SEBO LITERÁRIO
Benedita Azevedo
CRÔNICAS
página 2
5. SOLIDÃO
Sentada no restaurante, mais para aliviar os pés da inclemência de um
sapato novo que propriamente para comer, pedi um sanduíche natural e
guaraná.
Ao meu lado um senhor de cabelos brancos tomava sopa de ervilha com
torradas. À nossa frente uma senhora obesa, devia pesar mais de 120
quilos. Estava vestida de maneira peculiar: saia cinza, blusa cor de
telha, sandálias marrom com meia azul. Nos cabelos uma passadeira de
listras rosa, azul escuro, azul claro e vermelho.
Tinha todo aspecto de uma pessoa solitária. Falava alto com os garçons.
Contava detalhadamente a sua história e ria alto, espalhafatosamente.
Tomou a primeira tigela de sopa. Levantou-se, encheu o prato com mais
torradas e liquidou-as num instante. Chamou o garçom e pediu que
repetisse a sopa e as torradas. Continuou a comer e falar alto como se
estivesse representando para uma platéia de duas pessoas: eu e o senhor
de cabelos brancos. Contou que a mãe morreu aos 101 anos noiva de um
homem de 85. Que passara um ano fazendo o enxoval e nesse meio tempo
faleceu deixando viúvo o noivo antes de casar.
Terminei de comer o meu sanduíche com guaraná natural e saí. Ia assistir
à última aula do curso. A mulher continuava a comer e falar alto. Quando
eu já estava na porta de saída, ouvi a sua voz:
- Meu filho, agora trás um pingado com uma broa de milho.
Benedita Azevedo
Praia do Anil, 30 / 07 / 04
6. AS COTAS NÃO RESOLVERÃO O PROBLEMA DA EDUCAÇÃO
Sou afro-descendente, professora de português há trinta anos e fico
abismada com essa bobagem de cotas para negros e pobres. Não concordo.
Sou parda, fui muito pobre, tive de conquistar cada milímetro da minha
trajetória de vida, cada conquista era uma festa interior. A luta foi
muito grande, mas muito boa.
Li nos jornais a triste realidade da avaliação externa da nossa
educação. Como esperar coisa melhor se a educação está relegada a último
plano. Em primeiríssimo lugar estão os interesses políticos. Certa vez
ministrando um curso de atualização em Língua Portuguesa, conheci
professores semi-analfabetos ensinando na 4ª série. Com muito cuidado
tentei alertar a Coordenadoria. Fiquei sabendo que as professoras eram
indicação de um político e que não poderiam ser removidas para outra
função. Como ensinar o que não sabem? E essa questão da cota vai piorar
muito a situação. Teremos cada vez mais professores sem conhecimentos,
ensinando somente o que sabem, gerando um círculo vicioso: Saem dos
cursos de formação despreparados. Arranjam um padrinho político. São
intocáveis dentro da escola. Seus alunos conhecendo ou não os conteúdos
básicos estão sempre com notas ótimas. Na hora de uma avaliação mais
séria, não sabem nada.
Não queremos cidadãos de segunda categoria. Pretos, brancos, pardos,
pobres, precisam ter competência e capacidade para assumir a sua própria
história. Com trabalho digno. Todos têm o direito de ter um ensino, em
todos os níveis, que os preparem para conquistar a sua independência
financeira e psicológica, sem precisar de esmolas, mas de trabalho. Para
isso as escolas de Ensino Fundamental e Médio precisam ser mais bem
estruturadas. Com diretores, professores e técnicos conscientes de suas
responsabilidades diante da formação da criança, do jovem, do adulto.
O que seria de José do Patrocínio, de Cruz e Sousa e tantos outros se
não fossem tão bons ou melhores que seus contemporâneos?
Julho de 2004 – Publicado (Jornal Sexto Distrito, Magé – RJ)
Professora Benedita Azevedo
7. SOB A ÉGIDE DO DINHEIRO
Lamentavelmente, todas as atividades públicas e sociais deste país
encontram-se totalmente desgastadas, tanto no âmbito nacional, estaduais
ou municipais.
Lendo, hoje as manchetes dos jornais, deparei-me com o protesto de
entidades como a UNE, MST e CUT totalmente sem expressão, forçado.
