FLAGELADOS  D’ALMA

Vilma Matos


       
A campainha da porta toca, uma, duas, três e assim sucessivamente, mas ninguém se habilita a atendê-la. Do lado de dentro, um homem de aparências rústicas faz uma cara feia e resmunga baixinho, quase num sussurro: “Droga, quem será?”
        O visitante não desiste e continua insistindo incansavelmente até que Emanuel tenta esticar o corpo, porém os nervos estão atrofiados. Não consegue sequer um pequeno movimento, faz força e se estica na cama, mas seus músculos estão enrijecidos. Com muita luta, ele consegue se levantar, caindo aqui e ali, até chegar à porta; percebe que, do lado de fora, instalou-se um silêncio, um agradável silêncio. 
        Cambaleando, Emanuel chega até a cozinha, abre a geladeira, bebe quase uma jarra d’água, espreguiça-se e, em seguida, volta à cama. Outra vez a campainha, agora bem mais insistente. Isso o irrita. Na tentativa de não ouvir mais aqueles insuportáveis toques, põe o travesseiro nos ouvidos, o que não surte efeitos. Range os dentes como se fosse um bicho e faz força para se levantar. Quando está quase chegando na sala, vê que não precisa mais abrir a porta, pois alguém já o fez para ele. Olha para o chão com os olhos esbugalhados e constata que a porta está quase a seus pés. Em sua frente, surge uma bela mulher que destemidamente se joga em seus braços e vai logo beijando suas faces, seus olhos, seus lábios e, por fim, um longo e demorado beijo na boca. Parece que esse beijo trouxe Emanuel de volta ao mundo dos vivos. Ele sorri e solta um sonoro grito: - “É ela, a minha querida, a minha amada, a minha idolatrada Bela”.
Emanuel estava ali, parado, agarrado à sua amada. Não se incomodava com as pessoas que o olhavam. Até parecia que, no mundo, só existiam ele e sua querida Bela. Na mesma hora, juntou um pequeno aglomerado de curiosos na porta da casa. Todos queriam entender o que estava se passando ali, mas ninguém ousava fazer perguntas ou comentários. Apenas olhavam aquele protagonista entregue a uma estranha cena de amor. Podia-se ver que tudo ali estava em grande desordem: havia sapatos pela sala, roupas espalhadas por todos os cômodos da casa, a TV permanecia ligada por tempo ininterrupto.
Certo dia apareceu no bairro, como se fosse por magia, uma mulher de mau aspecto. Lola era o nome dela. Não se sabia se era da família de Emanuel ou uma pedinte que não tinha para onde ir. Enquanto isso, ele continuava envolvido, unicamente com seu relacionamento amoroso, sem se dar conta de que o seu “lar” tinha sido invadido por uma criatura estranha, se é que podíamos chamar aquilo de lar!
Os vizinhos nada sabiam sobre Emanuel, pois ele estranhamente repelia todas as possibilidades de comunicação. Quando não passava dias após dias trancado em sua casa, saía muito cedo, deixando a porta escancarada e à mercê de quem quisesse ou tivesse coragem de adentrar. Na rua da solidão, as pessoas já o conheciam e, por isso mesmo, faziam questão de não cumprimentá-lo. Somente quando chegava novo morador na rua (era que) acontecia uma nova tentativa de aproximação. Ele não dava espaço ao seu interlocutor, deixando logo bem claro que não tinha interesse na conversa. Às vezes, parecia ser uma pessoa dita “normal” e muito importante, trajava roupas finas e caras, embora malcuidadas, em outras, andava sujo e desgrenhado. Dava pena só de vê-lo.
 Enquanto o tempo seguia o seu curso, as pessoas se apressavam para não perder as oportunidades diárias, ao contrário de Emanuel, que continuava em seu nefasto e isolado mundo da escuridão. Apenas a estranha Lola tinha acesso a ele. Passaram-se quase três meses até que um carro tipo furgão, parou em frente da casa.  Saiu dele uma jovem loura, alva como se fosse de porcelana, tinha semblante de fada! Com ela, mais quatro homens trajando roupas brancas. Eles eram profissionais da saúde que tinham vindo buscá-los. A Doutora era conhecida de Emanuel que, por ter sido um grande amigo de sua mãe, tinha zelo e carinho especial por ele. Era de partir o coração ver um homem tão talentoso, entregue àquele estado deplorável. Durante o processo de remoção, ele gritava desesperadamente: “- Bela, minha Bela não me deixe ser levado por estes monstros. Socorro! Ajude-me, meu amor”. Enquanto isso, aos berros, a desvalida Lola se agarrava ao corpo dele, dizendo: “- Sou eu, o seu amor, a sua Bela, a sua vida. Olhe para mim, estou aqui pertinho de você”. O carro arrancou em grande velocidade, mas ainda se pôde ver o que estava escrito nas portas traseiras garrafais, em caixa alta: HOSPITAL MENTAL WANESSA QUEIROZ.
Posteriormente, o povo da rua ficou sabendo que Emanuel era um bem sucedido artista plástico que vinha se comportando duvidosamente, que se isola dos amigos e dos próprios familiares.  Segundo comentários, suas esquisitices levaram a esposa a um fim trágico, tendo ela, depois de uma briga, pegado o carro e saído aos prantos e em alta velocidade, há quem diga que isso a vitimou fatalmente. Após o ocorrido, ele ficou sozinho, entregue à própria sorte e aos cuidados de sua amiga Psiquiatra. Com o passar do tempo os sintomas psicóticos de Emanuel foram se agravando. “As medicações controlam parcialmente os sintomas: não normalizam o paciente. Quando isso acontece é por remissão espontânea da doença e não por outro motivo.” Quando as crises diminuíam, ele pintava quadros e os vendia por quase nada.

Lola, anteriormente sofria de ansiedade, portanto, forte candidata à depressão. Tinha longo tempo de lucidez e podia realizar qualquer tarefa... Até que o marido a deixou por outra mais jovem. A partir daí, ela passou a sofrer de depressão crônica. Não tinha filhos e, por ser estrangeira, estava sozinha no Brasil. Ela era paciente da Dra. Wanessa e tinha fugido do sanatório na época em que Emanuel recebeu alta. A pobre mulher se dizia dona de Emanuel, por isso tinha que cuidar dele!
Quanto a Bela, ela era fruto das alucinações de Emanuel. Quando estava em crise, não identificava o que era real ou imaginário. Seu quadro esquizofrênico se agravou com a perda da mulher e o desprezo de seus familiares. Nestes casos, restam prejudicados o paciente e o tratamento propriamente dito. Com Emanuel não foi diferente: ele resistia às seções psicoterapêuticas, não restando alternativa a não ser a adoção, unicamente do tratamento farmacológico. Resta dizer que sua obra é de rara beleza e, até hoje, atrai o público como pouquíssimos artistas conseguem.


 

 

 

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