Música de Raúl Ferrão - Versos
de Norberto de Araújo
"Lisboa é sempre / Namoradeira, / Tantos derriços / Que até fazem já
fileira.
Não digas sim, / Não me digas não; / Amar é destino, / Cantar é condão
Uma cantiga, / Uma aguarela, / Um cravo aberto / Debruçado da janela /
Debruçado da janela. / Lisboa linda,
/ Do meu bairro antigo, / Dá-me o teu bracinho, / Vem bailar comigo
(Estribilho – refrão)
Lisboa nasceu / Pertinho do céu / Toda embalada na fé. / Lavou-se no rio, /
Ai, ai, ai, menina / Foi baptizada na Sé.
Já se fez mulher / E hoje o que ela quer / É trovar e dar ao pé. / Anda em
desvario / Ai. Ai. Ai, menina /
Mas que linda que ela é !.
Ó noite de Santa António ! Ó Lisboa de encantar ! / De alcachofras a florir
/ De foguetes a estoirar./
Enquanto os bairros cantarem, / Enquanto houver arraiais, / Enquanto houver
Santo António / Lisboa não morre mais.
Toda a cidade flutua / No mar da minha canção / Passeiam na rua / Retalhos
da lua / Que caem do meu balão. /
Deixem Lisboa folgar, / Não há mal que me arrefeça, / A rir, a cantar, /
Cabeça no ar, / Eu hoje perco a cabeça.
Lenda de Santo António
Diz a lenda, que numa pequena aldeia, havia uma imagem de Santo António
milagroso. Uma rapariga habitante de lá da aldeia, depois do seu casamento,
colocou nos ombros de Santo António, um manto azul bordado a ouro que
prometera. O casamento não lhe trouxe a felicidade que tanto desejara, pois
o marido era mais velho que ela e tratava-a mal. O tempo passou e o casal
acabou por ter uma menina. Com oito anos, a menina já se tinha apercebido da
infelicidade vivida entre os seus pais. Um dia, cansada de ouvir os gritos
do pai e de ver a sua mãe a chorar, resolveu dirigir-se ao nicho de Santo
António. A menina ajoelhou-se perante o santo e prometeu que se Ele tornasse
a sua família feliz, nunca lhe faltariam flores aos pés. Uns minutos mais
tarde, um homem aproximou-se dela e perguntou-lhe porque chorava,
dizendo-lhe também que tinha fome e cansaço. Sem hesitar, a menina conduziu
e acompanhou o homem até sua casa. Como de costume, o pai não gostou do
gesto da filha. O homem, vendo a situação, dirigiu-se ao pai da menina e
disse-lhe que estava a agir mal para com a mulher e a filha e que o melhor
que tinha a fazer, era ajudá-las enquanto preparavam o jantar em silêncio. O
pai da menina assim fez e quando os três voltaram da cozinha, não viram o
homem, apenas viram uma pequena e brilhante imagem de Santo António, igual á
imagem que se encontrava no nicho. Desde esse dia, por ter reinado paz
naquela casa, o homem desconhecido ficou a ser reconhecido como o Santo
António casamenteiro.
Na noite de Santo António,
É que se tomam amores,
Que está o trigo granando,
E o campo cheio de flores.
Ó meu rico Santo António,
P'ro teu altar dou dinheiro
Arranja-me um lindo par,
Pois não quero ficar solteiro.
Ó meu Padre Santo António,
Casai-me que bem podeis,
Com um moço de vinte anos,
Que eu já tenho dezasseis.
Ó meu rico Santo António
Meu Santo casamenteiro,
Casai as minhas amigas
Mas casai-me a mim primeiro.
Conhecido, carinhosamente, como Antoninho, Santo António tem fama de
casamenteiro. Dizem que as simpatias evocadas em seu nome dão certo. Claro
que tudo isso faz parte das superstições bem características do povo
brasileiro. Talvez pela mistura de raças e crenças, não sabemos, mas a
posição que temos diante dessas brincadeiras, vamos chamar assim, é a grande
necessidade das pessoas conseguirem uma fórmula para tudo na vida.
1 – Quem deseja descobrir o nome do futuro companheiro deve
comprar um facão e, à meia-noite do dia 12 de junho, cravá-lo numa
bananeira. O líquido que escorrer da planta deve formar a letra do futuro
amor.
2 – Uma das mais antigas tradições diz que, para descobrir o
futuro companheiro, é preciso escrever os nomes dos candidatos em vários
papéis. Um deles deve ser deixado em branco. À meia-noite do dia 12 de junho,
eles devem ser colocados em cima de um prato com água, que passará a
madrugada ao relento. No dia seguinte, o que estiver mais aberto indicará o
escolhido.
