Sofia de Mello Breyner Andresen, poetisa portuguesa, nasceu no Porto a 6 de
Novembro de 1919 e morreu em Lisboa, no Hospital da Cruz Vermelha a 2 de Julho
de 2004. Sua obra reparte-se pela ficção e pela poesia, embora seja nesta última
que a sua inspiração clássica dá ao seu verso uma dimensão solar e luminosa, que
permite ouvir nitidamente a palavra com todo o peso da sua musicalidade limpa,
ao encontro do modelo clássico – em particular o grego, que Sofia admirava. Da
sua infância e juventude, a autora recorda, sobretudo a importância das casas,
lembrança que terá grande impacto na sua obra, ao descrever as casas e os
objectos dentro delas, dos quais se lembra. Explica isso do seguinte modo:
"Tenho muita memória visual e lembro-me sempre das casas, quarto por quarto,
móvel por móvel e lembro-me de muitas casas que desapareceram da minha vida (…).
Eu tento «representar», quer dizer, «voltar a tornar presentes» as coisas de que
gostei e é isso o que se passa com as casas: quero que a memória delas não vá à
deriva, não se perca"
Está presente em Sofia também uma ideia da poesia como valor transformador
fundamental. A sua produção corresponde a ciclos específicos, com a culminação
da actividade da escrita durante a noite: "não consigo escrever de manhã, (…)
preciso daquela concentração especial que se vai criando pela noite fora.". A
vivência nocturna da autora é sublinhada em vários poemas ("Noite", "O luar", "O
jardim e a noite", "Noite de Abril", "Ó noite"). Aceitava a noção de poeta
inspirado, afirmava que a sua poesia lhe acontecia, como a Fernando Pessoa:
"Fernando Pessoa dizia: «Aconteceu-me um poema». A minha maneira de escrever
fundamental é muito próxima deste «acontecer». (…) Encontrei a poesia antes de
saber que havia literatura. Pensava mesmo que os poemas não eram escritos por
ninguém, que existiam em si mesmos, por si mesmos, que eram como que um elemento
do natural, que estavam suspensos imanentes (…). É difícil descrever o fazer de
um poema. Há sempre uma parte que não consigo distinguir, uma parte que se passa
na zona onde eu não vejo.". A sua própria vida e as suas próprias lembranças são
uma inspiração para a Autora, pois, como refere Dulce Maria Quintela (1981:112),
ela "fala de si, através da sua poesia".
Sofia de Melo fez-se poetisa já na sua infância, quando, tendo apenas três anos,
foi ensinada "A Nau Catrineta" (Quintela, op.cit:112):
"Havia em minha casa uma criada, chamada Laura, de quem eu gostava muito. Era
uma mulher jovem, loira, muito bonita. A Laura ensinou-me a "Nau Catrineta"
porque havia um primo meu mais velho a quem tinham feito aprender um poema para
dizer no Natal e ela não quis que eu ficasse atrás… Fui um fenómeno, a recitar a
"Nau Catrineta", toda. Mas há mais encontros, encontros fundamentais com a
poesia: a recitação da "Magnífica", nas noites de trovoada, por exemplo. Quando
éramos um pouco mais velhos, tínhamos uma governanta que nessas noites queimava
alecrim, acendia uma vela e rezava. Era um ambiente misto de religião e magia… E
de certa forma nessas noites de temporal nasceram muitas coisas. Inclusivamente,
uma certa preocupação social e humana ou a minha primeira consciência da dureza
da vida dos outros, porque essa governanta dizia: «Agora andam os pescadores no
mar, vamos rezar para que eles cheguem a terra» (…)."
Baseando-nos nas observações de Luísa Pessoa (2006), desenvolvamos alguns dos
tópicos mais relevantes na sua criação literária:
A infância e juventude – constituem para a Autora um espaço de referência ("O
jardim e a casa", Poesia, 1944; "Casa", Geografia, 1967; "Casa Branca", Poesia,
1944; "Jardim Perdido", Poesia, 1944; "Jardim e a Noite", Poesia, 1944).
O contacto com a Natureza também marcou profundamente a sua obra. Era para a
Autora um exemplo de liberdade, beleza, perfeição e de mistério e é largamente
citada da sua obra, quer citada pelas alusões à terra (árvores, pássaros, o
luar), quer pelas referências ao mar (praia, conchas, ondas).
O Mar é um dos conceitos-chave na criação literária de Sofia de Melo Breyner:
"Desde a orla do mar/ Onde tudo começou intacto no primeiro dia de mim". O
efeito literário da inspiração no Mar pode se observar em vários poemas, como,
por exemplo, "Homens à beira-mar" ou "Mulheres à beira-mar". A Autora comenta
isso do seguinte modo:
"Esses poemas têm a ver com as manhãs da Granja, com as manhãs da praia. E
também com um quadro de Picasso. Há um quadro de Picasso chamado Mulheres à
beira-mar. Ninguém dirá que a pintura do Picasso e a poesia de Lorca tenham tido
uma enorme influência na minha poesia, sobretudo na época do Coral… E uma das
influências do Picasso em mim foi levar-me a deslocar as imagens."
Outros exemplos em que claramente se percebe o motivo do mar são: "Mar" em
Poesia, 1944; "Inicial" em Dual, 1972; "Praia" em No Tempo dividido; "Praia" em
Coral, 1950; "Açores" em O Nome das Coisas, 1977. Neles exprime-se a obsessão do
mar, da sua beleza, da sua serenidade e dos seus mitos. O Mar surge aqui como
símbolo da dinâmica da vida. Tudo vem dele e tudo a ele regressa. É o espaço da
vida, das transformações e da morte.
