A Última Questão
in "A Boa, a Má e a Vilã"
Nem toda a gente sabe como são marcadas as férias
móveis. Há até quem julgue que o posicionamento do
Domingo de Páscoa (data que determina todas as
outras) no calendário de cada ano se subordina a uma
espécie de capricho aleatório da Igreja Católica.
Nada mais falso. Muito antes de Cristo, os judeus
comemoravam na Páscoa a fuga do seu povo escravizado
do Egipto, conduzido por Moisés através do Mar
Vermelho rumo à Terra Prometida. A festividade tinha
lugar na primeira lua cheia de primavera do
hemisfério norte. Só dezassete séculos depois a
Igreja Católica (que já tinha absorvido grande parte
da cosmologia judaica) no Concílio de Niceia, em 325
DC, fixou para a data da Páscoa cristã (festejo
oficial da Morte e Ressurreição de Cristo) “o
primeiro domingo após a primeira lua cheia que
ocorre após ou durante o equinócio da primavera
boreal”. Para o seu cálculo existe um algoritmo
matemático devido a Gauss, que pode ser obtido em
certos compêndios de astronomia ou, mais facilmente,
na Internet.
Poder-se-iam citar muitos outros exemplos, todos
eles ilustrativos da generalizada ignorância que
grassa por aí. Porém, não me vou alongar nesta
matéria, sob pena de enfastiar o leitor. A realidade
é que a maioria das pessoas desconhece a explicação
dos mais simples fenómenos do quotidiano. Nem se
interessa por eles. Estão tão ocupados a viver as
suas vidas, centradas exclusivamente em si próprias,
que adquirem uma espécie de miopia mental e não
conseguem enxergar num raio superior a dois metros.
E (confesso-o!) eu própria nunca teria sabido muito
do que hoje sei se não tem acontecido travar
conhecimento com o Professor Arlindo dos Reis.
Porém, comecemos pelo princípio. Sou gestora e
(perdoar-me-ão pela redundância) orgulho-me de saber
gerir a minha vida. Prezo a independência e o
equilíbrio. Não é a própria existência uma travessia
no arame, sem rede, onde qualquer desatenção pode
ser fatal? Por ter essa percepção tão profundamente
inculcada, procuro seguir uma trajectória suave,
harmoniosa, sem movimentos bruscos.
Pondo de lado falsas modéstias, sou inteligente. E,
como todas as mulheres de craveira superior, tenho
sentido na pele, desde sempre, uma imensa
dificuldade em encontrar um homem à altura.
Refiro-me a alguém que preencha os requisitos
necessários para se assumir uma ligação quotidiana e
duradoura. Alguém dotado de um cérebro autêntico e
cujo convívio permanente não me enfastie ao fim de
duas semanas.
No entanto, gosto do amor. Por isso, de quando em
quando, tomo um amante, de preferência um homem
casado. Porquê? Porque, enquanto não encontro o meu
eleito, os homens casados oferecem vantagens
inquestionáveis. São como um fato acabado de sair de
uma lavandaria, sempre impecável, sem uma nódoa, sem
um vinco. Quando vêm ter connosco o seu enlevo é
total. Mimam-nos, apaparicam-nos, dão-nos os
melhores momentos das suas vidas, aqueles em que se
sentem libertos de problemas e preocupações. Somos o
seu refúgio, a sua consolação, a sua fuga da rotina,
e querem verdadeiramente ver-nos felizes.
Por estas razões, quando penso na roupa suja e nas
zangas domésticas, tenho uma sincera pena das
mulheres casadas. E chego a sentir uma simpática
comiseração pelas esposas dos meus amantes.
Pobrezinhas, que lhes aturam os podres, que têm de
os tratar quando estão doentes ou pacificar quando
estão mal-humorados! Enquanto é a mim, na qualidade
de amante, que estão reservados os jantares à luz de
velas, os presentes românticos e as idílicas viagens
de negócios.
Quando decidi fazer uma pós-graduação, encontrava-me
numa fase algo obscura da minha vida, tanto pessoal
como profissionalmente. Não que considerasse a
obtenção de um grau académico adicional como um
requisito para um incremento do atractivo das
funções que na altura desempenhava. Contudo,
sentia-me imersa num entediante lusco-fusco. E o meu
espírito assemelhava-se a um cavalo indomável,
palpitante de clarividência e ávido de novos
conhecimentos.
