São Pedro
(segundo a tradição teria morrido em cerca de 67 d.C.) e foi um dos doze
Apóstolos de Jesus Cristo, como está escrito no Novo Testamento e, mais
especificamente, nos quatro Evangelhos.
Nome e importância
O seu nome original não era Pedro, mas Simão. Nos livros dos "Actos dos
Apóstolos" e na "Segunda Epístola de Pedro", aparece ainda uma variante
grega do seu nome original: Simeão. Cristo apelidou-o de Petros - Pedro,
nome grego, masculino, derivado da palavra "petra", que significa "Pedra" ou
"rocha". O Apóstolo São Paulo designava-o pelo nome de Cephas, Kephas, Kepha
ou Cefas que em aramaico significa o mesmo - note-se, aliás, que,
provavelmente, Cristo falava principalmente aramaico, logo terá sido essa a
designação dada a Simão e não a versão grega que ficou para a posteridade.
Pedro tem uma importância central na teologia católico-romana. É considerado
o príncipe dos apóstolos e o fundador, junto com São Paulo, da Igreja de
Roma (a Santa Sé), sendo-lhe reconhecido ainda o título de primeiro Papa (um
tanto anacronicamente, posto que tal designação só começaria a ser usada
cerca de dois séculos mais tarde – Pedro foi o primeiro bispo de Roma); essa
circunstância é invocada pela Igreja Católica para que o Papa detenha uma
posição de supremacia sobre toda a Igreja Católica. Para as outras
denominações cristãs, Pedro também recebe uma grande importância, por causa
de suas epístolas canónicas, porém não recebe o mesmo tipo de tratamento da
Igreja Católica.
Dados biográficos
Antes de se tornar um dos doze discípulos de Cristo, Simão Pedro era
pescador. Teria nascido em Betsaida e morava em Cafarnaum. Segundo o relato
no Evangelho de São Lucas 5:1-11, Pedro terá conhecido Jesus quando este lhe
pediu que utilizasse uma das suas barcas, de forma a poder pregar a uma
multidão de gente que o queria ouvir. Pedro, que estava a lavar redes com
São Tiago e João, seus sócios, concedeu-lhe o lugar na barca que foi
afastada um pouco da margem. No final da pregação, Jesus disse a Simão Pedro
que fosse pescar de novo com as redes em águas mais profundas. Pedro diz-lhe
que tentara em vão pescar durante toda a noite e nada conseguira mas, em
atenção ao seu pedido, fá-lo-ia. O resultado foi uma pescaria de tal monta
que as redes iam rebentando, sendo necessária a ajuda da barca dos seus dois
sócios, que também quase se afundava puxando os peixes. Numa atitude de
humildade e espanto Pedro prostrasse perante Jesus e diz para que se afaste
dele, já que é um pecador. Jesus encoraja-o, então, a segui-lo, dizendo que
o tornará "pescador de homens".
De acordo com os Evangelhos, Simão foi o primeiro dos discípulos a professar
a fé de que Jesus era o filho de Deus. É esse acontecimento que leva Jesus a
chamá-lo de Pedro - a pedra basilar da nova crença. Encontramos o relato do
evento no Evangelho de São Mateus 16:13-23: Jesus terá perguntado aos seus
discípulos (depois de se informar do que sobre ele corria entre o povo): "E
vós, quem pensais que sou eu?"; ao que Pedro respondeu "És o Cristo, Filho
de Deus vivo". Jesus ter-lhe-á dito, então: "Simão, filho de Jonas, és um
homem abençoado! Pois isso não te foi revelado por nenhum homem, mas pelo
meu Pai, que está no céu. Por isso te digo: tu és Pedro, e sobre esta pedra
edificarei a minha Igreja, e o poder da morte não poderá mais vencê-la.
Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu, e o que ligares na terra será ligado no
céu, e o que desligares na terra será desligado no céu". É por esta razão
que São Pedro é, geralmente representado com chaves na mão e a tradição
apresenta-o como porteiro do Paraíso.
Os evangelhos referem-no muitas vezes (mais que a qualquer outro dos
discípulos). Conta-se no Evangelho de São Mateus 26:30-35 que Jesus, no
Monte das Oliveiras, antes de ser preso, nessa noite, revelou que os seus
discípulos seriam dispersados, abandonando-o. Pedro assegura que nunca o
abandonaria. Jesus declara-lhe: "Garanto-te que esta noite, antes que o galo
cante, me negarás três vezes". Pedro insiste na sua fidelidade. Mais tarde,
segundo o mesmo Evangelho, 26:69-75, Pedro, que observava de longe o
julgamento de Jesus no átrio do sumo sacerdote Caifás, ao ser apontado como
um dos seguidores de Cristo por várias pessoas, nega Cristo por três vezes,
tal como fora predicto. Quando o galo canta, Pedro lembra-se do que lhe fora
profetizado por Jesus e chora de arrependimento.
No capítulo 21 do Evangelho de São João, é relatado que Cristo,
ressuscitado, depois de perguntar repetidas vezes a Pedro se este o ama, lhe
diz: "Cuida da minhas ovelhas. Em verdade te digo: quando eras mais novo,
cingias o cinto e ias para onde querias. Quando fores mais velho, estenderás
as mãos e será outro a cingir-te o cinto, levando-te para onde não queres.",
o que indica que terá sido martirizado pela crucificação. Clemente de Roma,
cerca de 95 d. C., alude ao martírio de Pedro, que sofreu inúmeras
tribulaçoes e que, como Paulo, teria dado testemunho. Uma tradição um tanto
quanto insegura, porém pitoresca, conta que, sendo o primeiro bispo de Roma,
Pedro foi exortado pela comunidade romana a fugir da cidade onde os cristãos
eram perseguidos e executados no Circo de Nero. No caminho encontra Jesus
Cristo (na forma de um homem transportado na irradiação solar, segundo o
romance de Henryk Sienkiewicz, "Quo Vadis?"). Ao perguntar a Jesus "onde
vais, Senhor?" ("Quo Vadis, Domine?"), este responde-lhe que vai para Roma,
para ser martirizado com as suas ovelhas que foram abandonadas. Pedro,
arrependido, volta para Roma e entrega-se às autoridades que o crucificam.
Diz a tradição que exigiu que fosse crucificado de pernas para o ar, já que
não se considerava digno de morrer da mesma forma que Cristo.
Os seus textos
O Novo testamento inclui duas epístolas (cartas) cuja autoria é atribuída a
Pedro: A "Primeira epístola de São Pedro e a Segunda epístola de São Pedro.
Alguns académicos duvidam que Pedro tivesse conhecimentos de grego tão
aprofundados que lhe permitissem escrever as cartas com aquele estilo e
qualidade linguística (o que, em termos de pura fé, seria perfeitamente
normal já que durante o Pentecostes, como é referido nos "Actos dos
Apóstolos", o Espírito Santo teria dado aos apóstolos a faculdade de "falar
línguas"). Entretanto há quem opine que terão sido escritas por um
secretário ("amanuensis"), enquanto outros dizem que terá sido um seu
discípulo, após a sua morte.
São Pedro, segundo o catolicismo
De acordo com a doutrina Católica e Ortodoxa, o apóstolo Pedro, depois de
ter exercido o episcopado em Antioquia, tornou-se o primeiro bispo de Roma.
Segundo os católicos e ortodoxos, depois de solto da prisão em Jerusalém, o
apóstolo viajou até Roma e aí ficou até ser expulso com os judeus e cristãos
pelo imperador Claúdio, época em que voltou a Jerusalém e participou da
reunião de apóstolos sobre os rituais judeus no chamado Concílio de
Jerusalém. Após esta reunião, ficou em Antioquia (como o seu companheiro de
ministério, Paulo, afirma em sua carta aos gálatas) e, depois de passar por
várias cidades, inclusive, segundo o bispo São Dionísio, por Corinto, na
Acaia, retornou a Roma e morreu aí entre 64 e 67 d.C.
Além de várias comprovações históricas, a Igreja Católica e a Igreja
Ortodoxa têm como prova bíblica desta sua estadia em Roma a 1ª carta do
próprio Pedro, em que diz: "a Igreja que está em Babilônia vos saúda, assim
como o meu filho [ajudante] Marcos" (capítulo 5, verso 13). Na opinião quase
unânime de estudiosos, a "Babilónia" é, na verdade, a cidade de Roma (uma
vez que, por temer que os soldados descobrissem sua morada nesta cidade,
Pedro preferiu chamar Roma com o pseudónimo "Babilónia", assim como outro
livro bíblico, o Apocalipse de João, também o faz).
A comunidade de Roma, para os católicos, assim como para os ortodoxos, foi
fundada e ensinada pelos apóstolos Pedro e Paulo e é considerada a única
comunidade cristã do mundo fundada por mais de um apóstolo e a única do
Ocidente instituída por um deles. Por esta razão, os católicos crêem que a
comunidade de Roma (chamada actualmente de Santa Sé) tem o primado sobre
todas as outras comunidades locais (dioceses) e o seu bispo (denominado
também de "papa") é respeitado como o pastor universal da Igreja Católica,
cabendo-lhe direitos e deveres para com todos os fiéis católicos. De acordo
com eles, o ministério de Pedro continua sendo exercido até hoje pelo papa,
assim como o ministério dos outros apóstolos é cumprido pelos outros bispos
unidos a ele, que é a cabeça do colégio episcopal (conjunto dos bispos
católicos). A sucessão petrina (papal) começa com São Lino, em 67, e
actualmente é exercida pelo papa Bento XVI.
