto nele o único “1 escudo” que minha mãe me dava para o bilhete do eléctrico. E a que preço me ficava aquele botão de rosa! Ao longo percurso que tinha de fazer a pé ao fim do dia, acumulavam-se os inevitáveis ralhos de minha mãe pela hora tardia a que eu chegava.        
– Mas onde andaste? Sabes que horas são? A Conceição já chegou há mais de uma hora! 
– Vim a pé, mãe. Gastei o dinheiro do eléctrico nesta rosa. Era para lhe oferecer – justificava-me eu, exibindo a minha rosa já murcha. 
– Onde já se viu? Gastar o dinheiro do eléctrico em bagatelas que não valem nada – ripostava minha mãe, insensível, acusando-me de desmiolada.   
O quanto eu desejava naquela hora que ela me compreendesse! Que me ralhasse brandamente e me desculpasse com um beijo, aceitando a minha rosa murcha! Porém, isso era desejar o impossível!   
Entende agora, minha amiga, por que fiz questão de marcar aqui o nosso encontro? A volta a este lugar, ao fim de tantos anos, ajudou-me a reavivar a memória. 
– Não só entendi, como considerei uma tarde maravilhosa. Eu e o meu romance só podemos ficar-lhe gratos. 
E assim nos despedimos.


 

 

 
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