Imbuída de entusiasmo, dirigi-me à Faculdade de
Ciências de Gestão e consultei a lista de mestrados
e pós-graduações previstos para o ano lectivo
seguinte, cujo início se avizinhava. O rol era
extenso e uma linha, apenas uma, ressaltou de
imediato aos meus olhos:
O CARACTER FALACIOSO DA PREVISÃO NA GESTÃO
ESTRATÉGICA
E, do lado direito da lista, o nome do orientador -
Professor Doutor Arlindo dos Reis.
Não tive um segundo de hesitação. Impulsionada por
uma espécie de espírito premonitório, inscrevi-me.
E, durante as três semanas que durou a espera,
imaginei curiosa qual seria o conteúdo da temática
que se subordinava a uma denominação tão
extraordinária. Afigurava-se-me que me iriam ser
transmitidos conhecimentos valiosíssimos, plenos de
aplicabilidade prática, sobejamente merecedores do
tempo e do dinheiro com eles consumido.
Quando as aulas começaram, verifiquei que registavam
uma grande aderência. Pelo menos, pelos meus
parâmetros. Havia dezenas de alunos inscritos, de
ambos os sexos, todos jovens recém licenciados
ávidos de diplomas, na posse dos quais se
adivinhavam mais bem apetrechados para vencer no
mundo de hoje, de generalizada e desenfreada
concorrência. E, embora em rigor não tivesse onde
fundamentar as minhas expectativas, não deixei de
considerar o número surpreendente.
O Professor Arlindo dos Reis era um homem moreno,
alto e entroncado. Para o título que ostentava, era
curiosamente jovem, pois não devia contar mais de
trinta e cinco anos. Tinha uma barba negra, curta e
espessa, que emoldurava uma boca de lábios grossos e
sensuais, e cabelo preto encaracolado que começava a
rarear nas têmporas. A testa era alta e o nariz um
pouco grosseiro. Usava uns óculos grandes, com uma
armação em massa, que não escondiam a melancolia do
seu olhar. Trajava informalmente. Talvez demasiado,
se se atendesse à sua posição. E, embora fosse óbvio
o seu asseio irrepreensível, transmitia uma certa
impressão de desalinho. Trazia amiúde a camisa meio
por dentro meio por fora das calças. Não raro,
aquela encontrava-se mal abotoada, com os botões nas
casas erradas. A barba apresentava-se escanhoada de
forma irregular. E a combinação das cores das
diversas peças da sua indumentária não era das mais
felizes. Na realidade, vestia-se mal, sem gosto nem
aprumo. Em resumo, poder-se-ia dizer que exibia o
estereótipo do homem de ciência (hoje em franco
declínio), distraído, desleixado e desligado por
completo das aparências.
Apesar de seduzida pela terminologia que fora dada à
pós-graduação, assim como pela invulgar aparência do
professor, cedo me apercebi de que a matéria da
mesma era insípida e sem rasgo. No entanto, não se
conclua daqui que as aulas fossem enfadonhas. Pelo
contrário, eram fabulosas. O Professor Arlindo dos
Reis falava alto, com à vontade e gestos
exuberantes. Era de uma cultura sem limites e, não
raro, as suas exposições fugiam ao tema inicial e
versavam outras matérias, quase sempre ligadas à
Física, à Matemática, à História e até à Astronomia.
Então vibrava de exaltação, a sua voz tornava-se
mais estridente e percebia-se que eram estes
conteúdos (e não os da matéria que era suposto
transmitir) que verdadeiramente o empolgavam.
Compreendia o Universo e as leis que o regiam. Para
todo o fenómeno tinha uma explicação. A propósito de
qualquer acontecimento emitia um juízo acertado e de
cada descoberta ou invenção conhecia o enquadramento
histórico. Para rematar, era muito simpático.
Percebia-se que gostava de ensinar. E, quando
dissertava, era difícil despegar os olhos dele, tal
o seu dom de palavra.