São Pedro, segundo a arqueologia
A partir dos anos 50 intensificaram-se as escavações no subsolo da Basílica
de São Pedro, lugar tradicionalmente reconhecido como provável túmulo do
apóstolo e próximo de seu martírio no muro central do Circo de Nero. Após
extenuantes e cuidadosos trabalhos, inclusive com remoção de toneladas de
terra que datava do corte da Colina Vaticana para a terraplanagem da
construção da primeira basílica na época de Constantino, a equipe chefiada
pela arqueóloga italiana Marguerita Guarducci encontrou o que seria uma
necrópole atribuída a São Pedro, inclusive uma parede repleta de grafitos
com a expressão "hic est Petrus", que, em latim, significa "aqui está
Pedro".
Também foram encontrados, em um nicho, fragmentos de ossos de um homem
robusto e idoso, entre 60-70 anos, envoltos em restos de tecido púrpura com
fios de ouro que se acredita, com muita probabilidade, serem de São Pedro. A
data real do martírio, de acordo com um cruzamento de datas feito pela
arqueóloga, seria 13 de Outubro de 64 d.C. e não 29 de junho, data em que se
comemorava o traslado dos restos mortais de São Pedro e São Paulo para a
estada dos mesmos nas Catacumbas de São Sebastião durante a perseguição do
imperador romano Valeriano em 257 d.C.
Sermão de São Pedro - do Padre António Vieira
Pregado em Lisboa, em S. Julião, no ano de 1644, à venerável congregação dos
sacerdotes
Mui seguro está do seu valor quem tira a sua opinião ao campo. E se é
temeridade tomar-se com muitos, com todo o mundo se tomou quem desafiou sua
fama. Na ocasião de que fala S. Mateus (cujo é o Evangelho que hoje nos
propõe a Igreja) diz que perguntou Cristo, Senhor nosso, que diziam dele os
homens: Quem dicunt homines esse Filium hominis?
Perguntou o Senhor, para que os senhores que mandam o Mundo se não
desprezem de perguntar. Se pergunta a sabedoria divina, porque não
perguntará a ignorância humana? Mas esse é o maior argumento de ser
ignorância. Quem não pergunta, não quer saber; quem não quer saber, quer
errar. Há porém ignorantes tão altivos, que se desprezam de perguntar, ou
porque presumem que tudo sabem, ou porque se não presuma que lhes falta
alguma cousa por saber. Deus guie a nau onde estes forem os pilotos.
Não perguntou o Senhor o que era, senão o que se dizia: Quem dicunt?
Antes de se fazerem as cousas, há-se de temer o que dirão; depois de
feitas, há-se de examinar o que dizem. Uma cousa é o acerto, outra o
aplauso. A boa opinião de que tanto depende o bom governo, não se forma do
que é, senão do que se cuida; e tanto se devem observar as obras próprias,
como respeitar os pensamentos e línguas alheias. A providência com que Deus
permite a murmuração, é porque talvez de tão má raiz se colhe o fruto da
emenda. E se eu de murmurado me posso fazer aplaudido, porque me não
informarei do que se diz?
Respondendo os Discípulos à questão, referiram os pareceres ou ditos do
povo a respeito da pessoa de Cristo. Eram do povo, claro está que haviam de
ser errados: Alii Joannem Baptistam, alii autem Eliam, alii vero Jeremiam,
aut unum ex prophetis: «Uns diziam que era o Baptista, outros que era Elias,
outros que era Jeremias, ou algum dos profetas antigos». Antigos não disse
São Mateus, mas advertiu-o S. Lucas: Unus propheta de prioribus surrexit.
Grande é o ódio que os homens têm à idade em que nasceram. Não diziam que
era um profeta como os antigos, senão um deles: Unus de prioribus. Pois
assim como antigamente houve também profetas, não poderia também agora haver
um? Cuidam que não. Por melhor milagre tinham ressuscitar um dos profetas
passados, que nascer em seu tempo outro como eles. Tudo o moderno desprezam,
só o antigo veneram e acreditam. E porque a Cristo lhe não podiam negar a
sabedoria, fingiam-lhe a antiguidade. Ora desenganem-se os idólatras do
tempo passado, que também no presente pode haver homens tão grandes como os
que já foram, e ainda maiores: Cristo passava pouco dos trinta anos, e tudo
o que souberam os antigos e antiquíssimo, era aprendido dele.
E vós, Discípulos meus (continua o Senhor), vós que não sois povo e
estudais na minha escola, quem dizeis que sou eu?:Vos autem quem me esse
dicitis? Estas são as palavras que tomei por tema e ficam para o discurso.
Respondeu a elas, por todos, S. Pedro: Tu es Christus, Filius Dei vivi:
«Vós, Senhor, sois Cristo, Filho de Deus vivo». Aludiu primeiramente aos
deuses dos Gentios, que eram estátuas mortas. Queira Deus que entre os
Cristãos não haja também estes ídolos. Não sendo mais que umas estátuas,
querem que os adoremos como deuses. Mas além desta alusão, ainda subiu mais
alto o pensamento de S. Pedro. Cristo é Filho de Deus, e nós também somos
filhos de Deus: Dedit eis potestatem Filios Dei fieri. Em que se distingue
logo Cristo de nós? Em que Cristo é Filho de Deus vivo, nós somos filhos de
Deus morto. Cristo Filho de Deus vivo, porque Deus, que é imortal, o gerou
ab æterno; nós filhos de Deus morto, porque o mesmo Cristo, morto nos braços
da cruz, foi o que nos gerou de novo e nos deu este segundo e mais sublime
nascimento.
Não tinha S. Pedro bem acabado a confissão da sua fé quando o Senhor lha
premiou com a certa esperança da maior dignidade. Ele disse a Cristo o que
era, e Cristo disse-lhe a ele o que havia de ser:
Et ego dico tibi, quia tu es Petrus, et super hanc petram ædificabo
ecclesiam meam: «E eu te digo, Pedro, que tu és Pedro, e sobre esta pedra
hei-de fundar a minha Igreja». De tal maneira obra Deus com a sua e suma
sabedoria, que parece se emenda com a experiência. Arruinou-se-lhe a
primeiro edifício, porque o fundou em um homem de barro; para que lhe não
arruíne o segundo, funda-o em um homem de pedra. Retrata-se do que tem
feito, Deus, que não pode errar; e os homens estão tão namorados de seus
erros, que antes os vereis obstinados, que arrependidos. Dirão que é timbre
este de entendimentos angélicos, porque nenhum anjo errou que se retratasse.
Eu digo que não é senão contumácia de entendimentos diabólicos, porque
nenhum anjo errou, que não fosse demónio.
Todos os demónios do Inferno, diz Cristo que não prevalecerão contra
sua Igreja: Portæ inferi non prævalebunt adversus eam. E porque não basta
estarem as portas inimigas defendidas, se as próprias não estiverem seguras,
à fidelidade de Pedro cometeu o Senhor as chaves do seu Reino: Tibi dabo
claves regni cælorum. Primeiro lhe chamou homem de pedra e depois lhe
entregou as chaves, porque as chaves do Reino só em homens de pedra estão
seguras. Os homens de barro quebram, os de pau corrompem-se, os de vidro
estalam, os de cera derretem-se; tão duro e tão constante há-de ser como uma
pedra, quem houver de ter nas mãos as chaves do Reino: Tu es Petrus, tibi
dabo claves.
E qual há-de ser o ofício ou o exercício destas chaves? Fechar e abrir?
Não diz isso o Senhor. As chaves que abrem e fecham, podem abrir para dentro
e fechar para fora. Por isso vemos os tesouros tão estreitos e tão fechados
para os outros, e tão largos e tão abertos para os que têm as chaves. Que
havia logo de fazer com elas S. Pedro? Atar e desatar, diz Cristo:
Quodcumque ligaveris, erit ligatum: quodcumque solveris, erit solutum. A
peste do governo é a irresolução. Está parado o que havia de correr, está
suspenso o que havia de voar; porque não atamos, nem desatamos. Não debalde
escolhe Cristo para o governo da sua casa um homem tão resoluto como Pedro.
Se Cristo lhe não mandara embainhar a espada, bem necessárias lhe eram as
ataduras para as feridas. Assim há-de ser quem há-de obrar, e não homens que
nem atam, nem desatam.
Aqui pára a história do Evangelho: para passarmos ao discurso, peçamos
a graça: Ave Maria.
II
Vos autem quem me esse dicitis?
Suposto andarem tão válidas no púlpito e tão bem recebidas do auditório
as metáforas, mais por satisfazer ao uso e gosto alheio, que por seguir o
génio e ditame próprio, determinei na parte que me toca desta solenidade,
servir ao Príncipe dos Apóstolos também como uma metáfora. Busquei-a
primeiramente entre as pedras, por ser Pedro pedra, e ocorreu-me o diamante;
busquei-a entre as árvores, e ofereceu-se-me o cedro: busquei-a entre as
aves, e levou-me os olhos a águia: busquei-a entre os animais terrestres, e
pôs-se-me diante o leão; busquei-a entre os planetas, e todos me apontaram
para o Sol; busquei-a entre os homens, e convidou-me Abraão; busquei-a entre
os anjos, e parei em Miguel. No diamante agradou-me o forte, no cedro o
incorruptível, na águia o sublime, no leão o generoso, no Sol o excesso da
luz, em Abraão o património da Fé, em Miguel o zelo da honra de Deus. E
posto que em cada um desses indivíduos, que são os mais nobres do Céu e da
Terra, e em cada uma de suas prerrogativas achei alguma parte de S. Pedro,
todo S. Pedro em nenhuma delas o pude descobrir. Desenganado pois de não
achar em todos os tesouros da natureza alguma tão perfeita, de cujas
propriedades pudesse formar as partes do meu panegírico, (que esta é a
obrigação da metáfora) despedindo-me dela e deste pensamento, recorri ao
Evangelho para mudar de assunto; e que me sucedeu? Como se o mesmo Evangelho
me repreendera de buscar fora dele o que só nele se podia achar, as mesmas
palavras do tema me descobriram e ensinaram a mais própria, a mais alta, a
mais elegante e a mais nova metáfora, que eu nem podia imaginar de S. Pedro.