Percebe-se que não há calor e garra nas atitudes como acontece a
qualquer atividade feita por obrigação. Que diferença das manifestações
às quais acompanhei contra a Ditadura ou “dos cara pintadas” do “fora
Color”! Naquela época lutava-se pelo direito dos oprimidos, mas ninguém
era pago para isso. Soltava-se o grito preso à garganta o que dava
legitimidade estudantil de lutar por dias melhores. Não havia o dinheiro
determinando as atitudes dos jovens da minha geração. Queríamos boas
escolas, moradias, alimento na mesa dos pobres. Hoje, lamentavelmente,
percebo que a luta não valeu a pena. As escolas da minha geração
superavam, de longe, as de hoje. Saíamos do Ensino Primário sabendo
conteúdos que, hoje, nossos alunos não assimilam no Ensino Médio. O quê
mudou? Foram as estruturas, as escolas, os profissionais ou os alunos?
Quando poderíamos imaginar que os objetivos das entidades públicas e
sociais chegariam a esse ponto! Os políticos passaram de pedra a
vidraça. De defensores da ética e da moral a coadjuvantes da corrupção.
Embolsaram verbas destinadas à educação, saúde e segurança o tripé
básico para o exercício da cidadania de ricos e pobres. As verbas
destinadas a projetos de desenvolvimento sociais, educacionais, de
segurança e rurais, tão necessários ao desenvolvimento do país,
patrocinam mega-eventos promocionais de partidos e do governo. Quantas
escolas deixam de ser construídas para que nossas crianças se prepararem
para o futuro! Quantas profissões deixam de ser ensinadas para que cada
um seja responsável pelo seu próprio sustento e de seus familiares!
Quantas fábricas, cooperativas, oficinas, comércios e outras atividades
deixam de ser criados para dar empregos aos jovens preparados nas
escolas e oficinas! Não por falta de recursos, pois os vemos migrarem
das repartições públicas para os bolsos de nossos políticos em generosas
somas, tão altas que os nossos carentes nem imaginam o quanto valem.
Como imaginar o que se pode comprar com os quatro milhões que o Sr.
Jefferson recebeu e achou pouco? Ou os dez milhões depositados na conta
do Sr. Duda Mendonça, como parte de uma soma muito maior? Ou os
cinqüenta e cinco milhões emprestados ao PT, com garantia das verbas
públicas?
O grande número de famílias que recebem uma cesta básica no valor de
cinqüenta reais e ficam reféns de quem os distribuiu; veja bem, apenas
distribuiu, pois esse dinheiro saiu do bolso de todos nós brasileiros
que pagamos nossos impostos, e só por isso, em contrapartida, têm de ir
às ruas apoiar os destruidores de suas perspectivas de trabalho e
dignidade, pois os órgãos públicos e sociais que os deveriam defender,
não lhes dando esmolas, mas garantindo-lhes educação, segurança e
trabalho, estão todos de alguma maneira atrelados às benesses do
dinheiro, através de liberação de verbas para lhes desviar o sentimento
de reivindicação. As grandes somas exigidas por alguns políticos
equivalem às pequenas doações para aquietar a UNE e o patrocínio do MST
e da CUT.
O que comanda as atividades públicas, educacionais e sociais, hoje, é a
grana distribuída de acordo com o preço de cada um para apoiar as
atividades de quem está no comando.
Benedita Silva de Azevedo
8. VIOLÊNCIA ALÉM DA CONTA
A violência está presente em todas as cidades brasileiras e pelo que
vemos e ouvimos, em noticiários, pelo mundo inteiro.
Nos EUA, em uma escola onde deveria ser o refúgio de segurança para que
as novas gerações se preparem para construir o futuro, um estudante
enlouquecido mata 32 colegas, num rastro de sangue e de horror.
Em nossa querida cidade do Rio de Janeiro a violência urbana atinge uma
escala insuportável, a ponto de o governador pedir ao presidente ajuda
federal para o enfrentamento entre marginais, a polícia e a população.
Crianças inocentes morrem em meio a tanto desequilíbrio, indo para a
escola ou simplesmente, no trajeto de sua casa para a igreja, o clube,
uma compra ao lado dos pais ou na primeira viagem de metrô sozinha aos
catorze anos.
A insensatez chega ao ponto de fechar as portas de um ônibus e colocar
fogo. São verdadeiros demônios sob o efeito de drogas e o comando de
algozes que, mesmo estando atrás das grades comandam através de
celulares essa câmara de horrores, onde a população já não sabe o que
fazer para proteger seus familiares. Apavoradas as pessoas já não saem
às ruas com tranqüilidade.