No entanto, apesar da inquestionável qualidade das
aulas, depressa começou a grassar entre os alunos um
certo desinteresse. Sentiam-se defraudados. Estavam
ali para conseguir um grau académico e não para
ouvir as prelecções do professor. Muito menos para
adquirir conhecimentos sobre os quais não iriam ser
examinados. Por conseguinte, depois de terem
conseguido fotocópias da matéria propriamente dita,
foram, um a um, abandonando as aulas.
Eu, pelo contrário, dada a minha postura antagónica,
não perdia uma única lição. Dava-me conta do
carácter excepcional do professor e da preciosidade
dos ensinamentos que transmitia. Estes, mesmo
desprovidos de aplicabilidade prática imediata,
valiam pela sua intrínseca raridade. E, quando me vi
sozinha na aula, o meu principal receio foi o de que
o Professor Arlindo dos Reis não estivesse disposto
a ensinar um quórum reduzido à minha pessoa.
Todavia, enganei-me. Ocorreu uma mudança, sim, mas
para melhor. O Professor pareceu ficar
agradavelmente surpreendido com as deserções e
concentrou em mim toda a sua atenção. Provavelmente,
o facto de eu me manter fiel às suas aulas
demonstrava-lhe que o meu amor à ciência se
sobrepunha à mera sofreguidão por graus académicos.
Passou a tratar-me informalmente. Durante as suas
exposições eu já não me sentia no extremo de um
binómio mas envolvida numa esfera. Continuava a
ensinar-me e, contudo, parecia que apenas
dialogávamos. E, como que por acaso, evadia-se ainda
mais da matéria de gestão para versar quase em
exclusivo os temas da sua preferência:
- Está um lindo dia, um céu azul… - exclamou uma
vez, com um timbre sonhador na voz, quando íamos
começar uma aula
- É verdade – respondi, relanceando a ampla janela
da sala de aula.
- A propósito, sabe porque é que o céu é azul?...
- Não. De facto, não.
- Bem, é uma consequência da maneira como os raios
solares interagem com a atmosfera…bla, bla, bla…
E, mais uma vez me quedei a escutá-lo, maravilhada.
Poucos dias depois, disse-me:
- Venha comigo. Quero mostrar-lhe o meu gabinete.
Segui-o até às entranhas da faculdade, onde nunca
tinha posto os pés. Descemos vários lanços de uma
escada recôndita e chegámos a um corredor estreito e
escuro, com portas de ambos os lados, equidistantes
umas das outras. Cada uma tinha um pequeno dístico
ostentando o nome do ocupante. O Professor Arlindo
dos Reis parou perto de uma delas, que exibia o seu
nome, e sacou da algibeira um imenso molho de
chaves. Ergueu-o diante dos olhos (aí pude constatar
que se encontrava munido de um porta chaves
ostentando o “et pluribus unum” e a águia do Sport
Lisboa e Benfica, o que não deixou de me provocar um
sorriso de condescendência ante aquela pequena
manifestação de fraqueza masculina) e agarrou numa
chave que enfiou na fechadura, abrindo a porta.
- Faça favor – disse, afastando-se para eu passar.
Entrei e tive a sensação de penetrar noutra
dimensão. O gabinete era pequeno e frio. Uma janela
na parte superior de uma das paredes deixava entrar
uma réstia de luz mas não permitia a vista para o
exterior. Uma estante metálica de módulos, uma
secretária revestida a plástico castanho sobre a
qual repousava um computador e duas cadeiras
constituíam a totalidade do mobiliário. Todavia, o
gabinete não era inóspito. Pelo contrário,
transmitia uma reconfortante sensação de
acolhimento. E isso devia-se ao facto de estar
completamente atravancado de livros. Havia-os na
estante, arrumados em filas, bem apertados, em cima
da secretária e das cadeiras, e até no chão.
Dei dois passos e o Professor fechou a porta atrás
de nós. Olhei ao redor e fui irresistivelmente
atraída pelas lombadas dos livros. O meu olhar
percorreu-as com atenção e não pude evitar uma
exclamação:
- Mas… são livros de Astronomia, de Geografia, de
História!…
Eu estava assombrada. Não era aquele homem
responsável por uma pós-graduação em Gestão
Estratégica?...