E qual é? Quase tenho medo de o dizer! Não é cousa alguma criada, senão o
mesmo Autor e Criador de todas. Ou as grandezas de S. Pedro se não podem
declarar por metáfora, como eu cuidava, ou se há ou pode haver alguma
metáfora de S. Pedro, é só Deus. Isto é o que hei-de de pregar, e esta a
nova e altíssima metáfora que hei-de prosseguir. Vamos ao Evangelho.
Vos autem quem me esse dicitis? E vós quem dizeis que sou eu? Aquele vos
autem refere esta segunda pergunta à primeira. Na primeira tinha dito o
Senhor quem dizem os homens; nesta segunda diz: E vós, quem dizeis? De sorte
que a pergunta e a questão era a mesma, e só as pessoas diferentes. Mas
também esta diferença parece dificultosa de entender. Os Apóstolos não eram
homens? Sim. Pois se Cristo na primeira pergunta tinha dito quem dizem os
homens, parece que já ficavam incluídos nela os mesmos Apóstolos; porque os
distingue logo o Senhor dos outros homens com uma exclusiva tão manifesta
como a daquele vos autem? O reparo não é menos que de S. Jerónimo, a quem a
mesma cadeira de S. Pedro tem canonizado não só pelo maior Doutor, senão o
Máximo na exposição das Escrituras Sagradas. E que responde S. Jerónimo? Diz
que distinguiu Cristo aos Apóstolos dos outros homens, porque os Apóstolos
não são homens. E se não são homens, que são? São anjos? São arcanjos? São
querubins? São serafins? Muito mais: são Deuses. Palavras expressas do
doutor Máximo: Prudens lector, attende quod ex consequentibus, textuque
sermonis Domini Apostoli nequaquam homines, sed Dii appellantur. «Advirta o
prudente leitor, que, segundo este texto e a consequência destas palavras de
Cristo, os Apóstolos não são homens, nem se chamam homens, senão Deuses»:
Nequaquam homines, sed Dii.
Grande dizer, e tão grande, que não só diz tudo o que eu queria, e o meu
assunto há mister, senão muito mais. Diz tudo, porque afirma expressamente a
metáfora e semelhança de Deus, quanto ao nome, quanto à dignidade e quanto à
diferença e soberanias desta divindade superior absolutamente a todo o ser
humano: Nequaquam homines. Mas diz muito mais do que o meu assunto prometeu
e há mister, porque ele supõe a excelência desta prerrogativa como própria
de S. Pedro, e singularmente sua, e de nenhum outro, e S. Jerónimo parece
que a estende a todos os Apóstolos: Apostoli nequaquam homines, sed dii
appellantur. De onde se segue que esta extensão, posto que em pessoas de tão
alta dignidade, desfaz muito a singularidade de S. Pedro da minha metáfora e
do meu intento; porque fica sendo uma prerrogativa, senão de todos, ao menos
de muitos.
III
Vamos devagar, que o ponto o pede. Primeiramente não nego, nem se pode
negar que o texto parece que fala com todos os Discípulos e Apóstolos, a
quem o divino Mestre fazia a pergunta. Mas eu pergunto também quem foi o
que única e singularmente respondeu a ela? Claro está que foi São Pedro:
Respondit Petrus. E porque respondeu só ele e nenhum outro? Excelentemente
St.° Ambrósio: Cum interrogasset Dominus quid homines de Filio hominis
æstimarent, Petrus tacebat: ideo (inquit) non respondeo, quia non interrogor:
interrogabor, et ipse quid sentiam tum demum respondebo, quod meum est.
«Enquanto Cristo perguntou o que diziam os homens, Pedro esteve calado sem
dizer palavra» __ tacebat; e porque esteve calado Pedro e não respondeu
palavra? «Porque aquela pergunta, diz ele, não fala comigo»: Ideo non
respondeo, quia non interrogor; «porém quando eu for perguntado, então
responderei e direi o que sinto, porque a mim me pertence»: Cum interrogabor,
et ipse quid sentiam respondebo, quod meum est. Note-se muito esta última
palavra, quod meum est, na qual excluiu o mesmo S. Pedro a todos os outros
Apóstolos e confiadamente diz que a resposta daquela altíssima pergunta só
era sua e só a ele pertencia. É verdade que a palavra da pergunta: vos autem
parece que compreendia a todos; mas a resposta exclui aos demais, como
encaminhada a ele por quem sabia o que só Pedro sabia e os demais ignoravam.
Em um famoso milagre do mesmo S. Pedro temos um extremado exemplo, com
que a extensão do vós autem se limita só a ele. Entretanto S. Pedro com S.
João por uma das portas do templo de Jerusalém a orar, estava ali um pobre
tolhido dos pés desde seu nascimento, o qual lhes pediu uma esmola;
disse-lhe S. Pedro: Respici in nos: «Olha para nós», e respondendo ao que
pedia o pobre; __ Eu __ diz __ não tenho ouro, nem prata, mas o que tenho,
isso te dou; e tomando-o pela mão «o pôs em pé inteiramente são»: Et
protinus consolidatæ sunt bases ejus. Pois se S. Pedro só havia de fazer,
como fez, o milagre sem ter parte nele o companheiro, porque não disse
também - olha para mim, senão, olha para nós?: Respice in nos ?
A razão fique para outro dia; o exemplo nos serve agora, e é quanto se
pode desejar adequado. De sorte que o respice in nos referiu-se a Pedro, e
mais a João; mas o milagre não o obraram Pedro e João, senão só Pedro. Pois
assim como então o respice in nos se referiu a ambos e o obrador do milagre
foi só um, assim no caso presente o vos autem referia-se a todos __
Respiciebat omnes __ e a milagrosa confissão foi só de Pedro. Só de Pedro,
sem que o número ou multidão a que foi dirigida a pergunta, impedisse a
glória única e singular de quem deu a resposta: e senão, combinemos o vos
com o tu e o tibi. O vos autem foi de todos, e o tu só de Pedro: Tu es
Petrus; o vos autem de todos, e o dico só de Pedro: dico tibi; o vos autem
de todos, e o dabo só de Pedro: Tibi dabo.
IV
Assentada esta singularidade de S. Pedro dentro na mesma diferença que
distinguia a todos os Apóstolos dos outros homens, segue-se que vejamos
também singular nele a divindade, com que a mesma diferença lhe dava por
consequência o nome de Deuses: Nequaquam homines, sed Dii appellantur. Em
confirmação da sua consequência, excita questão S. Jerónimo, porque os
outros homens, por mais que quiseram encarecer as grandezas de Cristo
comparando-o às maiores personagens do Mundo, sempre contudo o fizeram
homem; pelo contrário, um só dos Apóstolos que respondeu à pergunta sem
comparações nem rodeios, disse distintamente que era Filho de Deus. E a
razão de tão notável diferença (sendo o soberano sujeito o mesmo) diz o
mesmo S. Jerónimo que foi porque cada um fala como entende, e entende como
quem é. Os homens, porque falavam e entendiam como homens, chamaram a Cristo
homem; S. Pedro, porque falava e entendia como Deus, chamou-lhe Filho de
Deus: Qui de Filio hominis loquuntur, homines sunt; qui vero divinitatem
ejus intelligunt, non homines, sed Dii. Note-se muito a palavra intelligunt.
Eutímio diz o mesmo: Solus Petrus vere Chistum, et natura, et proprie Filium
Dei esse intellexit. S. Pascácio o mesmo: Beatus Petrus plusquam homo erat,
qui ultra hominem sapiebat: cumque Dei Filium in homine videret, ultra
humanos oculos vidit, et intellexit. E outra vez aqui se deve notar esta
última palavra.
Em suma, que toda a divindade de S. Pedro se atribui ao entendimento com
que penetrou e conheceu a do Verbo oculta debaixo da humanidade de Cristo. E
porque mais ao entendimento que a outra qualidade ou excelência de quantas
resplandeciam em um sujeito tão sublime? Porque assim havia de ser para se
poder chamar Deus com toda a propriedade. É grave questão entre os teólogos,
qual seja em Deus o último e formal constitutivo da essência divina. E a
sentença hoje mais recebida nas escolas, e mais comum, é que a essência
divina se constitui e consiste no intersectivo radical, e na mesma
intersecção, por ser este, como eles chamam, o primeiro predicado de Deus. E
como o intersectivo radical, e Intersecção divina, é a que última e
formalmente constitui a divindade e essência de Deus, para que nem esta
propriedade e correspondência faltasse à divindade de Pedro, e a metáfora
com que é chamado Deus se ornasse também com os esmaltes de tão semelhante
origem, foi conveniente à glória de tão soberana participação e semelhança,
que a deidade do mesmo Pedro se fundasse nas raízes do seu intelectivo e que
a intelecção com que entendeu e conheceu a divindade de Cristo, fosse pelo
mesmo modo o constitutivo da sua. Já não havemos mister as autoridades dos
Santos Padres, porque temos a do Eterno Padre e a do mesmo Cristo: Quia caro
et sanguis non revelavit tibi, sed Pater meus, qui in cælis est. A
intelecção de Pedro não teve nada de humano, o qual se compõe de carne e
sangue; mas elevada o seu intersectivo e o seu entendimento pela revelação
do Padre a uma altíssima participação e semelhança do divino, ali se
constituiu a última formalidade da sua essência, e se conseguiu, do modo que
era possível, o nome e dignidade de Deus: Qui divinitatem ejus intelligunt,
non homines sed Dii.
