A hamaca, sendo rede é um invento
dos indígenas da América do Sul,
cujo nome de origem é denominada
pelos indígenas do Brasil de ini. A
palavra rede foi empregada pela
primeira vez pelo escrivão da frota
de Pedro Alvares Cabral — Pero Vaz
de Caminha, em carta à Portugal,
onde descrevendo a povoação dos
Tupiniquins, seus hábitos e
costumes, relata a maneira de
dormir, daqueles indígenas:
"Foram-se lá todos; e andaram entre
eles. E segundo depois diziam, foram
bem uma légua e meia a uma povoação,
em que haveria nove ou dez casas, as
quais diziam que eram tão compridas,
cada uma, como esta nau capitaina. E
eram de madeira, e das ilhargas de
tábuas, e cobertas de palha, de
razoável altura; e todas de um só
espaço, sem repartição alguma,
tinham de dentro muitos esteios; e
de esteio a esteio uma rede atada
com cabos em cada esteio, altas, em
que dormiam". E foram as mulheres
dos colonos portugueses que
adaptaram a técnica indígena,
substituíram o tucum pelo algodão
(para render em um tecido mais
compacto) e aplicaram varandas e
franjas ornamentais. Sua difusão no
Nordeste teve a colaboração ativa
dos sacerdotes que, espalhando a
técnica dos adventícios e entre as
gerações que se sucederam tornaram
hereditários o artesanato.
A rede indígena é tecida em cipó e
lianas; as mulheres dos colonos
portugueses adaptaram a técnica
indígena, passando a fazer redes em
tecido compacto e com varandas e
franjas ornamentais. A rede durante
o Brasil Colônia, foi utilizada
também como meio de transporte,
sendo nelas, carregados por
escravos, os colonos e suas famílias
em passeios pela cidade e viagens. O
folclorista nordestino Luís da
Câmara Cascudo no seu ensaio "Rêde-de-Dormir"
faz uma apologia a esta peça
domésticas integrante da vida
cotidiana das gentes do Norte e
Nordeste brasileiros, comparando-a
com o leito, e enaltecendo as
vantagens da rede: "O leito
obriga-nos a tomar seu costume,
ajeitando-se nêle, procurando o
repouso numa sucessão de posições. A
rêde toma o nosso feito,
contamina-se com os nossos hábitos,
repete, dócil e macia a forma do
nosso corpo. A cama é hirta, parada,
definitiva. A rêde é acolhedora,
compreensiva, coleante, acompanha,
tépida e brandamente, todos os
caprichos da nossa fadiga e as
novidades imprevistas do nosso
sossêgo. Desloca-se, encessantemente
renovada, à solicitação física do
cansaço. Entre ela e a cama, há a
distância da solidariedade à
resignação".
O legado indígena, no que se refere
a artefatos, foi de suma importância
para a sobrevivência da sociedade
brasileira nos primeiros anos do
descobrimento e durante toda a época
colonial. A bibliografia é bastante
vasta a este respeito, mas nada
melhor do que transcrever um trecho
da obra de Sérgio Buarque de
Holanda, Caminhos e Fronteiras,
quando o autor revela a importância
da rede na capitania de São Paulo no
século dezesseis até hoje: "Ao
visitar pela Segunda vez a capitania
de São Paulo, tendo entrado pelo
Registro da Mantiqueira,
Saint-Hilaire impressionou-se com a
presença de redes de dormir ou
descansar em quase todas as
habitações que orlavam o caminho. O
apego a esse móvel (...) pareceu-lhe
dos característicos notáveis da
gente paulista, denunciando
pronunciada influência dos índios
outrora numerosos na região.
(...) É sabido que o europeu
recém-chegado ao Brasil aceitou o
costume indígena sem relutância, e
há razão para crer que, nos
primeiros tempos, esses leitos
maneáveis e portáteis constituiriam
objeto de ativo intercâmbio com os
naturais da terra.
(...) Com as peças de serviço gentio
da terra - tamoio, tupinaen, carijó...
- introduziram-se também, nas casa
paulistas, as cunhãs tecedeiras. E,
com elas, os teares de tecer rede,
onde a tradição indígena, pouco
modificada neste caso, pela
influência das técnicas adventícias,
tem permanecido até nossos dias.
(...) A importância que a rede
assume para nossa população colonial
prende-se, de algum modo, à própria
modalidade dessa população. Em
contraste com a cama e mesmo com o
simples catre de madeira, trastes
sedentários por natureza, e que
simbolizam o repouso e a reclusão
doméstica, ela pertence tanto ao
recesso do lar quanto ao tumulto da
praça pública, à morada da vila como
ao sertão remoto e rude.