Os olhos do Professor Arlindo encontraram os meus.
Quando falou, parecia um pouco atrapalhado, como uma
criança tímida apanhada em falta.
- Pouca gente sabe que eu sou licenciado em Física…
- proferiu em voz baixa, com a entoação de quem
revela um segredo.
- Em Física?!... Mas então como é que…
- Oh, não fique aflita! – exclamou, enquanto a boca
se abria num sorriso e os seus olhos perdiam a
expressão perplexa – Cursei Física há muitos anos,
quando ainda tinha ilusões… Mas é preciso viver, de
forma que, já com uma formatura completa, resolvi
entrar para a Faculdade de Ciências de Gestão, onde
me licenciei pela segunda vez. E onde tenho trilhado
uma carreira docente bem sucedida.
- Compreendo… - respondi, fitando-o com acrescido
interesse.
- E, de qualquer modo, também tenho livros de
Gestão… - acrescentou, apontando-me para um sector
da estante, por sinal bastante inacessível, onde se
viam duas dúzias de volumes esquecidos.
O Professor Arlindo dos Reis retirou os livros que
estavam em cima das cadeiras e fez com eles um
montinho que colocou no chão, a um canto. Com um
gesto amistoso, convidou-me a sentar. Só nessa
altura reparei que o seu dedo anelar da mão esquerda
exibia uma fina mas inequívoca aliança de casamento.
A partir desse dia, não mais voltei à sala de aulas.
O Professor Arlindo dos Reis recebia-me no gabinete.
Dedicava-me várias horas por semana do seu (decerto
precioso) tempo. Num ambiente de amena cavaqueira,
eu assimilava tudo o que ouvia com a facilidade que
só um interesse genuíno consegue facultar. Aprendi,
entre muitas outras coisas, o funcionamento de um
acelerador de partículas, de um detector de mentiras
e de um circuito integrado. Assimilei o Efeito
Doppler e a Precessão. Compreendi a Contracção do
espaço e a Dilatação do tempo.
Embora os novos conhecimentos não tivessem qualquer
interesse prático para o desempenho das minhas
funções, eu estava a aumentar imensamente a minha
cultura, facto que me proporcionava uma inusitada
satisfação. E a minha admiração por aquele mestre
(na verdadeira acepção da palavra) crescia de dia
para dia.
Por outro lado, ele reconhecia as minhas
capacidades. Considerava o meu raciocínio exímio e a
minha memória fora de série. Qual é o professor que
não gosta de ensinar um bom aluno? Por isso, nunca
lhe faltava assunto.
Habitualmente o Professor Arlindo dos Reis estava à
minha espera no seu gabinete. Eu batia à porta no
dia e hora combinados e esperava até ouvir o
desejado “Entre”. Então, ao penetrar naquele
santuário, era invariavelmente acometida pela
percepção de que interrompia um trabalho importante
ou um raciocínio complexo. Os olhos do Professor
estavam fixos numa página de um livro ou no monitor
e assim permaneciam por alguns segundos. Porém,
quando finalmente vinham ao encontro dos meus,
iluminavam-se. E, com frequência, acabava por
discorrer precisamente sobre o trabalho ou
raciocínio que eu acabara de interromper. Assim
decorria a maior parte do tempo em que estávamos
juntos. No entanto, demonstrando um imenso
profissionalismo, não deixava de reservar os últimos
cinco minutos da nossa conversa para me dar umas
pinceladas do Carácter Falacioso da Previsão na
Gestão Estratégica.
Certa tarde, quando após escutar o “Entre” abri a
porta, vi o Professor Arlindo dos Reis de pé, junto
da janela, olhando para cima. Parecia completamente
absorto. No entanto, mesmo para a sua elevada
estatura, a janela era demasiado alta. Dali, só o
céu era visível.
- Boa tarde! – proferi, ao fim de alguns segundos de
espera.
- Boa tarde… - respondeu maquinalmente.
Aproximei-me e percebi o motivo do seu interesse.
Tinha chovido e um sector circular de um radioso
arco-íris desenhava-se sobre um céu azul salpicado
de nuvens.