V
Levado S. Pedro à divindade pela revelação do Padre, vejamo-lo segunda
vez elevado ou confirmado nela pela eleição do Filho: Et ego dico tibi, quia
tu es Petrus, et super hanc petram ædificabo ecclesiam meam. O imperador
Nerva, como refere Plínio, elegeu por seu sucessor a Trajano, e Trajano em
agradecimento colocou a Nerva entre os deuses, e pagou-lhe a sucessão com a
divindade. Muito melhor Pedro que Trajano, e muito melhor Cristo que Nerva.
Pedro disse a Cristo: Tu es Chistus Filius Dei vivi: e Cristo disse a Pedro:
Tu es Petrus, et super hanc petram ædificabo ecclesiam meam. Pedro na sua
confissão deu a divindade a Cristo, e Cristo na sua sucessão não só deu a
Pedro a sucessão, senão também a divindade. Assim foi e assim havia de ser;
porque nem a Pedro seria digno sucessão de Cristo, nem seria digna de Cristo
a providência de sua Igreja, se Pedro fora somente homem, e não fora
juntamente Deus.
Notificou Moisés ao povo de Israel corno tinha Deus resoluto que de ali
por diante governasse um anjo, e diz o texto sagrado que, ouvida esta nova,
«todo o povo se pôs a chorar em pranto desfeito e todos se cobriam de luto»:
populus luxit, et nullus (...) indutus est cultu suo. Quem imaginaria de
tal notícia tão encontrados efeitos? Antes parece que todos se haviam de
vestir de gala e dar muitas graças a Deus por tal governador. Que melhor
;governador se podia desejar que um anjo? Um anjo que não come, nem veste,
nem granjeia; um anjo que não tem parentes, nem criados, nem apetites; um
anjo tão sábio e tão verdadeiro, que nem pode enganar, nem ser enganado,
benévolo, afável sempre do bom rosto; enfim, um anjo? Pois se todas as
outras nações se contentam ou sofrem ser governadas por homens «e os trazem
sobre a cabeça»: Imposuisti homines super capita nostra; que razão teve o
povo de Israel para receber com lágrimas e lutos a nova de o haver de
governar um anjo? __ Muito grande razão. Porque até ali quem governava
aquele povo era Deus por si mesmo; e suceder a Deus um anjo, não era favor,
senão rigor; não era benefício, senão castigo; eram sinais da majestade
divina ofendida e irada e demonstrações de que antes queria desamparar e
destruir aquele povo, que conservá-lo. Esta foi a justa razão daquelas
lágrimas; e já temos concluído que, ainda que S. Pedro fora um anjo, não
seria digno sucessor de Cristo, nem ele deixaria dignamente provida a sua
Igreja, e ela por aquela eleição e sucessão, não se devia vestir de festa,
como hoje a vemos, senão chorar e cobrir-se de lutos. Vamos agora buscar a
segunda consequência, e no mesmo povo a acharemos.
Vendo o povo de Israel que Moisés depois de subir ao monte, havia
quarenta dias que tardava e não aparecia, cansados de esperar os que agora
cansam, vão-se ter com Arão, pedindo-lhe «que lhes faça um deus» Fac nobis
deos, qui nos præsedant; Moysi enim huic viro, qui nos eduxit de terra
Ægypti, ignoramus quid acciderit; «porque não sabemos (dizem) o que é feito
deste homem que nos tirou do Egipto». Deste homem disseram, palavra em que
manifestamente se implicavam e desfaziam a sua mesma petição. Pois se Moisés
é homem, huic viro, porque não pedem outro homem, mas dizem que lhes faça
um Deus em seu lugar?: Fac nobis deos. A petição foi ímpia; o intento não só
bárbaro, mas sacrílego e blasfemo: porém a consequência não se pode negar
que foi muito bem entendida, muito bem deduzida e muito bem fundada. Moisés,
ainda que era homem, era juntamente Deus: Constitui te Deum Pharaonis: e
para suceder dignamente a um homem Deus, é necessária consequência que o
sucessor seja também Deus. Parece-me que sem mais explicação Estou
declarado.
Cristo Senhor nosso era verdadeiro homem e verdadeiro Deus, como acabava
de confessar S. Pedro; e se Pedro fosse somente homem e não fosse também
Deus, nem. ele seria digno sucessor de Cristo, nem Cristo corresponderia
àquela altíssima confissão com prémio e recompensa igual. Esta é a força
daquele et ego dico tibi: Tu dizes que eu sou Deus; pois eu te digo que tu
também o serás, sucedendo em meu lugar, e tendo as minhas vezes. St.°
Ambrósio: Quia tu mi dixisti: __ Tu es Christus, Filius Dei vivi __ ego dico
tibi non sermone casso, et nullum effectum habente (quia meum dixisse
fecisse est) quia tu es Petrus et super hanc Petram ædifìcabo ecclesian meam,
et tibi dabo claves regni cælorum. Assim pagou Cristo a Pedro uma divindade
com outra, dando-lhe o poder de Deus no Céu, porque ele o tinha confessado
por Filho de Deus na Terra.
De aqui se entenderá a solução de um grande reparo de St.° Agostinho,
duas vezes repetido por ele; e é que a mesma confissão que fez S. Pedro, fez
também o Demónio. Ecce modo audistis in Evangelio quod ait Petrus: Tu es
Cristhus, Filius Dei vivi: legit; et invenietis dixisse dæmones: scimus quia
sis Filius Dei. O Demónio era o mais jurado inimigo de Cristo que havia,
houve, nem haverá. Pois porque confessa a Cristo; e pelas mesmas palavras
com que S. Pedro o confessou por Filho de Deus? Porque viu quanto lhe montou
a Pedro esta confissão, diz agudamente S. Crisóstomo. O intento do Demónio
foi sempre ser como Deus: Similis ero Altissimo». «Pedro conseguiu ser como
Deus pela confissão da divindade de Cristo; pois eu também o quero
confessar, para conseguir o que ele conseguiu». Enganou-se como cego da
ambição, mas inferia bem, se não fosse quem era; e com o seu testemunho,
posto que do Inferno, confirmou o mesmo que temos dito. De sorte que aquele
soberbíssimo espírito tão ambicioso da divindade, de tal maneira reconheceu
a de Pedro, que porque antigamente não pôde ser como Deus no Céu, agora se
contenta e procura ser como Pedro na Terra.
VI
Estabelecida tão amplamente a divindade de S. Pedro, vejamos com igual
admiração quão divina e endeusadamente a pratica e usa dela. Quantos grandes
há neste Mundo, que não sabem ser o que são? Depois de lhes dar o que lhes
deu, parece que se arrependeu a fortuna do que lhes tinha dado. O rico é
avarento, e não sabe usar da riqueza; o sábio é imprudente, e não sabe usar
da sabedoria; o valente é temerário, e não sabe usar do valor; e até os que
têm as coroas na cabeça e os ceptros na mão, não têm cabeça nem mãos para
saber reinar. Não assim Pedro, em tudo igual a si mesmo.
Pondera S. Pedro Damião alta e profundamente quanto pode admirar e
apenas compreender o juízo humano aquela imensa e inaudita comissão de
Cristo a S. Pedro: Quodcumque ligaveris super terram, erit ligatum et in
cælis; et quodcumque solveris super terram, erit solutam et in cælis. E diz
assim elegantemente: Adest Petrus, et ad ejus arbitrium orbis universus
solvitur et ligatur. Et præcedit Petri sententia sententiam Redemptoris,
quia non quod Christus, hoc ligat Petrus, sed quod Petrus, hoc ligat
Chryistus. Quid est quod angelorum et hominum agminibus exclusis, solus
Petrus in consortium dïvinæ majestatis, et cum Domino residet præsidente?
Consilium special e Petri et Dei, ubi mortalem hominem Deo copulat et
counit. Atequi o eloquentíssimo cardeal, depois de renunciar a púrpura. Eu o
explico e comento: Aparece Pedro, e ao arbítrio do seu império todo o Mundo
é ou não é o que ele quer que seja ou não seja: se liberta, todo livre; se
ata, todo atado e preso. Deus está no Céu e na Terra, quando manda o Céu e a
Terra; Pedro, estando na Terra, manda a Terra e mais o Céu. Se da Terra
chovesse para cima, como descreve Lactâncio dos antípodas, não seria grande
maraviIha? Pois isto é o que passa no governo de Pedro; não descem os
decretos do Céu para a Terra, mas sobem da Terra para o Céu. Pedro é o que
manda, e Deus o que se conforma. Conforma-se com o entendimento, conforma-se
com o poder. O que entende, o que quer, o que ordena e manda Pedro, isso
entende Deus, isso quer Deus, isso ordena e manda Deus. E por que razão,
quando Deus despacha no seu tribunal supremo, todos os espíritos angélicos
assistem em pé, e só Pedro preside assentado? __ Porque o tribunal de Deus,
e o tribunal de Pedro não são dois, senão um só e o mesmo.
O primeiro acto judicial que exercitou S. Pedro, foi no caso de Ananias.