3 – Aqueles que têm pressa em arranjar um namorado devem comprar
uma pequena imagem do santo. E para agilizar a conquista do pedido, fazer
dois procedimentos: tirar o Menino Jesus do colo do religioso, dizendo que
só devolverá quando conseguir um namorado, ou ainda, virar o Santo António
de cabeça para baixo.
4 – O mais afoito tem ainda outro recurso. Deve ir a um casamento
e dar de presente aos noivos uma imagem de Santo António, sem o Menino
Jesus. Depois, pedir no altar para se casar com alguém, especial ou não.
Assim que a graça for alcançada, deve retornar à igreja e lá depositar a
imagem do Menino Jesus.
5 – Os que já estão acompanhados, mas ainda não subiram no altar,
também possuem práticas específicas. A pessoa deve amarrar um fio de cabelo
seu ao do namorado. Eles devem ser colocados aos pés do santo, que, logo,
logo, resolve a questão.
6 – À meia-noite do dia 12 de junho, quebre um ovo dentro de um
copo com água e o coloque no sereno. No dia seguinte, interprete o desenho
que se formou. Se aparecer algo semelhante a um vestido de noiva, véu ou
grinalda, o casamento está próximo.
7 – Para a pessoa saber se o futuro companheiro será jovem ou mais
velho, é preciso arranjar um ramo de pimenteira. De olhos fechados, ela deve
pegar uma das pimenteiras. Se a escolhida for verde, ele será jovem. Caso
contrário, o casamento acontecerá com alguém de idade avançada.
8 – A tradição popular acredita que há uma forma especial de fazer
as pazes entre casais brigados. Para isso, é preciso um cravo e uma rosa. Os
talos devem ser amarrados juntos com uma fita verde, na qual serão dados 13
nós. Durante o procedimento, o devoto deve pensar que Santo António vai
uni-los outra vez.
9 – Para descobrir se falta muitos anos para a grande data, na
véspera do dia 13 de junho, à meia-noite, amarre uma aliança – que pode ser
de qualquer parente – numa linha ou num fio. Coloque um copo sobre a mesa e
segure o fio de modo que a aliança esteja dentro do copo. Pergunte, então,
quantos anos faltam para o casório. O número de batidas informa quantos anos
ainda restam para o Dia D.
Santo António de Pádua também é conhecido como Santo António de Lisboa,
cidade em que nasceu no ano de 1195. Foi registrado e baptizado com o nome
de Fernando de Bulhões y Taveira de Azevedo. A mãe dele chamava-se Maria
Teresa de Taveiro e o pai, Martinho de Bulhões. Foi contemporâneo de são
Francisco de Assis.
António ou Fernando de Bulhões foi cónego regular em Portugal até os 25
anos, quando soube que cinco frades franciscanos tinham sido martirizados em
Marrocos por causa da tentativa de evangelizar pessoas que não tinham fé em
Deus. Conta-se que ele decidiu seguir esses religiosos, como missionário.
Ele entrou na ordem dos frades franciscanos e, pouco tempo depois, foi
enviado para a missão entre muçulmanos de Marrocos. Mas, com problemas de
saúde, foi obrigado a retornar para a Europa, vivendo na Itália, onde foi
professor e orador, visitando regiões também da França, para pregar o
Evangelho.
Dizem que António sabia de cor todos Evangelhos (são quatro: de São Mateus,
São João, São Marcos e São Lucas). Em 1231, no auge de sua missão de
pregador, foi acometido uma doença inesperada e morreu, em 13 de junho
daquele mesmo ano, aos 36 anos. Foi canonizado pelo papa Gregório IX em 30
de maio de 1232. É um santo muito popular principalmente na América Latina.
Os católicos recorrem a ele para que interceda por matrimónios e para
encontrar objectos perdidos.
Santo António de Pádua (ou de Lisboa) - Do "O Mensageiro de Santo António".
A mãe dele chamava-se Maria Teresa de Taveiro e o pai, Martinho de Bulhões.
