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SEBO LITERÁRIO
autor
O uirapuru é um
pássaro irrequieto e pequeno:
mede somente uns 12,5cm de comprimento. Seu
nome científico é cyphorhinus aradus e ele pertence
à família das troglodytidae. Esse pássaro se alimenta,
basicamente, de frutas e insetos e, o seu habitat
natural, são as matas e florestas da Amazônia. O visual
do uirapuru não é atraente: ele possui uma plumagem
pardo-avermelhada, ou verdeoliva, com a cauda
avermelhada, um bico forte e pés grandes. Os índios
chamam-no irapuru ou guirapuru, que significa pássaro
ornado, pássaro emprestado, ou pássaro que não é
pássaro, e cuja missão é presidir o destino dos outros
pássaros. Seu canto é tão belo que, ao ouvi-lo, as aves
param de cantar, como se estivessem enfeitiçadas.
O primeiro estrangeiro a ouvir o canto do uirapuru,
e a registrar a sua melodia foi o botânico Richard
Spruce, em uma excursão ao rio Trombetas, na metade
do século XIX (CASCUDO, 1979). O botânico escreveu
que o uirapuru cantava para todo o mundo, como uma
caixa de música.
Eram inconfundíveis os claros sons metálicos,
exatamente modulados como por um instrumento
musical. As frases eram curtas, mas cada uma
incluía todas as notas do diapasão, e depois de
repetir a mesma frase umas vinte vezes, passava
subitamente para outra, de quando em vez com
a mudança de clave de uma quinta-maior, e
prosseguia por igual espaço. Normalmente fazia
uma breve pausa, antes de mudar de tema. Eu
já o escutava, há bastante tempo, quando me
ocorreu a idéia de fazer a transcrição musical...
Simples como é, esta música era vinda de um
músico invisível no fundo da mata selvagem, de
uma magia que me encantou quase uma hora.
Então, bruscamente, parou, para recomeçar tão
longe que mal pude percebê-la a extinguir-se (p.
888).
No Norte do Brasil, existem várias lendas sobre
o uirapuru. Uma dessas lendas salienta que um jovem
guerreiro se apaixonou pela esposa de um cacique.
E, como não podia se aproximar dela, solicitou ao
deus Tupã que o transformasse em um pássaro.
Tupã, prontamente, atendeu ao seu pedido. Notando,
porém, que, todas as noites, um pássaro cantava para
a sua esposa, o cacique começou a persegui-lo, com
a intenção de prendê-lo. A ave, entretanto, voou para
dentro da floresta, e o cacique não pôde acompanhá-la.
Todas as noites, então, o uirapuru retornava e cantava
para a sua amada, desejando que, através do esplêndido
canto, ela o descobrisse. Muito embora seu objetivo não
tivesse sido alcançado, o uirapuru continuou cantando
para sempre.
Outra lenda ressalta que, em uma tribo, havia
duas índias apaixonadas pelo mesmo cacique. Sabendo
disto, ele prometeu casar com aquela que tivesse a
melhor pontaria com a flecha. Houve um campeonato e
uma delas ganhou a disputa. Contudo, a índia perdedora
– chamada Oribici - chorou, tanto, que suas lágrimas
foram suficientes para formar uma fonte e um córrego.
Por outro lado, Oribici percebeu que o cacique amava
muito a sua irmã e esposa. Desse modo, decidiu se
resignar com a falta de sorte e não disputar mais aquele
amor. O generoso Tupã, compadecido com o pesar de
Oribici, transformou-a em um pássaro, para que, do alto,
ela pudesse ver, sempre, o seu amado. Além disso, deu-lhe,
também, um canto belíssimo, capaz de enfeitiçar
todos os demais pássaros da floresta, compensando-a,
desse modo, pelo amor que não pôde concretizar.
Uma terceira lenda destaca que a flecha de uma
donzela apaixonada atingiu um pássaro de plumas
vermelhas e de canto perfeito, transformando-o em
um guerreiro forte e belo. Havia, porém, um feiticeiro,
aleijado e muito feio, que amava aquela donzela e
sentia ciúmes do guerreiro. Sendo assim, ele tocou
uma determinada música, com sua flauta encantada, e
fez com que o guerreiro desaparecesse para sempre.
A partir desse dia, só restou o lindo canto do guerreiro
nas matas e florestas da Amazônia. Segundo a lenda,
trata-se do próprio uirapuru.
Em relação a esse pássaro, portanto, o real e
o lendário parecem se confundir. Os pesquisadores
afirmam que ele nunca repete as mesmas frases
musicais e, por essa razão, é considerado, pelos
nativos, como um ente sobrenatural. Depois de morto,
não somente o seu corpo, mas, algumas partes dele, ou
do seu ninho, são considerados talismãs, sendo muito
procurados em mercados e feiras. Para os índios tupis,
o uirapuru representa um Deus que adquiriu a forma
de pássaro. Por sua vez, as pessoas acreditam que
um amuleto contendo alguma parte de seu corpo, ou
ninho, atrairá clientes em estabelecimentos comerciais.
Crêm, também, que ele atrai a felicidade: o homem
que carregar uma simples pena, daquela ave, tornar-se-á irresistível para as mulheres, e terá muita sorte
nos negócios. E, a mulher que conseguir um pedaço
do seu ninho, conseguirá viver com o homem amado,
mantendo-se este fiel e apaixonado para todo o sempre.