Eram naquele tempo da primitiva Igreja as fazendas e bens temporais dos
cristãos comuns a todos: e contra esta Lei ou voto, vendeu Ananias uma
herdade e ocultou parte do preço; manda-o chamar à sua presença S. Pedro; e
que é o que fez e o que disse? O que só podia dizer e fazer Deus. O que
disse foi: Non es mentitus hominibus, sed Deo:« sabe, Ananias, que no que
encobriste não mentiste aos homens, senão a Deus.» Vede se se tratava como
Deus quem assim falava.. O que fez foi ainda mais divino, mais admirável: e
de maior terror. «Ouvindo aquelas palavras, caiu morto Ananias aos pés de
Pedro»: Audiens autem hæc Ananias, expiravit. Descrevendo Isaías a justiça
de Cristo, diz que só com o espírito de sua boca matará o impio: Et spiritu
labiorum suorum interficiet impium. E nisto mostrou o Profeta que o mesmo
que havia de ser o Redentor, era o Deus que tinha sido o Criador. O modo com
que Deus, quando criou o primeiro homem, lhe deu vida, foi inspirar-lhe no
rosto com o espírito de sua boca: Inspiravit in faciem ejus spiraculum vitæ
, et factus est homo in animam viventem. Pois assim como só com o espírito
de sua boca deu a primeira vida, assim com o mesmo espírito, sem outro
instrumento, diz Isaías que Cristo dará a morte ao ímpio. Isto é, nem mais
nem menos, o que fez S. Pedro. Nem mandou matar a Ananias, nem lhe disse que
morresse, e só com lhe tocar nos ouvidos o espírito de sua boca, caiu morto.
Mas tal execução como esta, posto que de poder tão divino, nunca a fez
Cristo. Como diz logo o Profeta que com o espírito de sua boca havia de
matar o ímpio? É profecia que ainda está por cumprir, e diz S. Paulo que se
cumprirá quando Cristo, no fim do Mundo, com o espírito só de sua boca
matará o Anticristo. Tunc revelabitur ille iniquus, quem Dominus Jesus
interficiet spiritu oris sui et destruet illustratione adventus sui. Esta
será a última execução de justiça de Cristo e tal foi a primeira de Pedro.
Mas assim como Deus é muito mais largo nas mercês sem comparação que
nos rigores, assim mostrou também S. Pedro esta divina condição no poder da
sua divindade. Por uma vida que tirou, deu infinitas vidas; e para maior
maravilha com muito menor instrumento, Concorriam os enfermos de toda a
parte, punham-se em compridíssimas fileiras nas ruas por onde Pedro havia de
passar, e todos a quem tocava a sua sombra se levantavam subitamente sãos.
Não é muito menor instrumento a sombra, que o espírito da boca? Pois esta só
bastava para dar vida, e tantas vidas. Assim parece que se competiram estes
dois instrumentos em Pedro, como já se tinham competido em Deus, ficando a
sombra com infinita glória vencedora. Que fez Deus com o espírito da boca?
__ Deu o ser e a vida ao primeiro Adão: Inspiravit in faciem ejus spiraculum
vitæ. E que fez o mesmo Deus com a virtude da sua sombra? __ Deu o ser e a
vida ao segundo Adão, que é Cristo: Virtus Altissimi obumbrabit tibi,
ideoque et quod nascetur ex te sanctum, vocabitur Filius Dei. Ó Deus, ó
Pedro! Em tudo quis Deus que a divindade de Pedro fosse semelhante à sua.
VII
Só parece que lhe falta ainda uma semelhança divina, que é a pessoal.
Em Deus e na divina essência há três pessoas. E foi S. Pedro também
semelhante a alguma delas? Também, mas não a alguma somente, senão a todas
três, semelhante a Deus Padre, semelhante a Deus Filho, semelhante a Deus
Espírito Santo.
Quanto à semelhança de Deus Padre, não pode ser maior. Quando Cristo,
Senhor nosso, se fez baptizar no Jordão, abriram-se os Céus, e de lá se
ouviu a voz do Eterno Padre, que disse: Hic est Filius meus dilectus, in quo
mihi complacui. «Este é o meu Filho muito amado, no qual muito me agradei.»
No monte da Transfiguração apareceu sobre ele uma nuvem resplandecente, de
dentro da qual se ouviu segunda vez a voz do mesmo Padre, tornando a
declarar por Filho seu a Cristo, não com outras, senão com as mesmas
palavras. Isto fez e disse o Eterno Padre; e não é isto o mesmo que fez S.
Pedro, quando disse: Tu es Christus Filius Dei vivi? __ O mesmo. De sorte
que este pregão e esta declaração da divindade de seu Filho quis o Eterno
Padre que saísse da sua boca e da boca de Pedro. Por isso o mesmo Padre foi
o que lhes revelou o mistério a todos os outros Apóstolos escondidos. E em
que consistiu aqui o fino e o sublime deste tão singular favor? Consistiu em
que, assim como o Padre tinha dado a seu Filho a divindade por geração,
assim tomasse por companheiro a Pedro para ambos lha darem por manifestação.
No Apocalipse viu S. João a Cristo em figura de cordeiro, e logo ouviu que
toda a corte do Céu o aclamava a uma voz por «digno de receber a divindade»:
Dignus est agnus, qui occisus est, accipere virtutem et divinitatem. Pois o
mesmo cordeiro Cristo não tinha recebido de seu Pai a divindade, e o ser
divino desde o princípio sem princípio da eternidade? Sim, a tinha recebido
por geração; mas agora a tornava a receber por manifestação. Por geração foi
concebido o Verbo no entendimento e conceito do Padre; por manifestação era
de novo concebido no entendimento e conceito de todo o Mundo: Non in se, sed
in mente et ore hominum, dizem com S. Tomás todos os intérpretes. E neste
segundo modo de conceição e de geração, quis o Eterno Padre que fosse seu
Filho tão Filho de Pedro, como era seu: Hic est Filius meus dilectus: Tu es
Christus, Filius Dei vivi.
A semelhança da Pessoa de Deus Filho também o mesmo Filho lha deu. E
quando? Quando lhe deu o nome de pedra. Cristo teve o nome de Pedra desde o
tempo em que os filhos de Israel «bebiam daquela pedra que os seguia», como
declarou S. Paulo: Bibebant de consequente eos petra, petra autem erat
Chistus. E como Cristo era pedra e deu o nome de pedra a Pedro, como a
semelhança e dignidade do seu nome o admitiu em quanto segunda Pessoa da
Santíssima Trindade ao consórcio e companhia, isto é, a lhe ser companheiro
nela. S. Leão Papa: In consortium individuæ trinitatis assumptum id quod
ipse erat, nominari voluit. E S. Máximo acrescenta que não foi só favor e
graça, senão merecimento: Recte onsortium meretur nominis, qui consortium
meretur et operis. Disse operis, e pudera com a mesma e maior propriedade
dizer oneris; porque, quando Cristo o fez pedra fundamental da sua Igreja,
todo o peso dela lhe carregou sobre os ombros. Isto é o que pesa aquele
super hanc petram. Outro peso foi o que o mesmo Cristo tomou sobre si,
quando se sujeitou a pagar o tributo de César; mas também neste igualou a
Pedro consigo, e quis que fossem companheiros e meeiros na paga do mesmo
tributo: Da eis pro me, et te.
Nota aqui Abulense e os outros expositores literais, que S. Pedro não
tinha obrigação de pagar aquele tributo, porque não era cabeça da família. E
porque outros sentem o contrário, eu o tiro com evidência do texto; porque
os cobradores do mesmo tributo só disseram a S. Pedro: Magister vester non
solvit didrachma. Pois se S. Pedro não tinha obrigação de pagar o tributo,
nem a ele lho pediam, porque lhe manda o Senhor que pague? Porque ele o
pagava; e quis honrar a Pedro com o igualar com sua própria Pessoa. O
honoris excellentia! __ exclama S. Crisóstomo. Desta mesma igualdade tão
familiar e repetida se pode também admitir sem escrúpulo um pensamento com
que Lirano interpreta o de S. Pedro, quando disse no Tabor: Faciamus hic
tria tabernacula, tibi unum. Moysi unum, et Eliæ unum. E porque não o
tratou também Pedro de tabernáculo para si e para os dois companheiros?
«Porque supôs que os dois morariam com Moisés e Elias, e ele com Cristo»:
Non loquitur de tabernaculo faciendo pro se et sociis suis, quia volebat cum
Chisto esse in suo tabernaculo, et socii sui cum aliis duobus. Vede se se
pode imaginar maior e mais familiar igualdade entre Pedro e a segunda Pessoa
da Trindade, se se hão-de nomear ambos com o mesmo nome, se hão-de pagar
ambos o mesmo tributo, se hão-de morar ambos no mesmo tabernáculo!
Com o Espírito Santo, que é a terceira Pessoa, não temos menos sublimada
ou endeusada a divindade de S. Pedro. Tão iguais são ou tão parecidas, a
procissão do Espírito Santo e promoção de Pedro, a personalidade de um e a
dignidade ou majestade do outro, que ambas manam das mesmas fontes e ambas
trazem o ser, em Pedro, das mesmas causas, e no Espírito Santo, que não pode
ter causa, dos mesmos princípios. Como procede o Espírito Santo? A Fé o diz
e a Igreja o canta: Qui ex Patre, Filioque procedit: « Procede o Espírito
Santo do Padre e procede do Filho». O Padre é um princípio parcial; o Filho
outro princípio também parcial; e destes dois princípios parciais se compõem
o princípio total, do qual, produzido ou expirado, procede o Espírito Santo.