A juventude desde tenra idade envolve-se com o tráfico. É a maneira mais
fácil de levar dinheiro para casa. Precisamos resgatar as escolas de
horário integral e nelas ensinarmos algumas profissões para que nossos
jovens desde cedo aprendam a dignidade de serem sujeitos da própria
história. Mas, além de lhes ensinar uma profissão, que sejam gerados
empregos onde possam exercê-las e ter rendimentos para planejarem seu
futuro, a organização de uma família.
A cultura da educação e do trabalho salvaria muitas vidas.
Provavelmente, gastar-se-ia muito menos mantendo essas escolas do que
com reformatórios e prisões. Um cérebro ocupado com estudo e trabalho
será mais difícil de ser manipulado por quem quer que seja. Um salário
ganho com o trabalho, além de manter as pessoas ocupadas pensando na
manutenção da família, deixa-as realizadas por serem responsáveis por
isso. Criam-se perspectivas de superação e a melhor coisa que existe é
saber-se capaz de cuidar de suas vidas sem depender de ninguém. Uma
cesta básica ganha sem contra partida deixa as pessoas dependentes e
facilmente manipuláveis, a começar pelo distribuidor, além de lhes
sobrar todo o tempo para o vício e a marginalidade.
Portanto, precisamos urgentemente, manter essas crianças na escola e
lhes dá trabalho, uma profissão, logo que atinjam 15,16 anos. O
trabalhador-aprendiz formará um hábito, uma cultura de estudo e do
trabalho e não terá tempo para marginalizar-se.
Rio de Janeiro, 19 /04 /2007
Benedita Azevedo
9. FORMIGAS ATACAM
Domingo, dia de jogo no Maracanã. A família inteira fora de casa. Eu,
como sempre, às voltas com textos: crônicas, contos, narrativas,
haicais, trovas, sonetos, poemas e uma montanha de e-mails para ler e
responder.
Estava eu editando uma crônica antiga quando me aparecem à frente casas
de formigas para todos os lados. Desaparece o computador e me vejo em
meio a uma grande extensão de terra, uma plantação de milho. Sem saber
ao certo onde estava comecei a andar no meio do milharal. Percebi que em
cada pé de milho havia um pé de feijão subindo pela haste, cheios de
flores brancas com matiz amarelo ao centro, formando pequenos buquês.
Dali saiam finas vagens tenras, umas pequeninas e outras já bem longas
as quais eu colhia e colocava numa cestinha de vime enfeitada com fita
amarela.
Flutuei entre a plantação com a cestinha cheia de vagens verdes ao lado
da fita amarela. Já não colhia, só observava as belas espigas de milho
que de repente apareceram à minha frente. Algumas com as barbas
multicoloridas em amarelo, rosa e vermelho. Flutuei sobre a plantação
maravilhada com tanta beleza. A certa altura colhi uma espiga com barbas
vermelhas e coloquei em um canto da cesta entre as vagens verdes e a
fita amarela. Continuei a flutuar sobre o milharal.
Em determinada altura percebi que a plantação estava toda destruída.
Aproximei-me para observar a certa distância: Os pés de feijão
desapareceram com suas flores e vagens e os de milho estavam cobertos de
formigas vermelhas, enormes!!!... Sem que eu esperasse as formigas
começaram a me atacar. Fugi dali meio desesperada com elas a me
perseguirem. Dei voltas sobre a plantação tentando desvencilhar-me
daquele formigueiro e elas sempre a me perseguirem. Algumas já me tinham
alcançado e subiam pelas minhas pernas, pelos meus braços, subindo,
subindo... Antes que chegassem ao meu busto e à região pélvica mergulhei
no Rio Itapecuru, que não sei como, apareceu à minha frente. Senti na
pele a carícia de suas águas, irmãs da minha infância. Em volteios
periféricos, identifiquei onde estava. Emergi com a cesta na mão, apenas
com uma vagem presa ao vime e a fita amarela toda molhada. O milho e o
resto das vagens boiaram nas ondulações do meu rio querido.
Ao perceber-me de volta à frente do computador, escrevendo esta crônica,
vi que fora apenas uma divagação e que aquelas formigas devem ter
emigrado para a sua casa de origem.
