CONGESTIONAMENTO

 

CONGESTIONAMENTO

ISABEL de ALMEIDA VASCONCELLOS CAETANO

 



João se pôs a pensar, já que era hora do Brasil no rádio e o jornal amarfanhado num canto já tinha sido lido e relido e, diabos, ele se esquecera dos discos e não podia nem ouvir o seu cedezinho... e aquele trânsito! Há cinqüenta minutos não andava. Depois de ter imaginado todas as possibilidades (acidente com caminhões, operação policial, incêndio ou outra ponte partida) para mais um congestionamento daqueles, resolvera se distrair com os próprios pensamentos. Os olhos ardiam, o nariz irritado, um fedor esta cidade! Fedor de gasolina, diesel, álcool... e do rio morto. Marginal, sete da tarde, São Paulo. O drama de todos. A paciência de todos, abusada paciência.
Para João era extremamente difícil entender tudo aquilo. O que estava, afinal, ele fazendo ali? Como caíra nesta armadilha urbana, nesta vidinha medíocre? Queria ligar para a mulher, sua Madalena, com quem ainda conseguia conversar. Mas a bateria do telefone se esgotara e o fio do viva voz-carregador- ficara esquecido no carro do filho (saíra ontem com o carro do filho, por causa do rodízio). Bah. Rodízio ontem, congestionamento hoje... qual será o aborrecimento de amanhã?Se ao menos tivesse se lembrado de trazer os discos. Amava aqueles discos, agora andava na fase da música americana das décadas de 20,30 e 40. Músicas que falavam de um mundo belo, cheio de esperança, onde o amor era a tônica, amor entre homem e mulher, amor pelas coisas boas da vida. Músicas positivas, bem diferentes da MPB que já fora (e ainda era) a sua paixão. A música brasileira da década de 60 pensava ele tinha um pouco do espírito de Gershwin ou Berlin ou Cole Porter; a inspiração, tanto na bossa nova quanto nestes autores americanos, parecia estar vindo do amor pelo quotidiano, pelas pequenas alegrias e pequenos prazeres da vida. E isto se manteve, em nossa produção musical, na década seguinte, apesar dos temas terem se tornados amargos e de protesto contra a censura e ditadura. Ninguém mais se lembrava. Nem das músicas nem das pequenas alegrias...Melhor nem pensar!
Pensar não era um dos seus passatempos prediletos nestes tempos de mediocridade. Pensar sempre o deixava cheio de raiva. Raiva, porque sabia que todas aquelas pessoas que se diziam suas amigas o abandonariam se ele renunciasse à posição que ocupava. (Todos uns interesseiros) Raiva, porque sabia que suas horas de lazer eram também de trabalho, pois o trabalho ditava também suas relações sociais. Raiva, porque, com exceção de sua Madalena e de dois bons amigos, não havia ninguém com quem dialogar, trocar idéias, crescer, enfim. Todos estavam extremamente ocupados com esta corrida do ouro, este qualquer-coisa-por-dinheiro que parecia ser a única razão da vida.
João lembrava-se com saudade do seminário da Ordem Premonstratense onde estudara. Lá aprendera a questionar tudo, a pensar sobre tudo, a procurar, na sabedoria dos que vieram antes, as suas próprias respostas. Apesar dos dogmas, com seus mestres e colegas havia uma riqueza intelectual, uma sinceridade intelectual, que preenchia a alma. Está certo, ele nunca tivera vocação para o sacerdócio, ainda mais na Igreja Católica. Mas era praxe, nas famílias de então, mandar um filho para o seminário. Além de que, é claro, seminários significavam educação de primeira, grátis. Sempre o dinheiro! País pobre é isso aí.
O trânsito moveu-se. Ufa. Primeira, embreagem, acelerador. Parou de novo.
Quanto tempo havia para pensar e meditar no jardim do seminário... Pirapora do Bom Jesus... Uma cidadezinha simpática, com fama de milagreira, por causa da imagem encontrada no rio...Sempre se encontram imagens nos rios e se constroem santuários em torno disso. Hoje a cidade, embora atraísse milhares de romeiros e fieis, tinha perdido o seu encanto. Nevava, hoje, em Pirapora, uma neve de espuma, da poluição absurda do Tietê e o cheiro... bem, era tão ruim quanto o da Marginal.