E a promoção de S. Pedro à dignidade ou divindade que temos visto, como
procedeu? Com a mesma verdade podemos, havemos de dizer, e com nenhuma se
pode negar, que procedeu do mesmo Padre e do mesmo Filho: do Padre,
revelando: Quia Pater, revelavit tibi: e do Filho, dizendo: Et ego dico
tibi: do Padre, que foi o primeiro que o elevou; do Filho, que foi o segundo
que o declarou; e de cada um como princípio ou causa parcial; e de ambos
como causa total que o constituiu ou constituíram na dignidade.
Não pára aqui a semelhança. Em Pedro concorreram para a dignidade dois
actos, um do entendimento, outro da vontade e do amor: o do entendimento,
quando perguntados todos, ele só disse: Tu, es Chistus Filius Dei vivi; o da
vontade e do amor, quando perguntado só: Diligis me plus his? ele respondeu:
Tu scis Domine qua amo te. Vede agora como estes dois actos foram uma
admirável representação do acto de entendimento, que precede no Padre quando
gera o Filho, e do acto de vontade e amor entre o Padre e o Filho, pelo qual
procede o Espírito Santo.
É grave questão entre os teólogos se no acto do entendimento, com que o
Padre gera o Filho, se conhece e compreende também o Espírito Santo? E se
resolve comumente que sim. Mas esta resolução tem uma grande réplica, porque
naquela prioridade, que não é de tempo, nem de natureza, senão de origem,
ainda não há nem se pode considerar vontade, e por conseqüência, nem
Espírito Santo, que procede por acto da mesma vontade. Como se pode logo
compreender o Espírito Santo no acto precedente do entendimento, que é antes
de ele ser? Os que respondem mais fácil e inteligivelmente dizem, como
refere Soares: Patrem in eo signo non agnoscere Spiritum Sanctum, ut
productum sed ut producendum, nec ut existentem, sed ut futurum. «Que o
Eterno Padre, quando gera o Filho, não conhece o Espírito Santo como Pessoa
já produzida, senão que se há-de produzir, nem como já existente, senão
futura». De sorte que a personalidade do Espírito Santo, no acto do
entendimento do Padre, é ainda futura, e não existente. E essa existência
quando a há-de ter? Quando ao acto do entendimento se seguir a vontade, e
pela mesma vontade o acto do amor.
Comparai-me agora a dignidade de Pedro com a personalidade do Espírito
Santo. O acto do entendimento em Pedro foi quando disse: Tu es Christus
Filius Dei vivi: e assim com a personalidade do Espírito Santo no acto do
entendimento só era futura e não existente, assim também a dignidade de
Pedro, não existente, senão futura: Super hanc petram ædificabo ecclesiam
meam, et tibi dabo claves regni cælorum. Não diz ædifico, senão ædificabo,
nem diz do, senão dabo, tudo de futuro. E a existência deste futuro quando
há-de ser? Como a do Espírito Santo: depois do acto da vontade e do amor
recíproco: Diligis me plus his? Tu scis Domine quia amo te. Depois deste
acto de amor recíproco, e não uma, senão três vezes repetido, então lhe deu
e conferiu o Senhor a investidura da dignidade que lhe tinha prometido:
Pasce oves meas, pasce agnos meos.
Provido assim o governo da Igreja, se partiu Cristo para o Céu, donde
prometeu mais que viria «o Espírito Santo mandado pelo Padre em seu nome,
não do Padre, senão do mesmo Cristo: Paraclitus autem quem mittet Pater in
nomine meo. E que quer dizer in nomine meo? __ Quer dizer __ em meu lugar e
com as minhas vezes. Eutímio: In nomine meo, id est, ut
hic me referat, et meis fungatur vicibus. Eusébio Emisseno: Mea vice
et meo nomine magnus consolator et doctor sapientissimus dabitur vobis. Aqui
tornou Cristo a igualar a Pedro com o Espírito Santo, como o tinha igualado
consigo, dando as suas vezes e fazendo seu vigário a terceira Pessoa da
Trindade e juntamente a Pedro. Pedro, vigário de Cristo deixado na Terra: o
Espírito Santo, vigário de Cristo mandado do Céu; Pedro, vigário visível: o
Espírito Santo, vigário invisível; o Espírito Santo, verdadeiro vigário e
verdadeiro Deus: Pedro verdadeiro vigário e verdadeiramente como Deus:
Admire-se a igualdade deste poder e a majestade soberana de Pedro no
primeiro seu decreto, e pasmem os que ouvirem o proémio do primeiro
concílio: Visum est Spiritui Sancto et nobis. Pedro foi o que congregou o
concílio; Pedro o que falou em primeiro lugar, calando todos, como diz S.
Lucas; Pedro a quem depois de falar seguiram os demais Apóstolos; e Pedro
que em nome do Espírito Santo e seu assinou e mandou publicar o decreto.
Quando S. João, no princípio do seu Apocalypse, escreveu às igrejas da Ásia,
as epístolas eram de: Joannes septem ecclesiis, quæ sunt in Asia; mas quem
no fim as assinava cada um por si, era o Espírito Santo: Qui habet aurem,
audiat quid spiritus dicat ecclesiis. Porém quando Pedro decreta, não só
assina os decretos o Espírito Santo, senão também Pedro: Visum est Spiritui
Sancto, et nobis.
VIII
Já parece que deve estar satisfeita a nossa metáfora e a divindade de
S. Pedro com ser semelhante a Deus Padre, semelhante a Deus Filho,
semelhante a Deus Espírito Santo, e por consequência a toda a Santíssima
Trindade, que foi a soberania universal da assunção de S. Pedro, como acima
disse S. Leão Papa e eu deixei passar sem ponderação, porque este era o seu
próprio lugar, e a chave mais que dourada com que se havia de fechar este
discurso: In consortium individuæ Trinitatis assumptum. Agora pergunto se
tem mais para onde subir a nossa metáfora, e a semelhança da divindade de S.
Pedro com Deus? Respondo que a semelhança, não, mas a divindade, sim. Porque
subiu a divindade de Pedro (não digo a tal alteza, porque a não pode haver
mais alta que Deus) mas a tal singularidade de divina, que em Deus a não há,
nem pode haver semelhante. Em Deus, e na Santíssima Trindade não pode haver
outra pessoa., e S. Pedro foi a quarta pessoa da Santíssima Trindade. Vede
como, e não tenhais medo de alguma heresia.
Quando S. Pedro acabou de fazer a sua confissão, disse-lhe o mesmo
Cristo assim exaltado: Beatus es, Simon Barjona: Bem-aventurado és, Simão
Barjona. Era este o apelido humilde de Pedro, e que cheirava ainda ao breu
da barca; e têm para si alguns expositores, quis o Senhor lembrar-lhe nesta
ocasião a baixeza do seu nascimento, para que a dignidade, a que logo o
havia de levantar, o não desvanecesse. Mas eu não me posso persuadir que,
quando S. Pedro acabava de honrar a Cristo por seu Pai, com o nome de Filho
de Deus vivo, o Senhor lhe respondesse com o que tanto lhe tocava no vivo,
como ouvir em público a indignidade do seu. E o que em tal caso não faria
nenhum homem de bem, não havemos de crer que o fizesse o bem dos homens.
Qual foi logo a razão daquele nome ou sobrenome, e em resposta do que Pedro
tinha dito? Barjona na língua hebreia ou siríaca que naquele tempo era a
vulgar, significa filius columbæ, filho da pomba; e dizem comumente os
Santos Padres que aludiu o Senhor à pomba, em cuja figura desceu o Espírito
Santo no baptismo sobre o mesmo Cristo. Como se dissera o divino Mestre com
resposta muito digna da sua grandeza:__ «Tu, Pedro, dizes que eu sou Filho
do Eterno Padre? Pois eu te digo que tu és filho do Espírito Santo». Assim o
diz S. Jerônimo, Santo Hilário, Eusébio Emisseno, a Glossa, e com palavras
mais expressas que todos o venerável Beda: Justa laude confessorem suum
Dominus remunerat, cum eum Sancti Spiritus filium esse attestatur, a quo
ipse filius Dei asseveratur.
Suposto, pois, que S. Pedro é filho do Espírito Santo, já parece que não
está muito longe de ser a quarta Pessoa da Santíssima Trindade. Porque, se o
Verbo, por ser Filho do Padre, é a segunda pessoa, Pedro, por ser filho do
Espírito Santo, porque não será a quarta? Bem se segue a consequência, e
assim havia de ser, se fosse possível. Mas porque era impossível na
realidade, foi filho do Espírito Santo e quarta pessoa da Trindade por
semelhança e não na realidade, que esse é o meu assunto e a propriedade da
minha metáfora. As Pessoas divinas só se podem multiplicar ou por
entendimento ou por vontade: por entendimento, já estava infinitamente
multiplicada a segunda Pessoa no Filho; por vontade, já estava infinitamente
multiplicada a terceira Pessoa no Espírito Santo; donde se segue que só as
Pessoas do Padre e do Filho são fecundas e a do Espírito Santo não. Mas não
se segue de aqui que seja menor a perfeição do Espírito Santo que a do Padre
e do Filho, porque tanta perfeição é não poder o impossível, como poder o
possível. Para que entendam os todo-poderosos do Mundo, que se devem
contentar com poder o que podem, e não querer mais. E porque a Pessoa do
Espírito Santo não era fecunda ab æterno, por isso se lhe supriu a
fecundidade em tempo na pessoa de Pedro, não quanto à realidade, senão
quanto à semelhança: Barjona, filius columbæ; Barjona, filius Spiritus
Sancti.
