Roceiro
Conto
premiado no Concurso Nacional de
Contos promovido pela Academia
Irajaense de Letras em 2008 –
Terceiro Lugar
Luiz Poeta
Luiz Gilberto de Barros
O caminhão-basculante
veio arrastando o mato, a poeira
embaçando a grama, o barulho potente
do motor importado assustando os
camaleões e lagartos, espantando os
tizius, coleiras, sabiás e sanhaços.
De repente, o baque!
Dois bezerros foram
colhidos em cheio; outros saltaram a
cerca de arame farpado, ferindo-se
atabalhoadamente
A caminhonete vermelha
foi parar no barranco.
O vaqueiro chicoteou a
égua baia, chegou perto, gritou para
o motorista:
- Eh, cumpadre, ocê matou dois
bezerro !
- Matei !? – respondeu o outro
perguntando.
- Matou !
- Pois aqui não é lugar de bezerro
pastar !
- É, mas ocê podia pelo menos
diminuir a marcha, não carecia de
correr tanto...
- Meta-se com a sua vida, seu... Eu
corro onde quiser !
- Correr ocê inté pode, só num pode
é matar os bicho...
- Se matei, tá matado, que se dane !
- Que se dane não, moço... Ocê tem
que pagar os bicho morto, no preço
justo !
- Pagar uma ova ! Quero ver quem é o
macho que vai me cobrar – ameaçou.
- Pois daqui o senhor não sai.
Bezerro custa caro.
- Não saio ? Vamos ver se não saio !
O homem foi atrás do
banco do carro, pegou uma barra de
ferro e desceu disposto a tudo,
avançando ameaçadoramente para o
outro.
O
vaqueiro não se intimidou. Meteu a
mão numa garrucha e disparou.
Os dois
únicos tiros que a arma suportava,
pegaram numa das pernas do
motorista.
Cambaleante, ele
arrastou-se até o carro, ligou o
motor estabanadamente, manobrou o
carro e arremessou-o contra o
vaqueiro - que se desviou com
precisão - e saiu como um
relâmpago.
O roceiro apeou,
caminhou até os dois animais
ensanguentados. Uma difícil lágrima
rolava-lhe discreta na face
cabocla...
- Desgraçado ! - Choramingou.
Um dos bezerros estertorava, o
outro nem se movia.
- Malvado ! Nem pra andar devagar...
Por que correr daquele jeito ?
De repente, as sirenes.
A viatura policial deslizava ao
longe, levantando a poeira amarela
da estradinha que circundava o
pasto.
O triste homem
levantou-se, afagou os animais
mortos, montou na égua e sumiu no
meio do capinzal.
Véi Mundim consertava a
cerca que circundava a casa de
madeira. Um prego na boca, outro
entre os dedos, o martelo na mão.
De repente, o rumor de
cascos no barro,
A sirene acordando o
pasto, os tiros pipocando no
silêncio vivo do capinzal.
O vaqueiro vinha feito uma bala
riscando o tempo, arriado sobre a
cela, a égua avançando ligeira.
Quando divisou a
porteira, o animal entrou apertado
no pequeno vão. O carro da polícia
passou direto, estilhaçando a
madeira.
O velho estava
boquiaberto; o prego semi-enterrado
na primeira martelada...
Do que jeito que vinha,
o boiadeiro desmontou num salto, a
bota afundou no charco, a égua foi
parar logo adiante.
- Que foi, homem ? – indagou o
velho.
- Depois eu conto, agora é fincar pé
no mato!
E sumiu no meio do
capim-navalha.
A viatura deu marcha a
ré e dela saltaram um tenente, dois
soldados e o motorista do
caminhão-basculante, capengando.
Os homens foram
entrando cocheira-adentro, o pé do
oficial arrebentou a taramela.
Véi Mundim olhava-os de
soslaio, por trás de uma das lentes
dos óculos rachados, o cigarro de
palha torto num dos cantos da boca.
O martelo firme numa das mãos.
- Onde está o bandido ? – perguntou
o tenente.
O velho bateu o segundo
prego, sem responder; as pupilas
azuis como um céu aberto sobre o
vale.
O tenente aborreceu-se.
- Como é que é, meu senhor? Onde
está o marginal ?
O velho nada respondia.
O soldado tentou segurá-lo. O
martelo tornou-se um machado.
- Se chegar mais perto, eu abro sua
cabeça, sordado !
E abria mesmo, não
fosse a intervenção do tenente.
- Calma, rapaz, deixe o moço. –
chegou-se para o velho demonstrando
atitude pacífica.
- Amigo... aquele homem que entrou
aqui correndo, baleou este moço aqui
– apontou para o irritado motorista
que massageava a perna atingida.
- Agora já se pode começar uma
conversa... – disse o velho. De
primeiro, ocê preguntô por um
bandido... Que se saiba, aquele moço
num é nenhum bandido...