João lembrou-se, com nostalgia, de seus tempos de faculdade. Deixara a Igreja, fora aprovado no funil do vestibular para a Faculdade de Economia da USP. Com sua formação cristã, na década de sessenta, só lhe restara engajar-se na AP, Ação Popular, a facção católica da esquerda brasileira. Ah... esquerda! O pensamento cristão, o sonho da justiça social, tudo isso fora perdendo o sentido diante das imensas trombadas com a realidade. A verdade mesmo refletia amargamente, é que ele também corria atrás do dinheiro. O filho não podia ter menos do que o filho do vizinho, Madalena desejava um apartamento na Giovanni Gronchi (que ele, zombando, chamava de "Morumbi fundos"), os amigos reparariam se o uísque não fosse de primeira linha. Os automóveis deviam ser trocados a cada dois anos. E as férias tinham que ser, no mínimo, em Miami ou Cancon.
Onde estava o João que ia salvar o povo?
Povo? Este bando de indivíduos extremamente egoístas e voltados para seus próprios umbigos já não eram mais chamados de povo e, sim, de população.
Onde fora parar a inteligência brasileira? A cultura? Lembrava-se ainda de 1979, quando a inteligência voltara do exílio... e ele passara a ver seus ídolos em sua real dimensão de homens e mulheres, comuns, meio deslumbrados com o que viveram no exílio, meio perdidos numa política dominada pelos coronéis nordestinos e cheia de ranços do militarismo.
Mesmo o presidente... Estava dando certo com o plano real e parecia ter se esquecido do resto...
Bem que ele, João, tentara se enquadrar. Mas alguma coisa dentro dele era ainda jovem, talvez adolescente. Alguma coisa dentro dele ainda lhe dizia que a vida era muito mais que esta corrida (corrida? Estavam todos parados, presos, no congestionamento...) pelo sucesso.
Alguma coisa, alguma coisa que ele perdera, alguma coisa que teimava em se manifestar como uma raiva surda a estragar-lhe o dia, os dias, a vida.
Faltava diálogo, troca, interação.
Mesmo entre os amigos supostamente mais cultos, mais preparados, a própria conversa era competição, não diálogo.
Uma competição estúpida. Como se a razão da conversa fosse exibir seus conhecimentos, sua capacidade de argumentação e, aí, a conversa ficava chocha, chata, vazia, fútil...
Futilidade e vulgaridade, era o que João mais via, mais encontrava, em todos. Lembrou-se do professor de medicina que conhecera recentemente. Um sujeito super gabaritado, um dos sete cientistas mais importantes do mundo em sua área, badalado internacionalmente... Um bobo. Exibido, metido a besta, com o rei na barriga, distribuindo indelicadezas, na sua ânsia de mostrar-se esclarecido... Ou a amiga de sua mulher, toda simpática, toda cheia de mesuras, e, por trás, preparando uma cilada para a sincera Madalena...ah, melhor não pensar.
O trânsito avança mais um pouco.
João se anima, quem sabe agora vai... mas para logo ali. João suspira. Olha para o lado e vê um pequeno bar na rua, adiante. Um boteco, como tantos. Homens reunidos no balcão. Cerveja e pinga. João lembra-se da estatística: 20% dos chefes de família no Brasil são alcoólatras. Também... pensa, o que lhes resta? Em outros tempos, tinham a pureza do futebol. Agora, nem isso. O futebol se transformara também num antro de corrupção, como a política, como os negócios. Ética é uma palavra desconhecida. Sorte dele, que trabalhava em multinacional, onde a vigilância dos gringos fazia todo mundo (ou quase todo mundo) andar na linha. Mesmo assim, nos bastidores, todo o tipo de armações e pequenas conspirações... Ah, meu Deus, será que ninguém percebe que somos todos interdependentes? Vaidade, egoísmo, deslealdade, vulgaridade... O que mais? E, o pior, aquele desamor pelo trabalho. O trabalho estava sendo visto apenas como um meio de ganhar dinheiro e não mais como a simples