- Minha cara, sabe o que é um arco-íris?... Como se
forma?... – acabou por dizer.
- Claro que sei! – respondi, num tom de voz um pouco
abespinhado. Afinal, eu não era assim tão ignorante,
que diabo!...
- Oh, não se zangue. Há muita gente que não sabe…
Aliás, apesar de tudo, talvez desconheça a razão
pela qual um arco-íris é sempre circular…
- Tem razão… - respondi depois de pensar um pouco,
já arrependida por ter falado de forma desabrida.
Até sobre o arco-íris ele tinha de saber tudo...
- Bem, como decerto não ignora – declarou,
sentando-se numa das cadeiras - a refracção da luz
nas gotas de água esféricas…blá, blá, blá…
Enquanto o Professor Arlindo dos Reis falava, pela
primeira vez, abstraí-me do significado das suas
palavras. Que homem assombroso! Tão culto! Tão bem
falante! Eu continuava de pé. Não me apetecia mesmo
nada sentar-me. E, sem me conseguir controlar,
aproximei-me e passei-lhe a mão pelo rosto de barba
irregular, num incontido gesto de admiração e
carinho.
Quando, uma hora depois, saí do gabinete, éramos
amantes.
Foi o começo de uma etapa maravilhosa da minha
existência. Eu adorava o meu novo amante, o seu ar
de cientista louco, o seu gabinete feito um caótico
ninho de amor, e a maneira como conseguia discorrer
sobre qualquer assunto em qualquer situação. Por
outro lado, para um homem da Ciência, teoricamente
desprendido em relação aos aspectos prosaicos da
vida, o Professor Arlindo dos Reis revelou-se
extraordinariamente sensual. E conseguia sê-lo sem
perder uma adorável auréola de timidez. Coisa que me
arrebatava. Era óbvio que ele me queria satisfazer
sob todos os pontos de vista. E conseguia-o
plenamente.
Como eu suspeitara, era casado. Mas isso era
irrelevante. Nunca fui ciumenta. Nem nunca
compreendi a relação geralmente estabelecida entre
amor e exclusividade. Eu vivia o aqui e agora, sem
passado nem futuro, e o único facto que se me
afigurava importante é que finalmente encontrara um
homem na companhia do qual acreditava nunca vir a
aborrecer-me. Eu, que quase me convencera de que tal
não existia, tinha de reconhecer que ali estava o
companheiro ideal, em todo o seu esplendor.
Todavia, numa tarde invernosa, depois de termos
feito amor numa posição só permitida e possível por
uma razoável pujança física, ouvi o Professor
Arlindo dos Reis segredar-me a meia voz:
- Vamos passar uma noite numa pousada?... Conheço
uma muito sossegada… Que dizes?... Na próxima
sexta-feira?...
Sim, apesar do romantismo da situação, o diminuto
gabinete do Professor Arlindo dos Reis, onde
misturávamos prelecções e carícias, não era o local
mais cómodo para estas últimas. No entanto, eu não
me queixava. No que me dizia respeito, o desconforto
físico era largamente compensado pelo conchego
intelectual. E extasiava-me perceber a habilidade
com que o meu amante intercalava ternas
manifestações de afecto com rigorosos cliques no
rato.
Mas a súbita sugestão soprada ao meu ouvido só tinha
uma explicação. A nossa relação estava a adquirir
importância. E eu não sabia se me devia sentir
lisonjeada ou incomodada com o facto. Claro que nem
me passava pela cabeça assumir uma relação integral
com o Professor Arlindo dos Reis. Aliás, só sabíamos
o essencial um do outro. E pela parte que me tocava,
não queria saber mais. Seria preciso decorrer muito
mais tempo para eu me abalançar a receber um homem
em casa, de armas e bagagens. Mas ele era casado. E
essa circunstância tranquilizava-me. Ademais, achava
extremamente delicado, quase tocante, o facto de ele
ter sugerido uma Pousada em vez de me propor, muito
simplesmente, dormir em minha casa.