Em 15 de agosto de 1195 foi de grande alegria para a família Bulhões quando
se anunciou: "Nasceu o Bebé. É um menino!" Todos queriam - ao menos um
pouquinho - pegá-lo ao colo. Não demorou muito e os pais levaram-no à pia
baptismal. Moravam bem perto da Catedral da Sé de Lisboa. Era só atravessar
a rua. Deram-lhe o nome de Fernando, Fernando de Bulhões. Os pais eram gente
boa, de fé cristã, de posses e também preocupada com a educação dos filhos
em todos os sentidos. Por isso, chegando à idade escolar, Fernando começou a
frequentar a Escola dos Cónegos da Catedral de Lisboa. Ali, junto com as
ciências propriamente escolares, ele teve uma profunda educação religiosa,
de acordo com o seu tempo. Seus pais, muito religiosos, seguiam-no com muito
carinho. Mas não deixaram de ficar surpresos quando, numa tarde, voltando
das aulas - já tinha 15 anos - Fernando, meio sério, meio emocionado,
disse:
- Mãe, eu vou ser padre!
À noite, quando o pai chegou e soube da conversa de Fernando com a mãe,
chamou-o de lado e lhe disse:
- Filho, você sabe o que está fazendo? Eu sempre sonhei para você carreira
militar. Você sabe: eu sou oficial do exército. A nossa família é
descendente dos primeiros cruzados que iam à Terra Santa libertar os lugares
sagrados onde Jesus viveu, morreu e ressuscitou. Por que você não segue a
carreira de Cavaleiro? Vai lhe dar muita fama. E também dinheiro, é claro.
Aliás, dinheiro não é problema. Eu pago todos os estudos que for preciso
fazer. Fernando ficou um momento em silêncio e abaixou a cabeça. Depois,
olhou para o pai, olhou para o teto da casa como que procurando as melhores
palavras para esclarecer que a sua decisão tinha sido amadurecida durante
muito tempo, a sua decisão era firme e não era nenhuma ilusão. Ficaram - pai
e filho - conversando por mais de uma hora. A mãe também entrou na conversa.
Finalmente ficou decidido que o jovem Fernando iria, no fim do Verão, entrar
para o seminário dos Cónegos Regulares de Santo Agostinho, ali mesmo, na
periferia da cidade de Lisboa, num lugar chamado São Vicente de Fora. E de
facto entrou. Foram mais ou menos 10 anos de estudos. Aliás, não só de
estudos, mas também de lutas, sacrifícios, dúvidas e tentações. Com efeito,
embora os pais não quisessem contrariar o filho, também não escondiam que
ficariam bem mais contentes (pobre pensar humano, tão distante do pensar de
Deus!) se Fernando se preparasse para ser cavaleiro, a profissão em moda na
época. Pais são sempre pais: um pouco... bastante egoístas! Querem decidir
pelos filhos. Pensam que o que eles mesmos querem é que vai fazer a
felicidade dos filhos. Um biógrafo de Santo António escrevia: "...O pai que
sonhara para este filho um luminoso futuro de cavaleiro nunca teria
imaginado que a vocação abraçada pelo filho lhe procuraria uma glória,
também terrena, que jamais teria alcançado na carreira que seu pai tanto
desejava e sonhava" (Santo António de Pádua, Pádua, 1977, p.3). Nesses
tempos - por incrível que pareça - os pais e amigos faziam força e torciam
para que Fernando desistisse do seminário. Inclusive, sendo Fernando um
jovem bonito e simpático, as moças e jovens da época assediavam-no
insistentemente com tentativas de namoricas, noivados e ... até casamento.
Foram anos difíceis para Fernando, mas anos também fecundos que o fizeram
reflectir sobre sua vocação. Foram anos que acabaram por iluminar e
fortalecer o seu querer e por levá-lo a acertar os passos. Perseverou.
Renunciou a muita coisa, e tudo para abraçar a Deus e seu serviço. Ao
terminar os estudos de filosofia, teve que tomar uma decisão: a bem de sua
vocação, para ter um pouco mais de paz e de tempo para seus estudos, de
acordo com seus superiores, deixou sua cidade natal (Lisboa) e foi para
Coimbra, naquela época capital do Reino de Portugal. Ali havia uma abadia
dos Agostinhos: o Mosteiro de Santa Cruz.
Em Coimbra, o jovem Fernando fez seus estudos de Teologia e foi ordenado
sacerdote. Foi uma festa e tanto! Pais e parentes vieram e amigos chegaram
de todas as partes para abraçar aquele jovem que estava alcançando uma etapa
importante na vida. Passados os dias de festa, Fernando continuou os estudos
e foi se especializando, sobretudo nas Sagradas Escrituras de que ele tanto
gostava. Lendo hoje os seus "Sermões",* percebe-se a sua grande profundidade
e familiaridade com a Bíblia Sagrada. Graças também, é claro, a esses anos
passados em severos estudos sob os arcos do Mosteiro de Santa Cruz de
Coimbra. Já então padre, Fernando estudava muito. Um certo dia, vêm bater à
porta do convento 5 pessoas. Este encontro haveria de marcá-lo
profundamente. Aliás, daria uma volta de 180 graus em sua vida. Eram 5
frades franciscanos: frei Otto, frei Berardo, frei Acúrsio, frei Adiuto e
frei Pedro. Estavam ali em Coimbra vindos da Itália, mandados por um tal
frei Francisco de Assis, homem mui santo, "católico e todo apostólico".