Vamos ao princípio do Mundo, e acharemos esta fecundidade do Espírito
Santo admiravelmente retratada. Onde a Vulgata diz: Spiritus Domini
ferebatur super aquasfecundabat, lê o original hebreu: Spiritus Domini
fæcundabat aquas; que «o Espírito Santo fecundava as águas». E por que razão
comunicava o Espírito Santo a sua fecundidade mais ao elemento da água que a
nenhum dos outros? Não desceu do Céu no dia de Pentecostes «em forma de
ar»?: Tanquam advenientis Spiritus vehementis? Não apareceu sobre os
Apóstolos «em forma de fogo»?: Dispertitæ linguæ tanquam ignis? E depois de
descer e aparecer; não «encheu a terra toda»?: Spiritus Domini replevit
orbem terrarum? Por que razão pois as influências da sua fecundidade as
comunica só ao elemento da água, que naquela mesma ocasião se chamou mar?:
Congregationes aquarum appellavit maria? Porque do mar lhe havia de nascer
ao Espírito Santo aquele filho, que já de então estava prevendo que com o
nome de Simão Barjona andava navegando e remando no mar de Tiberíades: Mal
cuidei eu que achasse autor ao pensamento; mas assim o tinha escrito há
muitos séculos entre os Santos Padres um de tanta autoridade, como
sabedoria: Congregentur aquæ, diz Anastácio Sinaita, Petrus enim jam crucem,
tanquam remum intingit in mari mundano. Fecundou o Espírito Santo as águas
do mar, porque no mar havia Pedro de meter primeiro o remo e como pescador,
e depois, trocado o remo com o lenho da cruz, havia de navegar e sujeitar
com ela, como sucessor de Cristo; o Oceano do Mundo. Assim imitou o Espírito
Santo a fecundidade da primeira e segunda Pessoa, assim foi filho da mesma
fecundidade S. Pedro, Filius Spiritus Sancti, e assim, do modo que era
possível, acresceu à Santíssima Trindade uma quarta pessoa por semelhança, e
não na realidade.
E porque não faltasse a esta quarta pessoa a semelhança divina das
outras três, assim como o Padre e o Filho e o Espírito Santo entendem com um
só entendimento e querem com uma só vontade, e obram com um só poder, também
à pessoa de Pedro, como se fosse a quarta, lhe não faltou esta divina
propriedade, por isso chamada indivídua. Assim concedem S. Leão e S. Máximo
à dignidade ou divindade de Pedro a prerrogativa, que eles chamam consortium
Trinitatis; e assim a declara, comentando os mesmos santos, o doutíssimo
Daza, da nossa Companhia, sujeito em quem a antecipada morte roubou à
Teologia e à Escritura um dos mais sólidos e excelentes intérpretes. As suas
palavras são estas: Nempe suas (Pedro) impertiendo vices, et quæ Dei sunt
communicando: ut eadem sit ipsi cum Trinitate mens ad ea quæ definit, eadem
voluntas ad illa, quæ jubet, eadem potentia ad ea quæ facit. Forte e
elegantemente. De maneira que, «enquanto Pedro tem as vezes de Cristo, no
Padre, no Filho, no Espírito Santo, em Pedro há um só e o mesmo
entendimento, uma só e a mesma vontade, uma só e a mesma potência. Um só e o
mesmo entendimento, porque o que entende Deus, entende Pedro nas matérias
que define; uma só e a mesma vontade, porque o que quer Deus, quer Pedro nos
cânones que estabelece; uma só e a mesma potência, porque o que pode Deus
pode Pedro nas maravilhas que obra». Tudo isto quer dizer em Pedro e só em
Pedro aquele vos autem: Vos non homines, sed Dii.
IX
Tão alta (muito Reverendos Senhores) tão alta, tão sublime e tão
verdadeiramente divina é a suprema dignidade, debaixo de cujo nome e
protecção se uniu, se conserva e floresce esta tão venerável como religiosa
Congregação dos Clérigos de S. Pedro! E quando considero a todos os
congregados dela segregados, como diz S. Paulo, e distintos dos outros
homens pela impressão do carácter sacerdotal, não sei o que mais devo
venerar neles, se o que Cristo disse a S. Pedro, se o que S. Pedro disse a
Cristo.
E senão, perguntemos de cada um dos sacerdotes da Lei da Graça o que o
mesmo Senhor perguntou de si: Quem dicunt homines? Quem dizem os homens?
Porventura dizem Alli Joannem Baptistam? Pouco sabem, se isso dizem. O
grande serafim da Terra, S. Francisco, dizia, como refere S. Boaventura,
que, se encontrasse em uma rua a S. João Baptista, e a um pobre sacerdote o
menos autorizado e respeitado nos olhos do Mundo, primeiro havia de fazer
reverência ao sacerdote que ao mesmo Baptista. S. Martinho (aquele que,
sendo ainda catecúmeno e soldado, com a metade da capa vestiu a Cristo)
estando à mesa com o Imperador Máximo, quando o copeiro-mor lhe levou a
taça, disse o Imperador que a desse a Martinho, esperando recebê-la da sua
mão; e que fez o animoso e justo prelado, que bem conhecia a sua dignidade?
Sem cumprimento algum ao imperador, bebeu ele, e logo deu a taça a um
presbítero que o acompanhava, para que bebesse, antepondo a coroa aberta de
um simples sacerdote à cerrada do mesmo Imperador. Isto é o que respondem
sem injúria do Céu nem da Terra, aqueles dois oráculos da Lei da Graça,
Francisco e Martinho.
Passemos aos da Lei da Natureza e da Lei Escrita: Quem dicunt homines?
Os da Lei da Natureza o mais que podem dizer, é ser o sacerdote cristão como
Melquisedec: Sacerdos Dei Altissimi, o qual «oferecia a Deus pão e vinho»:
Panem et vinum offerens. Mas isto é comparar a sombra com a luz e a
semelhança com a verdade. O pão que oferecia Melquisedec, era assim como o
que se colhe na eira, e o vinho assim como o que se espreme no lagar; porém
o pão e vinho que os nossos sacerdotes oferecem, posto que debaixo dos
mesmos acidentes, é tão transubstanciado no corpo do Cristo e vinho
transubstanciado no seu próprio sangue: frutos que não conheceu a natureza,
e palavra que foi necessário à Teologia inventá-la de novo. Os da Lei
Escrita dirão que o nosso sacerdócio é como o de Arão, e cuidarão que o
louvam muito; mas eu quando menos quisera que olhassem para a pureza e
limpeza dos nossos altares, dos quais já disse o mesmo Deus a um dos
profetas daquele tempo, dando-lhe em rosto com a perfeição e asseio dos
nossos sacrifícios: In omni loco offertur nomini meo ablatio munda. Os
sacerdotes da Lei Velha com as mãos tintas em sangue bruto, quando as
vítimas eram as mais mimosas, sacrificavam bezerros e cordeiros: e os nossos
com as mãos puras, como diz S. Paulo, sacrificam a Deus o diviníssimo
holocausto de seu próprio filho, tão infinito, tão imenso, tão omnipotente e
tão Deus como ele.
Isto é o que dicunt homines. E vos autem seja dos anjos e respondam
eles. Que dirão os anjos? Dirão que os mais altos querubins e serafins do
Empíreo, se foram capazes de inveja, nenhuma dignidade invejariam senão a do
homem sacerdote. No sacrossanto sacrifício da missa, o sacerdote é o
sacrificante e os anjos os ministros que o assistem, e talvez o servem, como
os que nós chamamos ajudantes, e quando estes se divertem, suprem os seus
descuidos. Assim sucedeu a S. Gregório Papa, celebrando na igreja de Santa
Maria Maior em dia de Páscoa. Quando disse: Pax Domini sit semper vobiscum,
descuidou-se o ajudante de responder, e responderam os anjos que assistiam:
Et cum Spiritu tuo. De aqui teve origem um uso ou rito notável da igreja
romana, e é que, quando o sumo pontífice na missa de dia de Páscoa diz as
mesmas palavras: Pax Domini sit semper vobiscum, o coro se cala e não
responde, conservando-se neste silêncio a memória do que supriram as vozes
dos anjos em dia semelhante.
Mas nesta mesma vigilância tão reverente, tão devota e tão obsequiosa,
com que os espíritos angélicos assistem ao sacerdote celebrante; haverá
algum da suprema jerarquia que se atreva a tocar a hóstia que ele consagra
nas suas mãos, e tantas vezes torna a tomar nelas no mesmo sacrifício? Por
nenhum modo. Não se estendem a tanto os privilégios dos anjos. Quando Deus
mandou de comer a Daniel no lago dos leões, o Profeta levava o pão e o Anjo
levava o Profeta pelos cabelos. Pois não seria mais fácil que o pão o
levasse o anjo? __ Mais fácil, sim, mas não lhe era lícito. O pão em
profício era figura do que se havia de consagrar nos nossos altares. O
Profeta, como diz S. Jerônimo, era da tribo sacerdotal de Levi: e tocar
aquele sagrado pão só é lícito aos sacerdotes, e de nenhum modo aos anjos.