Concordei com a sugestão. No dia combinado, ao fim
da tarde, o Professor Arlindo dos Reis foi
buscar-me. Quando desci e vislumbrei o carro em que
me aguardava à porta de minha casa, fiquei
boquiaberta. Era um bom veículo, dos caros, muito
diferente do que eu imaginara para um amante da
ciência, desprendido de luxos e mordomias.
- Belo bólide! – não pude deixar de exclamar,
enquanto me sentava ao lado do condutor..
- Achas?... – e sorriu-me com um irresistível olhar
travesso. Parecia tão satisfeito por me ter
agradado!... - Gosto de bons carros, manejáveis e
rápidos, de cilindrada elevada…
- Ah sim?... E porque escolheste este aqui?... –
inquiri, curiosa.
- Bem, a escolha não foi simples. Para começar, a
marca devia ter oficinas em locais com bons acessos
por meio de transportes públicos. Esta é uma questão
fulcral da qual nunca abdico. Mesmo assim, para
seleccionar o meu eleito, tive de levar a cabo um
estudo completo e rigoroso de algumas dezenas de
marcas/modelos. Observei criteriosamente desempenhos
de motores, tipos de alimentação, binários e
potências. Todavia, um carro não é só motor.
Portanto investiguei também sistemas de transmissão,
de suspensão e de travagem. Também a qualidade das
carroçarias, dos interiores e, claro está, dos
equipamentos, não me foi indiferente. Por outro
lado, optei por…
- E o facto do carro ser bonito? Não é relevante?...
– questionei, interrompendo-o.
- Oh, sim! Obtida uma pequena lista de finalistas da
minha selecção preliminar, aprofundei a investigação
e incrementando o rigor dos critérios aplicados
entrando em linha de conta com outros parâmetros
tais como consumos, custos de manutenção, dados
estatísticos sobre número e gravidade de acidentes
e, como é óbvio, a beleza intrínseca das linhas. E
foi este o eleito. Quanto à cor…
Enquanto o escutava, raciocinei. Era tudo de uma
lógica inatacável. E, atónita, compreendi que na
vida do Professor Arlindo dos Reis, nada era obra do
acaso. Todas as escolhas obedeciam a rigorosos
critérios de selecção.
Chegámos à Pousada ao cair da noite, depois de uma
viagem agradável através de estradas secundárias
ladeadas por árvores frondosas. O local era
escondido, próprio para quem não quer ser visto.
Dirigimo-nos à recepção e um empregado amável e
sorridente cumprimentou o meu companheiro:
- Boa noite, senhor.
Embora o recepcionista se lhe tenha dirigido sem
menções especiais, algo na sua atitude me fez
acreditar que já conhecia o Professor Arlindo dos
Reis. Teria o meu companheiro lá pernoitado alguma
vez?... Com quem?... Talvez com a esposa... Como
seria ela?... Mas não! Abanei a cabeça tentando
sacudir este pensamento. Nada daquilo me
interessava. Uma das regras que sempre me norteara
era a de manter a mais completa ignorância sobre as
esposas dos meus amantes.
Passámos uma noite maravilhosa. No dia seguinte,
apesar da beleza da paisagem que apelava a um
passeio a pé, permanecemos a maior parte do tempo no
quarto. Estávamos de tal modo embrenhados um no
outro que nem dávamos pelo passar das horas. Só ao
fim da tarde, antes de abandonar a Pousada, é que
decidimos caminhar um pouco no jardim exterior.
Então pude verificar que o meu companheiro detinha
também variados conhecimentos de botânica.
Quando, nessa mesma noite, o Professor Arlindo dos
Reis me deixou à porta de minha casa, tínhamos
passado juntos vinte e quatro horas seguidas. E
nenhum de nós se aborrecera.
A partir daí começámos a dar escapadelas com
regularidade. Dormíamos fora de sexta para sábado,
tomados de uma espécie de febre de sexta-feira à
noite. O Professor Arlindo dos Reis conhecia várias
casas de turismo de habitação, em locais aprazíveis,
onde a discrição era um requisito. Mais um sector
onde ele demonstrava estar muito bem informado. E eu
não deixava de me surpreender. Claro que não
conseguia perceber se ele já teria ou não pernoitado
em todos aqueles locais. Sabia da existência deles,
ponto final. E fazia questão de pagar as contas. Era
um perfeito cavalheiro.