Viviam no alto de um morro ali perto, chamado Santo Antão dos Olivais (onde
até hoje há um convento em que vivem os frades menores conventuais), no meio
do mato, numa casinha humilde, preparando-se na oração e na penitência para
uma "aventura" missionária na África. Mais exactamente, iriam a Marrocos,
entre os muçulmanos para pregar o Evangelho. Levavam ainda vivas no coração
as últimas palavras do seráfico Pai Francisco: "Vão e anunciem aos homens a
paz e a penitência para o perdão dos pecados. Sejam pacientes na
perseguição, certos de que o Senhor cumprirá o seu desígnio e manterá as
suas promessas. Respondam com humildade a quem lhes perguntar, abençoem a
quem os perseguir, agradeçam a quem os injuriar e caluniar, porque em troca
nos é preparado o reino eterno". E ressoavam lhes ainda, no ouvido e na alma
as palavras que cada um, prostrado aos pés do Pobrezinho e por ele abraçado,
o ouviu dizer: "Coloque a sua confiança no Senhor e ele o haverá de
sustentar"... (1 Cel.12,29). Aqueles 5 fradinhos vieram ao Mosteiro de Santa
Cruz a fim de pedir esmola em forma de comida. Hábitos singelos, pés no
chão, simplicidade, alegria... pobreza. Tudo aquilo impressionou por demais
o padre Fernando que, imediatamente, os convidou a entrar e os levou ao
refeitório para partilharem da mesa comum. Tais encontros se repetiram
várias vezes. Fernando sempre aproveitava para pedir informações, especular
sobre a vida deles, sobre o tal frei Francisco de Assis que vivia lá na
Itália, mas cuja fama já chegara a Portugal como fundador de um grupo de
"irmãos penitentes". Algumas vezes, mais tarde, chegou até a visitá-los lá
em cima no morro de Santo Antão dos Olivais. Um dia os frades partiram.
Partiram para a África. Viu, os cinco, alegres, pés no chão a desaparecerem
na última curva da estrada que os levaria a Lisboa e, dali, para Marrocos.
Mas a imagem viva daqueles fradinhos passou dos olhos para o coração do
monge Fernando. Aquela vida, pobre e singela, alegre e cheia de simplicidade
e fé, contrastava com a sua que lhe parecia, então, tão medíocre, cómoda,
longe dos problemas do povo cristão e não cristão. Algo de novo começou a
brilhar. Primeiro, no pensamento. Depois, no coração. E o monge Fernando
passou a reflectir...
Em Fevereiro de 1220. Uma notícia corre de boca em boca por toda Coimbra. E
chega também aos ouvidos de Fernando. Cinco missionários franciscanos que
tinham ido à África, estavam de volta... mortos! Após cruéis sofrimentos,
tinham sido assassinados por pregarem o Evangelho de N.S.Jesus Cristo em
terras de África. As relíquias deles tinham sido piedosamente recolhidas
pelos cristãos e, por ordem do irmão do rei de Portugal, transportadas para
Coimbra a fim de serem veladas na Igreja de Santa Cruz, junto ao mosteiro
onde vivia Fernando. Este, ao saber da notícia, falava consigo mesmo: "Não,
não é possível! Eu os vi partirem sorridentes e alegres dois meses atrás. E
agora estão mortos! Não posso acreditar!..." Bem depressa correu ao encontro
da procissão que se aproximava da igreja, ao repicar de sinos que mais
pareciam de festa do que de luto. E lá vinham sendo transportados com
singela devoção cinco caixões trazendo os cinco corpos dos primeiros
mártires franciscanos. Fernando os acompanhou. Olhava, silencioso e
meditativo, para aqueles cinco corpos inertes mas palpitantes de uma viva
mensagem: tinham dado a vida pela fé em Jesus Cristo! Frei Otto era tão
simples e bom! Frei Berardo, o superior, sempre sorridente! Frei Acúrsio,
tão disposto e disponível para qualquer obra! Frei Adiuto, alto, magro, tão
dado à oração! Frei Pedro sempre ocupado, sempre fazendo alguma coisa! A
partir daí, algo que já anteriormente lhe brotara no coração, ia tomando
contornos mais precisos, ia começando a se delinear de forma mais clara: "Eu
também quero ser missionário. Eu também quero ser mártir. Eu também quero
derramar meu sangue por Jesus. Eu também quero pregar o Evangelho aos povos
pagãos. Não quero ficar mais aqui fechado entre as paredes do mosteiro. Mas
como?..." Esta última pergunta atormentava a mente e o coração de Fernando.