tarefa de cada um, no conjunto das coisas, para que toda a máquina montada pelos humanos pudesse funcionar e suprir as necessidades de todos. Por analogia, lembrou-se da jovem corretora que o atendera quando começara a procurar o tal apartamento. Percebera, na atitude dela, que ele estava sendo, no mínimo, inconveniente. A moça parecia não estar habituada a encarar os apartamentos que vendia como lares, como locais onde as pessoas iriam viver e conviver. Até os próprios arquitetos pareciam ter se esquecido disso, de que casas (ou apartamentos) são locais onde as pessoas vão viver e conviver. Toda a distribuição da planta era em função de status e aparência. Conforto e necessidades individuais não entravam em consideração. Por exemplo, quando reclamou do tamanho dos quartos (mínimos) em relação à enorme sala, ouviu de volta uma besteira decorada pela moça em seu treinamento, mais ou menos assim:
"Ora, o senhor está ignorando as modernas tendências na concepção que se tem hoje em dia..." Ah, pensara João, onde está aquele corretor que ouvia primeiro as pessoas e depois tentava encontrar o imóvel adequado? Acontece que o chato era ele, João, por não conseguir ficar satisfeito apenas com os itens da aparência e do suposto status que o tal imóvel lhe proporcionaria... Virara as costas para a moça e dera por encerrado o assunto. Madalena ficara decepcionada. Mas ela própria se decepcionara também com a caixa de fósforos que estavam tentando empurrar-lhes por uma fortuna, um lugarzinho vagabundo e apertado, mas com um acabamento de primeira (para impressionar os trouxas) e cheio de facilidades eletrônicas, a maioria, no seu caso, dispensáveis. Resumira, para Madalena, sua impressão numa frase: "Como dizia meu pai: por fora bela viola, por dentro pão bolorento".
À lembrança do pai, João volta seus pensamentos à própria juventude. Havia valores. As pessoas se orgulhavam, sim, mas de sua nobreza de caráter, da sua eterna busca por justiça e solidariedade. O que foi que nos transformou nisso, meu Deus? De onde vem isso? Da sociedade consumista? Ora, o consumo é ótimo. Gera riqueza, empregos, faz girar a economia. Ou terá sido a comunicação? A poderosa Rede Globo e suas mentiras quotidianas, repetidas, desmentidas e novamente afirmadas, por longos trinta anos, por trás dos famosos boas-noites dos Cids Moreiras da vida? Ou foram as novelas, com seus enredos sempre repetidos, mudando só a embalagem, ensinando e valorizando as pequenas maldades do dia a dia?
O pior de tudo -- João muda o curso dos pensamentos, já que não se sente capaz de responder às indagações que faz a si próprio -- era este viver irresponsável; este viver como se não fossemos morrer, viver como quem tem todas as respostas...
Para João, o planeta era apenas um grão de areia no Universo. Uma bolinha no cósmico, mas viva e pulsante. E os seres humanos apenas uns bichinhos que habitavam, por muito pouco tempo, dentro da pele do planeta, esta pele feita de ar. Pele, aliás, bastante estragada, bastante corroída pela ação dos próprios seres humanos.
Restava, no entanto, um consolo: tudo isto era apenas um breve momento na história. Outras civilizações houve. Outras maneiras de pensar. Outras elites dominantes. Outras haveria. Mas que era triste ver o seu país reduzido à vulgaridade e seu povo reduzido à "população", lá isso era...
O trânsito andou novamente. Primeira, embreagem, acelerador...ops! Não é que está andando? João imprime mais velocidade ao carro e, como por milagre, o congestionamento se desfaz. Agora todos andam em pistas cheias, um grudado no outro, a uns 60 km/h. Nada mal. João procura vestígios do que possa ter engarrafado o trânsito até ali, mas não consegue entender a razão...
João, na verdade, consegue entender muito pouco.

 

ISABEL de ALMEIDA VASCONCELLOS CAETANO


 

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