Benedita Azevedo
10. VOANDO PARA CASA
Sobre as nuvens, o infinito circundado por montes brancos parecendo
neve; uma tênue linha contendo restos de fragmentos escurecidos lembra
as contenções nos rios poluídos. No meio uma vasta extensão azul-celeste
afigura-se a um lago. Flutuam à superfície pequenos montes etéreos.
Ao atingir três mil metros de altitude a aeronave distancia-se de Porto
Alegre e adentra em um campo nevado sobre retalhos de azul, quebrando a
monotonia leitosa de pouca profundidade no fundo azulado. Pequenas ondas
espalhadas pelo vento dão aparência trepidosa à imensidão, cheia de
espuma espalhada sobre a superfície diáfana. Uma abóbada azul escuro
circunda o avião, sendo que, na parte superior, o azul puro adquire um
tom plúmbeo profundo, enquanto o reflexo prateado do Sol nas nuvens
deixa a parte inferior azul-claro brilhante, dando um contraste digno de
um haicai. Na barra lateral, estufada de marfim, separando a parte
superior, pequenos relevos invadem o azul, dando lhe a aparência de
longa colcha rendada nas extremidades, com detalhes assimétricos
azulados, distribuídos ao longo da barra. A sensação de leveza da
aeronave dá-me a impressão de partilhar dos elementos da paisagem. Neste
momento, rendo homenagens a Santos Dumont e a todos aqueles que
trabalharam em prol da evolução deste meio de transporte do século XXI.
Entramos agora, numa área onde as montanhas de nuvens tornam-se densas e
parece uma cordilheira translúcida com depressões em azul. Alongando a
vista essas pequenas elevações vão se diluindo e transformam-se em um
vasto lago prateado pelos reflexos do sol das catorze horas e vinte
minutos.
O comandante acaba de anunciar a passagem sobre São Paulo e que em dez
minutos começaremos a baixar e pousaremos às catorze horas e quarenta e
cinco minutos. Junto veio o comunicado de chuva e trovoada sobre o Rio
de Janeiro.
Em pouco tempo a aeronave mergulha num denso sítio esfumaçado que não
nos deixa ver além do vidro cheio de gotículas estirando-se na direção
traseira, empurradas pela pressão do vento. Instintivamente, olho para
meu companheiro ao lado que, de olhos fechados ronca indiferente às
condições climáticas que nos deixam imerso a um aguaceiro nevado. Os
comissários de bordo conferem as portinholas dos bagageiros a ver se
estão travadas, o que, de certa forma me deixa preocupada. Estiro o
olhar na direção dos passageiros dos bancos laterais e percebo certa
inquietação. Continuamos imersos no nevoeiro líquido, ouvindo apenas o
ronco do avião. Olho o relógio. Catorze horas e quarenta minutos. A
aeronave baixa o que se percebe pela direção das gotículas no vidro,
alongando-se de baixo para cima. Parece-me mais tempo que o previsto.
Olho de novo o relógio. Catorze horas e cinqüenta minutos. Viro-me para
a janela, as gotas agora se alongam horizontalmente, sinal de que
paramos de descer. Os comissários de pé pelos corredores parecem de
prontidão. Os passageiros permanecem quietos. Alguns alongam o pescoço
perscrutando os companheiros e trocam olhares significativos. Mais uma
vez olho a vidraça da janela e vejo o alongamento das gotas em posição
horizontal. Fecho os olhos, cruzo as mãos sobre o colo e começo a rezar,
sem alarde, calmamente. Repetindo o pai-nosso e ave-maria cinco vezes,
em fieira. O chiado do microfone desliga-me da oração. O comunicado soou
objetivo e seco: Recebemos autorização para pousar. Dou uma espiada por
cima das poltronas, na direção da minha esquerda, e vejo alguns
sorrisos. Olho através do vidro e ainda não enxergo nada. As gotas
voltam a alongarem-se em linha inclinada para cima em direção à
traseira. Passo a mão na vidraça e posso vislumbrar o casario lá
embaixo. Desfaz-se o peso da minha inquietação. A aeronave avança em
meio a retalhos de nuvens envoltas em transparente nevoeiro que aumenta
a quantidade de gotas a alongarem-se na vidraça da janela. Quando o trem
de pouso toca o solo, meu marido que se mantivera o tempo todo calado de
olhos fechados, dá um profundo suspiro e exclama:
- Graças a Deus!!!
Rio de Janeiro, 12-11-2007
Benedita Azevedo