"Mas como?"...
Um dia, vieram bater à porta do mosteiro os franciscanos de Santo Antão dos
Olivais. Fernando aproveitou então para abrir-lhes a mente e o coração e
revelar-lhes um sonho que há meses vinha acariciando: ele queria ser
missionário, queria pregar o evangelho de N.S.Jesus Cristo a povos que não O
conhecessem. Possivelmente em Marrocos, para onde eles tinham-se dirigido e
de onde tinham voltado como mártires da fé. Para tanto Fernando
interrogava-os sobre a possibilidade de se tornar franciscanos, a fim de
realizar esse seu projecto. Foram dias de muito diálogo, de muitas
dificuldades, de muitos problemas, interiores e exteriores. O próprio
superior do Mosteiro de Santa Cruz não entendia aquela atitude de Fernando.
No fim, porém, convencido da sinceridade e lealdade do jovem monge, deu -
lhe a licença pedida. Fernando vestiu o hábito franciscano e abandonou para
sempre o mosteiro de Santa Cruz. Então, deixou o nome civil de Fernando e
passou a chamar-se António. Era o início de uma vida nova. Meio desapontado,
sem nem mesmo saber o que dizer, frei António despediu-se dos frades e
daquele grupinho de cristãos africanos tão simpáticos, alegres e
prestativos. Subiu ao navio que deveria atravessar o Mar com destino a
Lisboa. Mudo, a contemplar o movimento ondulado das águas, enquanto a
embarcação se afastava do porto, seu olhar ia longe, para além daquela
paisagem de casinhas brancas do litoral à sua frente.
"Será que acabou tudo para mim?", perguntava-se.
E fez-se noite. Frei António retirou-se para descansar. A viagem seguiu
tranquila por vários dias. Já estavam acima da cidade de Tanger, às portas
do Estreito de Gibraltar, diante do Mar Mediterrâneo, quando uma violenta
tempestade de vento, seguida de trovões e uma chuva torrencial, levou a
frágil embarcação à deriva. O capitão, marinheiro hábil e experiente, deu
ordens para que a nau se dirigisse ao largo, evitando aproximar-se da costa
para não bater contra as rochas do litoral. E assim foi-se o navio, mar
Mediterrâneo adentro, qual casca de noz levada a solavancos pelas águas
agitadas do oceano bravio. Por vários dias ficaram à mercê das ondas. Mais
um fato que deixava frei António intrigado com o plano de Deus! Mais uma vez
ele se vê à beira da morte, no perigo quase certo de ser agora tragado pelas
ondas do mar. Como se sentiu pequenino diante do gigantesco poder do mar! E
como saiu espontâneo do profundo íntimo do seu ser: "Senhor, ajudai-me.
Senhor, ajudai-nos!". Todos, viajantes e tripulação, estavam apavorados. Até
os marinheiros mais velhos e experientes juravam jamais ter visto tempestade
semelhante. Frei António - já perturbado por tantos fatos, que nós chamamos
sinistros, acontecidos nos últimos meses de sua vida, - ainda conseguia ter
forças para aconselhar, animar e a acalmar os companheiros de viagem. Grande
foi o alívio quando, ao amanhecer do dia, o sol começou a aparecer na linha
do horizonte e as águas, mansas de novo, a se oferecerem de espelho para o
astro rei. Maior foi a alegria quando puderam divisar ao longe os contornos
de um porto e de uma cidade. Um grito de júbilo saiu do peito de todos os
passageiros. O dia tinha serenado e envolvia na mesma paz as águas
verde-profundas do oceano. O navio deslizava mansamente como se estivesse
chegando à própria casa. Só que ele não chegara à Espanha. Menos ainda a
Portugal. Batido pelo vento, levado pelas correntezas marítimas, chegara às
costas da Ilha da Sicília, na Itália. O navio tinha atravessado - sem
perceber - quase todo o Mar Mediterrâneo. Tendo chegado sãos e salvos ao
porto de Milão, todos davam graças a Deus. Sentiam-se renascidos. Também
frei António. Estavam em terra firme, mas... em terra estrangeira.