Mas vejo que os mesmos sacerdotes me estão arguindo com um texto em
contrário, e o mais sagrado cânon de todos os da Igreja. Depois da
consagração do corpo e sangue santíssimo, todos fazemos a Deus esta oração:
Jube hæc perferri per manus sancti angeli tui in sublime altare tuun. Logo,
se o nosso sacrifício se há-de levar ao Céu per manus sancti angeli tui,
bem podem as mãos dos anjos fazer o que fazem as nossas. Absit (responde
Teófilo, o mais diligente escrutador das realidades deste mistério). Absit,
ut precatio illa intelligatur de victimæ nostræ reali apportatione, sed
intelligenda est metaphorice, ad cum modum quo angelus ait se obtulisse
orationem Tobiæ Deo. De sorte que aquela oração «não se há-de nem pode
entender de que os anjos realmente levem o nosso sacrifício ao Céu, senão
metaforicamente, assim como o anjo de Tobias diz que ofereceu a Deus as suas
orações». E a razão é manifesta; porque se o anjo levasse a nossa hóstia ao
Céu, ficaria imperfeito o sacrifício, que não só consiste na consagração e
oblação, senão também na consunção: e então perfeitamente se consuma, quando
a vítima consagrada morre, ou deixa de existir, que é quando pela
indisposição das espécies deixa o corpo de Cristo de estar debaixo delas.
Assim que isto é o que diz, e só pode dizer a confissão dos anjos.
X
Ouvidos pois os homens e os anjos, quem resta para ouvir, senão
unicamente o mesmo Deus? Ouçamos, pois, muito Reverendos Padres, a Deus, e
veremos como diz desta venerável congregação, o que S. Jerónimo disse dos
Apóstolos, que já então eram a Congregação de S. Pedro: Vos autem nom
homines, sed Dii. Deuses lhes chamou S. Jerónimo, e por mais autêntica boca
que é a de David, lhe dá Deus o mesmo nome. E o mesmo Deus, cujo dizer é
fazer, afirma que ele é o que o disse: Ego dixi, Dii estis, et filii excelsi
omnes. Deuses chama , e filhos de Deus aos sacerdotes, e não em sentido
alegórico, senão literal, porque literalmente fala o profeta dos ministros
da Igreja, segundo a frase daquele tempo: Deus stetit in synagoga Deorum: e
Cristo, melhor intérprete, literalmente o alega no capítulo X de S. João,
que todo é dos pastores e suas ovelhas, que são os eclesiásticos com o poder
e poderes do sacerdócio. Suposto pois que Deus lhes chama Deuses e filhos de
Deus, Dii estis, et filii excelsi, com razão perguntará alguma curiosidade
douta, em qual das duas partes desta proposição disse Deus mais: se quando
chama aos sacerdotes Deuses, ou quando lhes chama filhos de Deus? Eu digo
que quando lhes chama filhos de Deus; porque na primeira parte alude ao
poder da jurisdição e na segunda ao poder da ordem. Quando Cristo, Senhor
nosso, disse ao paralítico: Remittuntur tibi peccata tua, murmuraram todos
da proposição, dizendo: Quis potest dimittere peccata, nisi solus Deus?
Negavam mal este poder a Cristo, mas supunham bem em dizer que só Deus pode
perdoar pecados. E este é o poder dos sacerdotes enquanto Deuses: Quorum
remiseritis peccata, remittuntur eis. E digo enquanto Deuses, porque o poder
de perdoar pecados não só é próprio e unicamente de Deus, senão o maior e o
máximo em que ele manifesta e ostenta toda a grandeza do seu poder: Deus qui
omnipotentiam tuam parcendo maxime, et miserando manifestas. Mas com este
poder de Deus merecer o nome e significação de máximo, o de Filho de Deus
ainda significa mais. E porquê? __ porque mais é no Filho de Deus o poder
de consagrar seu corpo, que em Deus o de perdoar pecados. Ouvi a razão.
O perdoar pecados consiste formalmente em Deus ceder do jus e direito
que sua justiça tem para os castigar, que é acto superior da sua
misericórdia, parcendo maxime, et miserando: e como neste acto vence a
misericórdia divina a justiça divina, também Deus se vence a si mesmo, que é
«a maior vitória, a maior façanha do seu poder»: Omnipotentiam tuam maxime
manifestas. Porém a do Filho de Deus em se consagrar ainda é maior, porque
mais é poder-se fazer a si mesmo, que poder-se vencer; e isto é o que pode,
e o que fez o Filho de Deus, sumo e eterno sacerdote, quando se consagrou no
sacramento, porque realmente se tornou a fazer e reproduzir a si mesmo. Mas
não parou aqui sua omnipotência e liberalidade, senão que este mesmo poder
de o reproduzirem e fazerem a ele, comunicou aos sacerdotes, quando lhes
disse: Hoc facite in meam commemorationem: «Isto mesmo que eu fiz, fazei
vós». Expressamente S. Germano, venerado e alegado neste mesmo ponto pelos
Padres gregos: Ipse dixit: hoc est corpus meum, hic est sanguis meus; ipse
et apostolis jussit, et per illos universæ ecclesiæ hoc facere: hoc enim
(ait) facite in meam commemorationem. Non sane id facere
jussisset, nisi vim, hoc est, potestatem inducturus fuisset, ut id facere
liceret. Ó poder quase incompreensível, e que só se pode admirar com
o nome de estupendíssimo! Nos seis dias da criação, criou Deus com seis
palavras todo este Mundo, e o sacerdote com quatro palavras faz mais todos
os dias, que se criara mil mundos.
Declaremos bem este poder mal entendido, para que todos o entendam e
pasmem. O lume da Igreja, St. Agostinho, exclama assim: O veneranda
sacerdotum dignitas! in quorum manibus Dei Filius velut in utero virginis
incarnatur!: «Ó dignidade veneranda dos sacerdotes, em cujas mãos o Filho de
Deus, como no ventre sacratíssimo da Virgem Maria, torna outra vez a
encarnar!» Em que consistiu a encarnação do Verbo Eterno? Consistiu na
produção do corpo e alma de Cristo e na produção da união hipostática, com
que a sagrada humanidade se uniu à subsistência do Verbo. E tudo isto faz o
sacerdote com as palavras da consagração, produzindo outra vez, ou
reproduzindo todo o mesmo Cristo. Na mesma conformidade falam S. João
Crisóstomo, S. Gregório Papa, S. Pedro Damião, e o antiquíssimo Teodoro
Ancirano, famoso no Concílio Efesino. Mas porque cuidam alguns que
semelhantes questões são mais debatidas e examinadas pelos teólogos
modernos, quero também alegar as palavras de dois bem conhecidos na nossa
idade. O P. Teófilo Rainaudo, tão perseguidor de opiniões, ou devoções pouco
Sólidas, como se vê nos seus eruditíssimos livros contra Anomala pietatis,
diz o que se segue: Sacerdos Christum sub accidentibus ponit, esse
sacramentale illi conferendo per veram Christi productionem substantialem. E
mais a baixo: Christus non producitur absque unione ad verbum, quia non est
purus homo, sed suppositum ejus est Persona Filii: itaque in sacrificio Deus
in manibus sacerdotum incarnatur. E noutro lugar: Quim etiam sacerdotis
potestas extenditur ad efficiendam unionem hypostaticam, et
transubstantionem panis, et vini. Não romanceio as palavras, porque são
expressamente tudo o que tenho dito. E o P. Eusébio Neriemberg, varão de
tanto espírito, erudição e letras, cujos livros todos trazem nas mãos,
fazendo a mesma comparação, que eu já toquei, entre a criação do Mundo e
consagração do corpo de Cristo, discorre e infere desta maneira: Mundum, et
ea quæ in mundo sunt, produxit potentia Patris: sacerdotis vero potentia
producit Filium Dei in sacramentum, et sacrificium, quo admirabilior
potestas est sacerdotis transubstantiatione Filium Dei, quam creatione res
perituras Dei Patris producentis. Quer dizer: «A potência do Eterno Padre
produziu o Mundo, e tudo o que há no mundo; a potência do sacerdote produz
o Filho de Deus em sacramento e sacrifício; donde se segue que o poder do
sacerdote, na transubstanciação do Filho de Deus, é muito mais admirável que
a potência do Eterno Padre na criação de todas as cousas do Mundo, que
hão-de acabar com ele.»
XI
Esta é, muito Reverendos Padres, a dignidade ou divindade do vos autem,
participada de seu divino protector S. Pedro a esta sua Congregação, tão
digna de ser sua. E que se segue daqui, ou qual é a obrigação dos
congregados? Se eu tivera as cãs que me faltam, alguma palavra lhes pudera
dizer tão importante à veneração alheia, como à decência própria. Mas porque
eu, posto que tão indignamente, tenho o mesmo carácter do sacerdócio, a mim
e a todos os sacerdotes só apontarei uma advertência da Escritura Sagrada,
que todos devemos ouvir temendo e tremendo. A advertência é que
correspondamos de tal maneira às obrigações desta altíssima dignidade, que
se não arrependa Deus de no-la ter dado.
Falando David do sacerdócio de Cristo, diz: Juravit Dominus, et non
pænitebit eum, tu es sacerdos in æternum: «Jurou Deus, e não se arrependerá»
de dar o eterno sacerdócio a seu Filho. Reparemos muito naquele et non
pænitebit eum. Pois de dar o sacerdócio a seu Filho por natureza impecável,
e tão santo e tão Deus como ele, se podia Deus arrepender?! __ Sim. Porque
esse sacerdócio não só o havia Cristo de conservar em si, mas também o havia
de comunicar, como comunicou aos homens: e aqui estava o perigo. Por isso o
jurou, para que não se arrependesse: Juravit Dominus, et nom pænitebit eum.
Ó que desgraça tão horrenda e tremenda, se Deus se arrependesse! E maior
desgraça ainda, se eu e algum outro tão indigno como eu desse motivos
bastantes a este arrependimento! Neste caso (que Deus não permita) aquele
carácter que é tão imortal como a mesma alma, se iria perpetuar com ela em
outra eternidade, que não é a do Céu e da Glória. Quam mihi, etc.