A cidade constitui outro motivo frequentemente repetido na obra de SMB ("Cidade"
em Livro Sexto, 1962; "Há Cidades Acesas", Poesia, 1944; "Cidade" em Livro
Sexto, 1962; "Fúrias", Ilhas, 1989). A cidade é aqui um espaço negativo.
Representa o mundo frio, artificial, hostil e desumanizado, o contrário da
natureza e da segurança.
Outro tópico acentuado com frequência na obra de Sofia é o tempo: o dividido e o
absoluto que se opõem. O primeiro é o tempo da solidão, medo e mentira, enquanto
o tempo absoluto é eterno, une a vida e é o tempo dos valores morais ("Este é o
Tempo", Mar Novo, 1958; "O Tempo Dividido", No Tempo Dividido, 1954). Segundo
Eduardo Prado Coelho, o tempo dividido é o tempo do exílio da casa, associado
com a cidade, porque a cidade é também feita pelo torcer de tempo, pela
degradação.
Sofia de Melo era admiradora da literatura clássica. Nos seus poemas aparecem
frequentemente palavras de grafia antiga (Eurydice, Delphos, Amphora). O culto
pela arte e tradição próprias da civilização grega são lhe próximos e
transparecem pela sua obra ("O Rei de Itaca", O Nome das Coisas, 1977; "Os
Gregos", Dual, 1972; "Exílio", O Nome das Coisas, 1977; "Soneto de Eurydice", No
Tempo Dividido, "Crepúsculo dos Deuses", Geografia; "O Rei de Itaca", O Nome das
Coisas, 1977; "Ressurgiremos", Livro Sexto, 1962).
Além dos aspectos temáticos referidos acima, vários autores (Pessoa,
op.cit:64-71; Quintela, 1981:112-114; Sena, 1988:174; Berrini, 1985) sublinham a
enorme influência de Fernando Pessoa na obra de Sofia de Melo Breyner. O que os
dois autores têm em comum é: a influência de Platão, o apelo ao infinito, a
memória de infância, o sebastianismo e o messianismo, o tom formal que evoca
Álvaro de Campos. A figura de Pessoa encontra-se evocada múltiplas vezes nos
poemas de Sofia ("Homenagem a Ricardo Reis", Dual, 1972; "Cíclades (evocando
Fernando Pessoa)", O Nome das Coisas, 1977).
Sua Obra:
Poesia
Poesia (1945, Cadernos de Poesia, nº 1) ;-; O Dia da Mar (1947) ;-; Coral (1950)
;-; No Tempo Dividido (1954) ;-; Mar Novo (1958) ;-; Livro Sexto (1962) ;-; O
Cristo Cigano (1961) ;-; Geografia (1967) ;-; Antologia (1968) ;-; Grades (1970)
;-; 11 Poemas (1971) ;-; Dual (1972) ;-; Antologia (1975) ;-; O Nome das Coisas
(1977) ; Navegações(1983) ;-; Ilhas (1989) ;-; Musa (1994) ;-; Signo (1994) ;-;
O Búzio de Cós (1997) ;-; Mar (2001) ;-; Primeiro Livro de Poesia
(infanto-juvenil) (1999) ;-; Orpheu e Eurydice (2001).
Ficção (Contos)
Contos Exemplares (1962) ;-; Histórias da Terra e do Mar (1984).
Contos Infantis
A Menina do Mar (1958) ;-; A Fada Oriana (1958) ;-; Noite de Natal(1959) ;-; O
Cavaleiro da Dinamarca (1964) ;-; O Rapaz de Bronze (1965) ;-; A Floresta (1968)
;-; O Tesouro (1970) ;-; A Árvore (1985).
Teatro
O Bojador (2000 ;-; O Colar (2001).
Ensaio
"A poesia de Cecíla Meireles" (1956) ;-; Cecília Meireles (1958) ;-; Poesia e
Realidade (1960) ;-; "Hölderlin ou o lugar do poeta" (1967) ;-; O Nu na
Antiguidade Clássica (1975) ;-; "Torga, os homens e a terra" (1976) ;-; "Luís de
Camões. Ensombramentos e Descobrimentos" (1980) ;-; "A escrita (poesia)"
(1982/1984), Estudos Italianos em Portugal.
Poesias de Sophia de
Mello Breyner Andresen
Assim o amor
Espantado meu olhar com teus
cabelos
Espantado meu olhar com teus
cavalos
E grandes praias fluidas
avenidas
Tardes que oscilam demoradas
E um confuso rumor de
obscuras vidas
E o tempo sentado no limiar
dos campos
Com seu fuso sua faca e seus
novelos
Em vão busquei eterna luz
precisa
«»
O primeiro homem
Era como uma árvore da terra
nascida
Confundindo com o ardor da
terra a sua vida,
E no vasto cantar das marés
cheias
Continuava o bater das suas
veias.
Criados à medida dos
elementos
A alma e os sentimentos
Em si não eram tormentos
Mas graves, grandes, vagos,
Lagos
Reflectindo o mundo,
E o eco sem fundo
Da ascensão da terra nos
espaços
Eram os impulsos do seu
peito
Florindo num ritmo perfeito
Nos gestos dos seus braços.
«»
Para atravessar contigo o
deserto do mundo
Para atravessar contigo o
deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o
terror da morte
Para ver a verdade para
perder o medo
Ao lado dos teus passos
caminhei
Por ti deixei meu reino meu
segredo
Minha rápida noite meu
silêncio
Minha pérola redonda e seu
oriente
Meu espelho minha vida minha
imagem
E abandonei os jardins do
paraíso
Cá fora à luz sem véu do dia
duro
Sem os espelhos vi que
estava nua
E ao descampado se chamava
tempo
Por isso com teus gestos me
vestiste
E aprendi a viver em pleno
vento