No início de abril de 1221, a primavera
italiana - na Sicília - estava extremamente generosa: flores, sol e o povo a
cantar e a receber carinhosamente os passageiros salvos da tempestade. Frei
António, em italiano misturado ao português, informa-se e, mais ou menos,
fica sabendo que não muito longe dali, na cidade chamada Messina, havia um
convento de franciscanos. Aproveitando da bondade de uma família que o
acolhera gentilmente, pegou seu alforje e partiu rumo à casa religiosa. Foi
uma bênção do céu. Frei António contou toda sua história desde Coimbra até a
África e depois a tempestade, talvez mais com gestos do que com palavras,
pois ainda não sabia o italiano, que aos poucos, sobretudo, nas regiões mais
longínquas, ia se afastando do latim, língua dos centros mais cultos. Os
frades o acolheram como irmão e como novo membro da comunidade. À medida em
que os dias iam passando, ele sentia que também as forças lhe voltavam. Um
dia, durante a refeição, frei António ouviu que o Seráfico Pai Francisco,
voltando de uma longa viagem, havia convocado para Assis os frades de todas
as partes do mundo de então. Era o assim chamado Capítulo da Ordem. Iria se
realizar em fins de maio, na festa de Pentecostes. António até parou de
comer. Uma sensação de alegria tomou conta de seu íntimo. "Que lindo!",
dizia para si mesmo. "Poder encontrar-me com os frades do mundo inteiro!...
Com Francisco de Assis!... É uma graça grande demais!..." António não podia
perder a ocasião. O entusiasmo que a notícia-convite lhe despertou fê-lo
sentir-se também plenamente restabelecido da saúde. Queria ir até Assis. A
pé. Os frades, porém, mais prudentes, aconselharam-no a ir, juntamente com o
superior mais ancião, de navio, saindo de Messina, passado por Napolis e até
Anzio. Contra a vontade, frei Antônio aceitou, contando que fosse a Assis.
Os demais frades, mais ou menos 20 dias. Tal era o costume da gente pobre
daquele tempo. E assim aconteceu.... Tudo tinha sido tão inesperado. Tão de
repente. Frei António, no final da grande reunião dos frades chamada
Capítulo das Esteiras, estava sozinho, num canto de sua cabana, pensativo e
meditando sobre o que tinha acontecido naqueles dias. De repente, ele sente
alguém puxar-lhe pela manga do hábito. Gira-se e vê frei Graciano, Superior
dos frades da região de Romana que, com delicadeza, lhe pergunta o nome, a
proveniência, seus planos. E frei António, resumidamente, lhe conta sua
história de monge ... frade ... desejo de martírio ... doença...
tempestade... desembarque na Sicília.
- E os seus planos?, pergunta frei Graciano.
- Planos? responde frei António. Na verdade, eu não tenho plano nenhum.
Sinto-me bastante confuso. Eu queria mesmo é ser mártir da fé na África.
Fracassei... e agora nem sei o que fazer, para dizer a verdade.
- Eu sei!, atalhou frei Graciano.
- Mas eu não conheço o povo daqui, não sei direito a língua, começou a
objectar frei António.
- Você é padre? Perguntou frei Graciano.
- Sou. Pela graça de Deus eu sou sacerdote.
- Então, para alguma coisa você serve. Se chegou a ser padre, você vai
conseguir também conhecer a gente daqui, os costumes, a língua... Já sei!
Você vai comigo para a minha Província da Romania.
E sem que frei António pudesse esboçar um... ali !, o superior, em voz alta,
a seus frades que naquele momento o estavam procurando para combinarem
juntos o dia da volta, foi dizendo:
Irmãos! Olhem aqui o que nós ganhamos: mais um frade para nossa família!
No mesmo instante, frei António se viu rodeado e abraçado por uns dez frades
numa algazarra digna de velhos conhecidos.
No dia seguinte todos deixaram a planície de Assis e se dirigiram ao norte,
rumo a Romania, nos montes Apeninos. Durante a caminhada sempre a pé - a
amizade entre os frades e Frei António foi crescendo. Sabendo que ele era
padre, seis frades que moravam num pequeno convento em cima de um morro -
hoje o famoso convento de Monte Paulo - perto da cidade de Forli - pediram
ao superior que deixasse frei António ir morar com eles, ao menos para rezar
a missa. Frei Graciano, o superior, que durante a viagem vinha pensando o
que fazer com aquele frade que lhe parecera tão tímido e medroso,
desengonçado e inculto, aquiesceu imediatamente.