Quem ouvir o canto do uirapuru, que faça um pedido,
imediatamente, porque este será realizado.
Cascudo registrou:
Não há no Pará, no Maranhão e Amazonas
muitos taverneiros que não tenham na soleira da
porta enterrado um guirapuru, a quem atribuem a
virtude de conduzir fregueses à sua taverna. Um
guirapuru, por este motivo, custa caro... Muitos
comerciantes compram tais amuletos apenas
para deixá-lo em uma gaveta do estabelecimento,
ou enterrá-lo na soleira da porta, acreditando que
o mesmo atrairá fregueses.
É dificílimo se adquirir uma pena do uirapuru. Os
pássaros sempre o avisam da presença de predadores,
e ele voa para longe. Consegue-se, somente, adquirir
penas velhas, quando elas se desprendem de seu corpo
e caem ao chão. Os amuletos são confeccionados,
então, com essas penas.
O uirapuru serviu de inspiração para a Música
Popular brasileira. Jacobina e Murilo Latini compuseram
uma música em sua homenagem, tendo ela sido
interpretada por Pena Branca e Xavantinho. Sua letra
segue abaixo:
Uirapuru
Uirapuru, uirapuru,
Seresteiro cantador do meu sertão;
uirapuru, uirapuru,
Ele canta as mágoas do meu coração.
A mata inteira fica muda ao teu cantar,
Tudo se cala para ouvir tua canção,
Que vai ao céu numa sentida melodia,
E vai a Deus em forma triste de oração.
Uirapuru, uirapuru,
Seresteiro cantador do meu sertão;
uirapuru, uirapuru,
Ele canta as mágoas do meu coração.
Se Deus ouvisse o que te sai do coração,
Entenderia que é de dor tua canção,
Que nos seus olhos anda o pranto em moradia,
Que daria para salvar o meu sertão.
Uirapuru, uirapuru,
Seresteiro cantador do meu sertão;
Uirapuru, uirapuru,
Ele canta as mágoas do meu coração.
Tal canção pode ser apreciada no site:
http://www.kboing.com.br/musica-e-letra/nilo-amaro-eseus-cantores-de-ebano/82319-uirapuru/.
Outra música sobre o maravilhoso pássaro foi
composta por Waldemar Henrique, em 1934. Eis a sua
letra:
Uirapuru
Certa vez de montaria,
Eu descia o Paraná,
E o caboclo que remava,
Não parava de falar,
Oh, oh, não parava de falar,
Oh, oh, que caboclo falador!
Me contou do lobisomem,
Da Mãe-D’água e do Tajá,
Disse do Jurutahy,
Que se ri pro luar,
Oh, oh, que se ri pro luar,
Oh, oh, que caboclo falador!
Que mangava de visagem,
Que matou surucucu,
E jurou com pabulagem,
Que pegou o uirapuru,
Oh, oh, que pegou o uirapuru,
Oh, oh, que caboclo tentador!
Caboclinho, meu amor,
Arranja um pra mim,
Ando roxo pra pegar unzinho assim...
O diabo foi-se embora,
E não quis me dar,
Vou juntar meu dinheirinho,
Pra poder comprar...
Mas no dia em que eu comprar,
O caboclo vai sofrer,
Eu vou desassossegar,
O seu bem querer,
Oh, oh, o seu bem querer,
Oh, oh, ora deixe ele pra lá!
As lendas relativas ao uirapuru inspiraram,
ainda, vários artistas. Em 1917, o compositor e maestro
Heitor Villa-Lobos, baseado em material folclórico
coletado em viagens pela Região Norte, compôs um
poema sinfônico. Nesse material, havia a narrativa de
uma lenda bem simples: uma jovem, ao ouvir o canto
do uirapuru (considerado como o rei do amor), atirou
uma flecha em seu coração. E o transpassar da flecha
transformou o pássaro em um belo rapaz.
São raras as pessoas que conseguem ouvir
(ou ouviram) o uirapuru cantar. Isto se deve a alguns
aspectos:
1) o pássaro canta nos galhos mais altos das matas e florestas amazônicas;
2) seu canto visa a atrair a fêmea para o acasalamento, durando de dez a quinze minutos;
3) o canto ocorre, apenas, ao amanhecer e ao anoitecer; e
4) o uirapuru canta, tão-somente, durante a
construção do seu ninho (cerca de quinze dias por ano).
Além disso, há que se levar em conta outro fator que
tem contribuído para o extermínio do uirapuru: a caça
predatória, em busca de elementos para a confecção
de amuletos.
Cabe salientar, por fim, que a presença do
uirapuru, um pássaro tão pequeno quanto um pardal,
veio enriquecer o folclore brasileiro através de lendas,
mitos, crenças em seus poderes sobrenaturais,
melodias, canções, e sinfonias compostas em seu nome.
Não há canto mais belo que o dele. Todos os pássaros
parecem ficar enfeitiçados, ao ouvi-lo cantar. É que,
nenhuma ave, no planeta Terra, ousaria interromper o
mais raro, melodioso e sagrado dos mestres canoros.