Conto classificado para
publicação na revista japonesa: Nikkei
Bungaku
Eurídice chora a morte do marido de quem já
estava separada havia muitos anos. Ele se
casara com outra e ela com outro. Mas,
continuavam amigos.. Pois, tinham um casal
de filhos, já adultos, que sempre contara
com a assistência do pai. Ele desenvolveu um
câncer e foi tratado com carinho pela nova
esposa, que tivera um filho do primeiro
casamento, e não quiseram outros. O rapaz
vivia com o pai na Europa.
Sempre que podia, Eurídice visitava o
ex-marido. Os três conversavam
civilizadamente. As duas mulheres da vida de
Artur desdobravam-se para tornar mais leves
seus últimos dias de vida. Os filhos, a
exemplo da mãe, também se relacionavam muito
bem com a madrasta.
A Doutora Eunice, especialista em
oncologia, acompanhava o paciente com
desvelo. A esposa e Eurídice sentiam uma
espécie de gratidão, por ter uma
profissional tão dedicada, cuidando de seu
ente querido. Às vezes, quando não tinham
tempo de se revezarem, na permanência ao
lado do enfermo, ela se oferecia para
arranjar uma enfermeira que ficasse ao seu
lado. Algumas vezes a própria esposa
solicitava que a enfermeira fosse
acompanhá-lo, enquanto resolvia alguns
negócios. Chegou a perguntar se precisaria
remunerar a profissional. A médica dissera
que não. Era uma gentileza que a amiga,
enfermeira, lhe prestava, em seu dia de
folga. Os filhos chegaram a comentar com a
mãe, a necessidade de recompensar aquela
profissional, ainda que fosse com um bom
presente.
A esposa, tendo de resolver todos os
negócios da família, com freqüência,
solicitava os préstimos da enfermeira, nos
dias que lhe cabiam fazer companhia ao
marido. Eurídice e os filhos também chegaram
a solicitar a presença da profissional. O
hospital era muito bem aparelhado e a
assistência de primeira qualidade. Mas,
Artur gostava de conversar com suas mulheres
e os filhos.
Numa crise mais grave, as duas ficaram ao
seu lado no hospital. Os filhos foram
chamados às pressas. A equipe médica que o
atendera saiu. Doutora Eunice permaneceu no
quarto ao lado da enfermeira que ajudava a
cuidar de Artur. Ninguém da família a
conhecia. As apresentações foram feitas. Ela
se abraçou à médica e as duas permaneceram
assim, alguns minutos, dois ou três, no
máximo. Depois, dirigiu-se ao moribundo,
tomou suas mãos, e, diante da família
agradeceu por não lhe ter deixado
desamparada, após sair da firma grávida.
A esposa de Artur trocou olhares com
Eurídice, sem entender nada. Os filhos
olharam para a mãe e depois para o pai,
alheios ao assunto. O pai, arquejante,
passava os olhos de uma para a outra das
três mulheres. Eunice pediu que todos
saíssem para o doente descansar. Mas, Artur,
com dificuldade, segurou na mão da esposa
que estava à sua esquerda e na de Eurídice à
sua direita. Todos ficaram atentos. Ele
pediu perdão a uma e à outra e confessou que
tivera uma filha fora do primeiro casamento.
E que era mais nova que o filho mais velho,
apenas dois meses. Eurídice soltou a mão
dele, que continuou o relato: A mãe de sua
filha era sua secretária do escritório de
sua firma. Ao saber da gravidez, despediu-a,
mas, deu-lhe todo o apoio. A filha crescera
e ao completar sete anos, perguntara pelo
pai. Todas as crianças tinham um, por que só
ela não? Então ele a registrara e passara a
acompanhar seu desenvolvimento. Era uma
menina inteligente e conseguiu fazer o
curso superior, e neste momento era uma
excelente profissional.
Lágrimas corriam-lhe pela face. Observado
por quatro pares de olhos incrédulos e dois
surpresos, Artur continuou sua revelação:
Disse que nunca pensou em desrespeitar
ninguém. Mas que, o convívio diário com
aquela moça tão gentil e solícita, acabara
lhe despertando um sentimento que o
arrebatou para seus braços. Ainda tentara se
afastar, pois gostava da esposa que estava
grávida e o amava muito. Então soubera que a
moça também estava grávida. Tentando evitar
comentários e problemas para si e a
secretária, sugeriu que se demitisse. Nada
faltaria para ela e a criança. Ainda
conseguira levar o casamento por alguns anos
e tivera mais uma filha com Eurídice. O
desgaste no relacionamento foi recíproco e
acabaram se desquitando, amigavelmente.
Mesmo gostando da sua ex-secretária, não a
amava o suficiente para lhe propor
casamento. Continuou a lhe prestar toda a
assistência e passou algum tempo sozinho. Só
bem mais tarde, quando os três filhos já
estavam crescidos, encontrou e se apaixonou
pela mulher que hoje é sua esposa.
A esse ponto do relato as três mulheres
choravam. Doutora Eunice enxugou a testa do
moribundo e queria que ele descansasse. Mas,
ele continuou... Nunca deixei faltar nada
para nenhum dos meus filhos. Nem para minhas
mulheres. Nem vai faltar quando eu não
estiver mais aqui. Está tudo resolvido. Meu
advogado já está instruído a resolver
qualquer problema. Todos vão ficar bem. Não
quero brigas após a minha partida.
Era uma cena comovente. Artur com as duas
mãos segurando as das mulheres. Os filhos ao
lado de Eurídice, a médica e a enfermeira ao
lado da esposa. Artur respirou fundo.
Apertou a mão das mulheres e continuou:
Não fiz nada de mal para ninguém. Assumi as
responsabilidades de todos os meus atos.
Esta vida de aperfeiçoamento que levamos
aqui é breve passagem. Cumprimos a nossa
missão e vamos para outra esfera.. Com
certeza encontrarei amparo. Terei todos os
cuidados que tenho aqui, e os parentes muito
amados estarão à minha espera. Não quero que
lamentem a minha partida, apenas orem, para
que eu tenha êxito em minha nova vida.
Eurídice, a mais inquieta, perguntou quem
era sua filha e onde ela estava? Artur
parou de falar, passou os olhos por todos
eles e pendeu a cabeça no travesseiro.
- Não o deixe morrer, eu preciso saber quem
foi a mulher que destruiu meu casamento.
Logo que eu engravidei do meu primeiro
filho, Artur ficou indiferente. Chegava em
casa tarde, sempre cansado, muitas vezes não
jantava. Dizia que estava sem fome..
Engravidei da minha filha tentando
reconquistá-lo, mas não adiantou nada.
Acabamos nos separando. Agora está tudo
explicado.
Doutora Eunice auscultou seu coração e
constatou que estava morto. Pegou suas mãos
e beijou, demoradamente. Depois se abraçou à
enfermeira, aproximou-se do morto, pegou sua
mão e falou: “Obrigada, pai, por me amparar
e cuidar de mim e de minha mãe”. Virou-se
para a enfermeira e agradeceu: “Obrigada
mãe, por me ajudar a cuidar do meu pai”.
Eurídice engoliu em seco e saiu com os
filhos. A esposa a seguiu, pois precisava
tomar as providências necessárias que a
ocasião exigia. Eunice e a mãe permaneceram
ao lado de Artur por mais algum tempo. Era a
oportunidade que tinham, de se despedirem
daquele homem que tanto amaram e que sempre
as trataram com dignidade e respeito.
Praia do Anil, 25 / 04
/09
Benedita Azevedo