Para lá foi frei António. Como já dissemos, o convento situava-se num lugar
solitário, em cima do Monte Paulo, a uns 400 metros de altura, no meio de um
bosque de pinheiros, onde havia muitas grutas de pedra. Os frades ocupavam a
maior parte do dia e da noite na oração, mas não deixavam de cultivar a
terra cuidando da horta, do jardim e da criação de alguns animais
domésticos. E frei António entra no mesmo ritmo de vida: reza, cuida dos
animais, trabalha na horta e no jardim. De manhãzinha, ao despontar do sol,
celebra a missa para os frades. E, por certo período, tem tempo suficiente
para se retirar a uma gruta e se dedicar à contemplação, à oração - leva
sempre consigo um pedaço de pão e uma vasilha de água e, às vezes, nem com
isso se alimenta. Mais de uma vez - apesar das recomendações do superior -
os frades o encontram caído no chão. Certamente pelo jejum e peIas vigílias.
Mas ele sempre se reanima, sorri, diz que não é nada e retoma a vida normal
quase procurando esconder - e como conseguiu! - seus dotes de contemplação,
de oração e de união com Deus.
Entre as suas andanças na pregação da palavra de Deus, Santo Antônio chegou
um dia à cidade de Rímini. Sua fama já o havia precedido naquele lugar. Mas
Rímini era também uma cidade de hereges, isto é, de gente que não gostava da
Igreja Católica e ensinava ao povo muitas doutrinas contrárias. Era
justamente o caso dos Cátaros, de quem já falamos mais acima. Eles se
sentiam bastante fortes naquele lugar: convenceram o povo a não ir escutar
as palavras daquele "freizinho a toa". E o povo foi na onda. Na praça da
Catedral, onde era costume fazer-se pregações, havia pouquíssima gente,
algumas pessoas mais corajosas, que não tinham se deixado amedrontar pelos
hereges Cátaros. Frei António conversou um pouco com eles e disse que viria
no dia seguinte. Alguns quiseram dissuadi-lo de pregar ali porque o clima
estava pesado e os hereges estavam dispostos a tudo. Inclusive, mais tarde,
sabemos que o padre Aldebrando, depois bispo de Fossombrone, teve que fugir
para a torre da igreja, ficar lá meio dia e sair de mansinho pelos fundos
para não ser morto pelo povo bem pouco cordial. Combinado o horário do dia
seguinte e incentivando as pessoas a convidarem mais outras, frei António
voltou para casa. Passou a noite inteira em oração pensando o que iria
falar, como iria fazer a pregação... No outro dia encontrou, além das
pessoas do dia anterior, outras pessoas ainda, mas desta vez, os próprios
hereges. E ali, por vários dias, teve várias discussões com eles sobre Jesus
Cristo, sobre a Bíblia, etc., sobre tudo aquilo que expusemos acima e que
constituía o modo de pensar dos Cátaros. Não houve jeito. Mais António
falava, explicava, rebatia, mais eles ficavam duros, empedernidos e... não
quiseram mais ouvi-lo. Um dia, frei António - certamente por inspiração
divina - foi caminhar à beira do mar (o Mar Adriático) na foz do Rio Marecchia. Algumas pessoas o acompanhavam. De repente, frei António pára,
ergue as mãos e grita com voz forte olhando para as águas: "Ouçam a palavra
de Deus, vocês, peixes do mar e do rio".
- Ele está doido, sussurrou alguém.
- Eu acho que sim, respondeu um outro.
Mas qual não foi o espanto de todos quando viram...
Vamos acompanhar o relato deste fato como no-lo apresentam os "Fioretti" no
sabor original de seu linguajar franciscano. É o capítulo 40 do livro, pg.
1160ss das Fontes Franciscanas, Ed. Vozes, 1981.
