"Minha Pátria é a Língua Portuguesa" Fernando Pessoa

 

 

Edição nº 42 - Janeiro de 2009

Editor: Carlos Leite Ribeiro

Arte Final: Iara Melo

 

 

 

 

Roceiro

 

Conto premiado no Concurso Nacional de Contos promovido pela Academia Irajaense de Letras em 2008  – Terceiro Lugar

 

 

 

 

 

 

Luiz Poeta

Luiz Gilberto de Barros


 

 

 

 


 


            O caminhão-basculante veio arrastando o mato, a poeira embaçando a grama, o barulho potente do motor importado  assustando os camaleões e lagartos, espantando os tizius, coleiras, sabiás e sanhaços.
De repente, o baque!
            Dois bezerros foram colhidos em cheio; outros saltaram a cerca de arame farpado, ferindo-se atabalhoadamente
            A caminhonete vermelha foi  parar no barranco.
            O vaqueiro chicoteou a égua baia, chegou perto, gritou para o motorista:
- Eh, cumpadre, ocê matou dois bezerro !
- Matei !? – respondeu o outro perguntando.
- Matou !
- Pois aqui não é lugar de bezerro pastar !
- É, mas ocê podia pelo menos diminuir a marcha, não carecia de correr tanto...
- Meta-se com a sua vida, seu... Eu corro onde quiser !
- Correr ocê inté pode, só num pode é matar os bicho...
- Se matei, tá matado, que se dane !
- Que se dane não, moço... Ocê tem que pagar os bicho morto, no preço justo !
- Pagar uma ova ! Quero ver quem é o macho que vai me cobrar – ameaçou.
- Pois daqui o senhor não sai. Bezerro custa caro.
- Não saio ? Vamos ver se não saio !
             O homem foi atrás do banco do carro, pegou uma barra de ferro e desceu disposto a tudo, avançando ameaçadoramente para o outro.
             O vaqueiro não se intimidou. Meteu a mão numa garrucha e disparou.
            Os dois únicos tiros que a arma suportava, pegaram numa das  pernas do motorista.
             Cambaleante, ele arrastou-se até o carro, ligou o motor estabanadamente, manobrou o carro e arremessou-o contra o vaqueiro -  que se desviou com precisão -  e saiu como um relâmpago.
            O roceiro apeou, caminhou até os dois animais ensanguentados. Uma difícil lágrima rolava-lhe discreta na face cabocla...
- Desgraçado !  - Choramingou.
    Um dos bezerros estertorava, o outro nem se movia.
- Malvado ! Nem pra andar devagar... Por que correr daquele jeito ?
             De repente, as sirenes. A viatura policial deslizava ao longe, levantando a poeira amarela da estradinha que circundava o pasto.
             O triste homem levantou-se, afagou os animais mortos, montou na égua e sumiu no meio do capinzal.
             Véi Mundim consertava a cerca que circundava a casa de madeira. Um prego na boca, outro entre os dedos, o martelo na mão.
             De repente, o rumor de cascos no barro,
            A sirene acordando o pasto, os tiros pipocando no silêncio vivo do capinzal.
  O vaqueiro vinha feito uma bala riscando o tempo, arriado sobre a cela, a égua avançando ligeira.
            Quando divisou a porteira, o animal entrou apertado no pequeno vão. O carro da polícia passou direto, estilhaçando a madeira.
             O velho estava boquiaberto; o prego semi-enterrado na primeira martelada...
             Do que jeito que vinha, o boiadeiro desmontou num salto, a bota afundou no charco, a égua foi parar logo adiante.
- Que foi, homem ? – indagou o velho.
- Depois eu conto, agora é fincar pé no mato!
            E sumiu no meio do capim-navalha.
            A viatura deu marcha a ré e dela saltaram um tenente, dois soldados e o motorista do caminhão-basculante, capengando.
             Os homens foram entrando cocheira-adentro, o pé do oficial arrebentou a taramela.
             Véi Mundim olhava-os de soslaio, por trás de uma das lentes dos óculos rachados, o cigarro de palha torto num dos cantos da boca. O martelo firme numa das mãos.
- Onde está o bandido ? – perguntou o tenente.
            O velho bateu o segundo prego, sem responder; as pupilas azuis como um céu aberto sobre o vale.
             O tenente aborreceu-se.
- Como é que é, meu senhor? Onde está o marginal ?
             O velho nada respondia. O soldado tentou segurá-lo. O martelo tornou-se um machado.
- Se chegar mais perto, eu abro sua cabeça, sordado !
             E abria mesmo, não fosse a intervenção do tenente.
- Calma, rapaz, deixe o moço. – chegou-se para o velho demonstrando atitude pacífica.
-  Amigo... aquele homem que entrou aqui correndo, baleou este moço aqui – apontou para o irritado motorista que massageava a perna atingida.