(...) O fato é que as redes - redes
de dormir ou de transportar - são
peças obrigatórias em todos os
antigos inventários feitos no
sertão".
Curioso observar que a rede copiada
pelos europeus do século XVI seguiu
padrões planos, tal como as camas
onde se dorme no sentido do
comprimento. na rede indígena, ao
contrário, deita-se na diagonal. a
rede deve ser frouxamente atada,
para nela podermos deitar como se
estivéssemos em uma suave bacia com
a forma e tamanho do corpo. As
linhas longitudinais da rede
indígena têm o mesmo comprimento de
punho a punho. Quando atamos a rede
de maneira frouxa, determinamos uma
elipse e uma elipsóide. Quando
sentamos no meio da faixa mediana,
fixaremos com o nosso peso, aquela
faixa que terá a largura de nosso
traseiro. Em seguida, se quisermos
deitarmos na rede, isso só poderá
ser feito com as pernas inclinadas
para cima. Mas os dois lados da rede
ainda estarão livres. Podemos então
deslizar as pernas para um lado e o
tórax para o outro, até alcançarmos
com todo o corpo a superfície da
elipsóide. A direção de repouso
entre a crista central e a parede
lateral da elipsóide forma um ângulo
de aproximadamente 30 graus com
relação ao plano vertical dos
punhos.
Em 1492 e nos anos seguintes os
primeiros europeus na América
tropical ficaram admirados com o
costume indígena de dormir em redes
suspensas. Antes da viagem de
Colombo, a rede de dormir era
desconhecida fora da América, onde
reinava desde o México e das ilhas
do Caribe até o Sul do Brasil e o
Paraguai, da Colômbia a Pernambuco.
No século XVI os europeus tiveram a
idéia de usar rede de pesacar ou
pedaço de lona para dormir, sem
levar a sério as instruções práticas
de uso e sem antender a qualquer
princípio físico. Pensando em dormir
no sentido do comprimento, começaram
a efetuar os chamados melhoramentos.
Muito antes de a palavra aruak
humaca transformar-se, por uso
popular, na palavra holandesa
hangmat (esteira suspensa) ou na
alemã Hangematte, a rede indígena oi
deformada em esteira esticada, no
sentido do comprimento, com as
cordas de atar, e no sentido da
largura, por duas traves de madeira.
Nos navios europeus - e os armadores
haviam descoberto que cabiam mais
marinheiros por metro cúbico quando
estes dormiam em redes - tentou-se
de novo melhorar as redes sem
resultado, pois ninguém teve a idéia
de voltar ao modelo original em tudo
superior. A rede de dormir jamais se
popularizou nos outros continentes
porque o modelo exportado foi o
europeu. Na Àfrica levadas pelo
português, as redes foram usadas
apenas como macas, transportando
pessoas doentes, ou durante a sesta.
Á noite continuava-se a dormir em
esteiras no chão duro, ao alcance de
formigas, ratos e cobras.
Câmara Cascudo nos dá mais detalhes:
A rede dos Bakairi é feita de malhas
bastante grossas e tem a forma de um
retângulo comprido (2 1/3 m x 1 ¼
m). As linhas longitudinais são
atravessadas, com intervalos
irregulares (entre 2 e 3,5 cm) pelas
transversais; nas malhas pode-se
facilmente enfiar o dedo. O tecido é
muito simples. Dois fios
longitudinais, mas finos, de 1mm de
espessura. Deste, em número de
quatro, dois correm, ondulados, na
frente dos longitudinais, e dois
atrás dos mesmos, entre os quais se
cruzam. De ambos os lados faz-se um
nó com as extremidades dos fios
transversais; assim encontram-se, em
cada um dos lados compridos, uns 70
nós, feitos com as quatro pontas de
fio. O laço que fica livre em cada
toco, é enrolado, no meio, por um
fio, de maneira a deixar de um lado
uma colcheta para receber os cordões
com que se pendura a rede. Do outro
lado partem, deste ponto fixo –
divergindo para a rede, quando esta
é armada – os fios longitudinais
ainda não cruzados pelos fios da
trama numa extensão de 30 a 35 cm.
Além desta rede típica, de algodão,
existe outra, na qual os cadilhos
são formados de cordel de fibra de
buriti (Mauritia vinifera, Mart) e
os fios da trama são de algodão.