"Querendo Cristo bendito demonstrar a grande santidade do seu fidelíssimo
servo Santo António, e como devotamente devia ser ouvida sua pregação e sua
doutrina santa, pelos animais irracionais, uma vez entre outras, isto é,
pelos peixes, repreendeu a insensatez dos infiéis heréticos, como
antigamente no Antigo Testamento, pela boca da jumenta repreendera a
ignorância de Balaão. Pelo que, estando uma vez Santo António em Rímini,
onde havia grande multidão de heréticos, querendo conduzi-los ao lume da
verdadeira fé e ao caminho da verdade, por muitos dias lhes pregou e
disputou sobre a fé cristã e a santa Escritura; no entanto eles não
consentindo em suas santas palavras e mesmo como endurecidos e obstinados
não querendo ouvi-lo, Santo António, um dia, por divina inspiração,
dirigiu-se à foz do rio junto do mar e estando assim na praia entre o mar e
o rio, começou a dizer a modo de prédica, da parte de Deus, aos peixes:
'Ouvi a palavra de Deus, vós, peixes do mar e do rio, pois que os infiéis
heréticos esquivam-se de ouvi-Ia'. E dito que foi, subitamente aproximou-se
dele na praia tal multidão de peixes grandes, pequenos e médios, como nunca
naquele mar e naquele rio foi vista outra multidão tão grande, e todos
tinham a cabeça fora da água e todos estavam atentos para a face de Santo
António e todos em grandíssima paz ; porque na frente e mais perto da praia
estavam os peixinhos menores e atrás deles estavam os peixes médios; depois
ainda mais atrás onde era a água mais profunda estavam os peixes maiores.
Estando pois em tal ordem e disposição colocados os peixes, Santo António
começou a pregar solenemente e a dizer assim: 'Meus irmãos peixes, muito
obrigados estais segundo a vossa possibilidade, a agradecer ao nosso criador
que vos deu tão nobre elemento para vossa habitação, porque como for do
vosso agrado, tendes água doce e salgada; deu-vos muitos refúgios para
fugirdes das tempestades; deu-vos ainda elemento claro e transparente e
comida pelo qual podeis viver. Deus vosso criador cortês e benigno quando
vos criou, deu-vos o mandamento de crescentes e multiplicardes e deu-vos a
sua bênção; pois quando foi do dilúvio geral, todos os outros animais
morrendo, a vós somente Deus conservou sem dano. E ainda vos deu barbatanas
para irdes aonde for do vosso agrado. A vós foi concedido por ordem de Deus
conservar Jonas e depois do terceiro dia lançá-lo em terra são e salvo.
Oferecestes o censo a Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual como pobrezinho não
tinha com que pagar. Depois servisses de alimento ao eterno rei Jesus Cristo
antes e depois da ressurreição, por singular mistério. Pelas quais coisas
todos muito deveis louvar e bendizer a Deus que vos deu tantos e tais
benefícios mais do que às outras criaturas'. A tais e semelhantes palavras e
ensinamentos de Santo António começaram os peixes a abrir as bocas e
inclinar as cabeças e com estes e outros sinais de reverência, segundo o
modo que puderam, louvaram a Deus. Então Santo António, vendo tanta
reverência dos peixes para com Deus Criador, rejubilando-se em espírito, em
alta voz disse: 'Bendito seja Deus eterno porque mais o honram os peixes
aquáticos do que os homens heréticos e melhor escutam a sua palavra os
animais do que os homens infiéis'. E tanto Santo António mais pregava quanto
a multidão dos peixes mais crescia e nenhum se partia do lugar que ocupara.
A este milagre começou a ocorrer o povo da cidade, vieram mesmo os
sobreditos heréticos. Os quais, vendo milagres tão maravilhosos e
manifestos, compungidos em seus corações, todos se lançaram aos pés de Santo
António para ouvir-lhe a prédica. Então, Santo António começou a pregar
sobre a fé católica e tão nobremente pregou que a todos aqueles hereges
converteu e os fez voltar à verdadeira fé cristã; e todos os fiéis ficaram
com grandíssima alegria, confortados e fortificados pela fé. Feito isso,
Santo António despediu os peixes com a bênção de Deus e todos se partiram
com maravilhosos actos de alegria e do mesmo modo o povo. E depois Santo
António esteve em Rímini por muitos dias pregando e fazendo muito fruto
espiritual de almas.
Quanto ao primeiro milagre - Santo António prega aos peixes - reza a lenda
que estando a pregar aos hereges em Rimini, estes não o quiseram escutar e
viraram-lhe as costas. Sem desanimar, Santo António vai até à beira da água,
onde o rio conflui com o mar, e insta os peixes a escutá-lo, já que os
homens não o querem ouvir. Dá-se então o milagre: multidões de peixes
aproximam-se com a cabeça fora de água em atitude de escuta. Os hereges
terão ficado tão impressionados que logo se converteram. este milagre
encontra-se citado por diversos autores, tendo sido mesmo objecto de um
sermão do Padre António Vieira que é considerado uma das obras-primas da
literatura portuguesa.
Trabalho e pesquisa de Carlos Leite Ribeiro - Marinha Grande - Portugal