- Agora já se pode começar uma conversa... – disse o velho. De primeiro, ocê preguntô por um bandido... Que se saiba, aquele moço num é nenhum bandido...
- Bem, meu senhor...ele baleou um motorista....
- Adispois, - continuou o velho – vosmicê quis sabê de um marginá... se se refere àquele moço que sumiu no mato, também num se trata dele...
- Meu senhor, ele fez uma vítima...
             O velho não se abalou:
- Adispois ainda, o sordado raso aí tentou botar a mão ni mim... Como é que ocê ainda tem o descaramento de  fazer pregunta a uma pessoa que nunca viu mais gorda ? Seja mais educado, homem ! Cadê os estudo ? Cumpra o seu dever, mas num martrata as pessoa di bem.
  O tenente coçava a cabeça, os soldados franziam a testa, o baleado enrijecia os músculos faciais e não se conteve:
- Aquele safado me deu dois tiros !
- Eu conheço ocê  de algum lugar ? – indagou o  velho sem se abalar...
   Além do mais, se levou dois tiro, à toa é que num foi... nessas banda, ninguém leva tiro a troco de nada...
- Ora, seu... – o motorista avançou para o velho, que muniu-se de um pedaço de madeira da cerca.
- Eu acho que ocê num tá satisfeito com os dois tiro. Se me provocar, vai ter dois buraco na perna e um taio na cabeça. Vem procê vê !
- Calma, gente, vamos conversar – interrompeu o tenente.
- O que nós queremos é saber onde foi aquele moço que estava montado nesta égua aqui, o senhor poderia nos ajudar ?
- Que eu visse, se embrenhou no mato.
- Onde ?
- Ué ! É só oiá pro mato e procurá.
- Bem, o senhor vai nos mostrar onde ele está!
- Quando ele chegou aqui, eu tava pregando as tábua da minha cerquinha. Tava ainda no primeiro prego, quando ouvi toda a barulheira que ocês fizeru.
- Tudo bem, tudo bem, gritou um dos soldados! E pra onde ele foi? O senhor já está deixando a gente nervoso!
- Vem cá, me diz uma coisa... Quem é o comandante desse pelotâo? É ocê? É aquele cidadão capenga ou é o outro sordado?
- Soldado, cale-se !
- Mas eu...
- Cale-se ! Eu faço as perguntas! O tenente estava irritado.
– Meu senhor, aquele homem é um criminoso e nós vamos pegá-lo!
- Que nós ? Eu e ocês ? Eu num güento nem carregar um molho de agrião,  quanto mais correr atrás de alguém. Ocês é que se vire!
- Mas nós temos que alcançá-lo !
- Ué, e por que não arcançaru  ainda? Ocês num tão de carro? Ele tá a pé. Qual o pobrema?
- O problema é que... Ora, meu senhor...
 De repente, um grito no capinzal:
- Eu tô aqui, seus trouxa ! Pára de conversa-fiada e vem me buscar !
Estupefatos, todos saíram voando na direção do grito. O tenente, os soldados e o capenga.
O velho balançava a cabeça reprovando:
- São uns bando de maluco...
As botas pisavam fundo as barrentas  poças de lama amassando capinzal; concomitantemente, frangos-d’água, galinhas-d’angola  e gaviões acordaram o vale num estrondoso farfalhar de asas,  pios, chiados  e gritos...
- Vêm me pegá, seus bunda-suja ! – gargalhava o peão dentro da capoeira – Cês num intendi de genti, vai intendê di mato ?
Dois filas, um doberman, um rotweiller e um pitbull que guardavam a casa grande despertaram do seu sono rural e, curiosos, empinaram ouvidos e narinas na direção do vento que trazia rumores e cheiros urbanos e partiram para cima dos barulhentos forasteiros.
Paralelamente a esse fatídico acontecimento inesperado, as entonações já não mostravam tanta gana em pegar o fugitivo. Os sons eram outros:
            - Um cobra ! – berrou um dos soldados, a jararacuçu grudada na sua bota.
O velho continuava a martelar sua cerca, um riso capenga atravessando o vazio entre os dois caninos cariados, enquanto completava: - São uns bunda-suja mermo.
- Socorro ! – era outro gritando, agora o que levara o tiro. No seu encalço, um touro preto enorme – um pedaço de cueca vermelha num dos chifres do boi babão.
Bruscamente,  o desfecho da perseguição:
- Cuidado ! Areia movediça !!!!
E todos estavam chafurdados naquele monte de lama misturado com gravetos, animais mortos, frutas podres e folhas secas...
À margem da capoeira, o touro bufando, os cães rosnando e o fugitivo mordendo um galhinho de murubu.
- Ocês sabia que aí tem jacaré do papo amarelo daqueles grandão ?

...

 

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http://www.caestamosnos.org/autor/luizpoeta.htm

 

 

 

 

 

 

 

Este conto foi o segundo de 2008 em nível nacional, em que Luiz Poeta
 
foi premiado.
 
 
 
 
 
 

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