De aula em aula, de carícia em carícia, de pousada
em pousada, acabámos tornando-nos menos cautelosos.
Volta e meia encontrávamos pessoas conhecidas, de um
ou de outro. Confesso que ficava um pouco
atrapalhada. Nunca andara com nenhum amante na rua
às claras. Às vezes questionava-o:
- Não te importas que te vejam comigo?...
- Claro que não! És minha aluna, estou a preparar-te
para o exame… - respondia.
Como sempre, a sua lógica era incontornável.
À medida que a nossa relação ia adquirindo
importância nas nossas vidas, eu ia notando no
Professor Arlindo dos Reis uma subtil transformação.
Insensivelmente, começara a cuidar da aparência.
Vestia-se melhor. Já não se apresentava com a camisa
mal abotoada e por fora das calças. A barba e o
cabelo andavam bem aparados. Até que um dia, no meio
de uma prelecção, me perguntou:
- Queres ir comigo às compras? Precisava da tua
ajuda para escolher umas coisas…
Fiquei comovida. Como a esmagadora maioria dos
homens, o Professor Arlindo dos Reis detestava ir às
compras. E foi com orgulho que anuí ao seu pedido e
o ajudei a escolher várias peças de indumentária, em
várias lojas da moda, num imenso e super concorrido
centro comercial. Foi um regalo dar-lhe a minha
opinião e observá-lo enquanto se decidia a aceitar
as minhas sugestões, sem olhar a preços. Agora,
tinha a certeza de que o meu mestre confiava
cegamente em mim. O que constituía, a meu ver, a
suprema prova de amor.
Pouco tempo depois o Professor Arlindo dos Reis
disse-me que fora convidado para um jantar de
antigos colegas de curso, ao qual gostaria que eu o
acompanhasse. Estranhei. Já era suficientemente
curioso que ele não se importasse de ser visto na
minha companhia, a qualquer hora do dia. Mas um
jantar… Aí a coisa fiava mais fino. Nenhum amante
casado me fizera jamais semelhante proposta.
- E a tua mulher?... – atrevi-me a perguntar,
sentindo um gosto esquisito na boca ao pronunciar
aquela palavra.
- A minha mulher?!... Oh, não te preocupes. Ela não
liga a estas coisas. Nunca comparece.
Não respondi, mas não pude impedir-me de reflectir
sobre a estranheza daquela atitude. Até à data,
todos os meus amantes casados haviam sido
extremamente cuidadosos em relação às esposas. O
que, na minha opinião, só lhes ficava bem. Mas a
mulher do Professor Arlindo dos Reis devia ser uma
criatura absolutamente ímpar. Provavelmente uma
super intelectual, fria e displicente, para quem um
jantar de convívio representava uma pura perca de
tempo.
Todavia, nem me passou pela cabeça recusar. Era um
jantar de quadros de empresas, professores
universitários, gestores. Em suma, pessoas formadas,
cultas, com nível.
Na noite esperada, vesti-me com elegância e
sobriedade. Porém, não foi sem uma razoável dose de
constrangimento que me apresentei no repasto, como
acompanhante do Professor Arlindo dos Reis. Este
usava um fato que adquirira na minha companhia e
tinha um aspecto aprimorado. Contudo, embora
tentasse disfarçá-lo, notei que estava excitado como
um adolescente.