Estes fios transversais de algodão
são às vezes muito escassos; os
Mehinaku deixavam entre eles uma
distância de dez a vinte
centímetros. As redes de buriti são
usadas sobretudo pelas tribos
nu-aruak. Os Bakairi mansos do
Paratinga também as possuíam;
disseram-me que só foram
introduzidas entre eles pelo velho
Caetano, cacique da aldeia. As redes
de fibra de palmeira tinham
geralmente comprimento igual ou
pouco maior (até 2 ¾ m) que as de
algodão, mas uma largura inferior a
um metro, de modo que quase não era
possível nelas a posição diagonal
cômoda, que, com razão, o brasileiro
gosta de tomar.Uma terceira
modalidade resultava de um emprego
mais abundante do algodão. Vimos
entre os Auetö todos os graus
intermediários entre 6-7 cm, até 1-2
ou mesmo ½ cm de distância entre os
fios transversais do algodão.
Teciam-nas, finalmente, de modo a
ficarem os fios de algodão tão
juntos um do outro que encobrissem
totalmente a fibra de tucum,
constituindo um pano quase tão
compacto quanto a lona.
Nesse tecido a fibra longitudinal de
tucum, com uma largura aproximada de
1,5 mm, era envolvida por dois pares
de fios transversais de algodão os
quais, entre aquela e o seguinte fio
longitudinal, se cruzavam não uma,
mas duas vezes. Os lados compridos
da rede eram naturalmente orlados de
grande número de nós próximos um do
outro. Nos quatro cantos as
extremidades das madeiras se
prolongavam um pouco, terminando em
borla. Muitas vezes observam-se
nesses tecidos, listas transversais
azul-pretas, obtidas, de 40 em 40 cm
pela aplicação de algodão tinto.
Aliás, todas as redes eram de cor
parda. Tanto a de algodão como a de
fibra de palmeira, que já por
natureza é pardo-clara, tomavam uma
cor parda suja pelo contato com o
corpo ungido com o vermelho do
urucum. As redes de algodão puro
constituíam uma especialidade dos
Bakairi; também eles já possuíam no
Kulisehu, redes de buriti. O pano
mais consistente era fabricado pelos
Auetö. Eram singulares as redes que
os Nahuquá tinham para crianças de
pouca idade; consistiam simplesmente
num feixe de palha amarrado nas duas
extremidades.
Essas formas muito variadas de redes
estavam em vias de se uniformizarem.
Entre os Suyá dominava ainda o
antigo costume dos Gê, i. É.,
dormiam em grandes esteiras de
folhas de palmeira; na época da
nossa visita estavam começando a
adotar a rede; tinham alguns
exemplares e também já as
fabricavam. Talvez a arte de
tecê-las lhes tivesse sido
transmitida pelas mulheres trumai
que as possuíam. Já depois da viagem
de 1884 chamei a atenção para o
paralelismo existente entre a região
do Xingu e a das Guianas, dizendo
que tanto lá como aqui a rede de
algodão parecia de origem caraíba,
sendo proveniente dos Nuaruaque a de
fibra de palmeira. Lembrei também
que a essa concordância etnográfica
corresponde exatamente a lingüística.
Em ambos os casos a técnica nasce da
arte de trançar, o que difere é só o
material. Os mais atrasados eram os
Bakairi, que não possuíam o tecido
em forma de pano. Também é notável o
fato de que os torçais destes,
embora preenchessem completamente o
seu fim, eram de confecção menos
artística que os das outras tribos.
Podia-se observar uma técnica
dirigida em igual sentido numa
espécie de esteira-crivo. As hastes
eram envolvidas, mais ou menos
cerradamente, com o fio de algodão,
de modo a se obterem esteiras
consistentes e rígidas, mas ao mesmo
tempo muito movediças, entre as
quais se compensava a massa de
mandioca para espremer o líquido.
Vimos também pedaços de pano
empregados para o mesmo fim.
Fonte: http://www.bibvirt.futuro.usp.br/textos/humanas/educacao/tematica/cap15.html
http://www.noolhar.com/opovo/delas/105363.html
http://www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html
http://www.instituto-camoes.pt/cvc/literaturaingles/litviagens.htm
http://www.mre.gov.br/acs/diplomacia/images/foto131.jpg
http://jangadabrasil.com.br/setembro13/pa13090b.htm
http://jangadabrasil.com.br/novembro15/of15110a.htm
acesso em março de 2003
Revista Ciência Hoje, SBPC, nov/dez
1992 página 104
LUIS DA CAMARA CASCUDO. Rede de
Dormir: uma Pesquisa Etnográfica. 2
ed. São Paulo: Global, 2003