- Bem, meu senhor...ele baleou um
motorista....
- Adispois, - continuou o velho –
vosmicê quis sabê de um marginá...
se se refere àquele moço que sumiu
no mato, também num se trata dele...
- Meu senhor, ele fez uma vítima...
O velho não se abalou:
- Adispois ainda, o sordado raso aí
tentou botar a mão ni mim... Como é
que ocê ainda tem o descaramento de
fazer pregunta a uma pessoa que
nunca viu mais gorda ? Seja mais
educado, homem ! Cadê os estudo ?
Cumpra o seu dever, mas num martrata
as pessoa di bem.
O tenente coçava a cabeça, os
soldados franziam a testa, o baleado
enrijecia os músculos faciais e não
se conteve:
- Aquele safado me deu dois tiros !
- Eu conheço ocê de algum lugar ? –
indagou o velho sem se abalar...
Além do mais, se levou dois tiro,
à toa é que num foi... nessas banda,
ninguém leva tiro a troco de nada...
- Ora, seu... – o motorista avançou
para o velho, que muniu-se de um
pedaço de madeira da cerca.
- Eu acho que ocê num tá satisfeito
com os dois tiro. Se me provocar,
vai ter dois buraco na perna e um
taio na cabeça. Vem procê vê !
- Calma, gente, vamos conversar –
interrompeu o tenente.
- O que nós queremos é saber onde
foi aquele moço que estava montado
nesta égua aqui, o senhor poderia
nos ajudar ?
- Que eu visse, se embrenhou no
mato.
- Onde ?
- Ué ! É só oiá pro mato e procurá.
- Bem, o senhor vai nos mostrar onde
ele está!
- Quando ele chegou aqui, eu tava
pregando as tábua da minha cerquinha.
Tava ainda no primeiro prego, quando
ouvi toda a barulheira que ocês
fizeru.
- Tudo bem, tudo bem, gritou um dos
soldados! E pra onde ele foi? O
senhor já está deixando a gente
nervoso!
- Vem cá, me diz uma coisa... Quem é
o comandante desse pelotâo? É ocê? É
aquele cidadão capenga ou é o outro
sordado?
- Soldado, cale-se !
- Mas eu...
- Cale-se ! Eu faço as perguntas! O
tenente estava irritado.
– Meu senhor, aquele homem é um
criminoso e nós vamos pegá-lo!
- Que nós ? Eu e ocês ? Eu num
güento nem carregar um molho de
agrião, quanto mais correr atrás de
alguém. Ocês é que se vire!
- Mas nós temos que alcançá-lo !
- Ué, e por que não arcançaru
ainda? Ocês num tão de carro? Ele tá
a pé. Qual o pobrema?
- O problema é que... Ora, meu
senhor...
De repente, um grito no capinzal:
- Eu tô aqui, seus trouxa ! Pára de
conversa-fiada e vem me buscar !
Estupefatos, todos saíram voando na
direção do grito. O tenente, os
soldados e o capenga.
O velho balançava a cabeça
reprovando:
- São uns bando de maluco...
As botas pisavam fundo as barrentas
poças de lama amassando capinzal;
concomitantemente, frangos-d’água,
galinhas-d’angola e gaviões
acordaram o vale num estrondoso
farfalhar de asas, pios, chiados e
gritos...
- Vêm me pegá, seus bunda-suja ! –
gargalhava o peão dentro da capoeira
– Cês num intendi de genti, vai
intendê di mato ?
Dois filas, um doberman, um
rotweiller e um pitbull que
guardavam a casa grande despertaram
do seu sono rural e, curiosos,
empinaram ouvidos e narinas na
direção do vento que trazia rumores
e cheiros urbanos e partiram para
cima dos barulhentos forasteiros.
Paralelamente a esse fatídico
acontecimento inesperado, as
entonações já não mostravam tanta
gana em pegar o fugitivo. Os sons
eram outros:
- Um cobra ! – berrou um
dos soldados, a jararacuçu grudada
na sua bota.
O velho continuava a martelar sua
cerca, um riso capenga atravessando
o vazio entre os dois caninos
cariados, enquanto completava: - São
uns bunda-suja mermo.
- Socorro ! – era outro gritando,
agora o que levara o tiro. No seu
encalço, um touro preto enorme – um
pedaço de cueca vermelha num dos
chifres do boi babão.
Bruscamente, o desfecho da
perseguição:
- Cuidado ! Areia movediça !!!!
E todos estavam chafurdados naquele
monte de lama misturado com
gravetos, animais mortos, frutas
podres e folhas secas...
À margem da capoeira, o touro
bufando, os cães rosnando e o
fugitivo mordendo um galhinho de
murubu.
- Ocês sabia que aí tem jacaré do
papo amarelo daqueles grandão ?
...
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