O jantar era volante, o que facilitava a
movimentação e o diálogo. Por outro lado, a forma
irregular e a fraca iluminação do salão onde
decorria permitiam-me, se o desejasse, passar
razoavelmente despercebida. Eu hesitava sobre como
me comportar. Podia mostrar-me às claras ou
esconder-me na periferia Acabei por largar o meu
companheiro e dirigir-me ao bar onde solicitei uma
bebida (ninguém se sente sozinho de copo na mão)
após o que me desviei para um canto obscuro, a fim
de observar o ambiente. Os convivas, em número de
várias dezenas, conversavam saudavelmente uns com os
outros em pequenos grupos dispersos. O professor
Arlindo dos Reis avançara para o centro e cavaqueava
com este e aquele, com o seu ar exuberante. A certa
altura aproximou-se dele uma mulher alta e bem
vestida, bonita e sorridente. Começaram a falar os
dois, num tom amistoso. Reparei que entre eles
parecia haver uma grande confiança. Não que fossem
muito efusivos mas, quando interceptei o olhar que
ela lhe lançava, não me restaram dúvidas. Há uma
maneira especial de olhar para uma pessoa que já
esteve nos nossos braços. Uma mulher capta estas
coisas. Ali estava uma antiga amante do Professor
Arlindo dos Reis. Um caso terminado, sem dúvida, e
que deixara em ambos os protagonistas felizes
recordações. Bastava olhar para eles. Conversavam
com a mais óbvia boa disposição. No entanto, o olhar
do professor exibia aquela timidez melancólica que
tanto me arrebatava. A certa altura o meu
companheiro olhou para mim e fez-me sinal de que me
aproximasse. Pelos vistos fazia questão de me
apresentar. Acerquei-me e fui anunciada pelo meu
nome, sem mais explicações. A ex-amante (eu estava
absolutamente certa de que o era) cumprimentou-me
com simpatia enquanto me examinava com uma certa
curiosidade, após o que se afastou.
Aqui e além já se viam pessoas a servir-se, de forma
que decidi ir buscar um prato e comer qualquer
coisa. Fiz a minha escolha e, quando olhei em volta
à procura de um lugar vago numa mesa recatada para
me sentar, reparei que o Professor Arlindo dos Reis
conversava com outra mulher. Esta não era tão alta
nem tão bonita como a primeira. Todavia tinha um
rosto interessante e um olhar extraordinariamente
vivo. Incrédula, contornei a sala até encontrar uma
posição que lhe interceptasse o olhar. Quando o
consegui, senti-me gelar.
No fim do jantar, muito agradável aliás, eu
contabilizara na totalidade seis, exactamente seis,
ex-namoradas implícitas do Professor Arlindo dos
Reis. Todas indubitavelmente interessantes. E
nenhuma lhe guardava rancor.
Qual é a mulher que, num caso destes, não sucumbe a
uma insidiosa curiosidade? Eu não sabia que pensar.
Aquele homem era um extraordinário professor, até na
arte de bem viver. Durante o jantar eu apercebera-me
da existência entre as suas antigas amantes de, se
não amizade, pelo menos uma cordial tolerância.
Como é evidente, tinha de questioná-lo. Não por
ciúme, rivalidade ou desconfiança, mas pelo mais
genuíno interesse. Era mais forte do que eu. Sim,
qual era o homem que conseguia aquele prodígio? Qual
seria, afinal, o seu segredo?...
Todavia, eu não queria cair na vulgaridade de o
submeter a um interrogatório. Por isso aguardei uma
oportunidade para o sondar com subtileza. E o ensejo
para tal apresentou-se-me mais depressa do que
imaginara.
Cerca de um mês depois, o Professor Arlindo dos
Reis, no meio duma dissertação (como era seu hábito)
atirou-me:
- Sabes quem vai casar?...
Eu não sabia, evidentemente.
- Quem?
- A Anabela. A primeira pessoa que te apresentei no
jantar onde estivemos.
- Ah!... Já sei.
- Vai casar por procuração com um paraguaio. E viver
para o Paraguai.
- Para o Paraguai?!... Mas que ideia…
- São opções de vida… Cada um é como cada qual. E
ela sempre teve espírito de aventura. Quanto a mim,
serei o representante do noivo na cerimónia.
- Representante do noivo?... Estranho…
- Não, não é nada estranho – e, olhando-me com
aqueles olhos nostálgicos, confessou – ela foi minha
namorada. Ficámos amigos.
- E quando é que isso teve lugar?...
- Há dois anos.
A partir deste ponto, sem esforço nem
constrangimento, o Professor Arlindo dos Reis deu-me
a conhecer a sua vida amorosa dos últimos quatro ou
cinco anos. Todas aquelas mulheres tinham
efectivamente sido suas amantes. E de todas ficara
amigo. Ademais, sabiam dos casos umas das outras e
conviviam na maior bonomia.
Eu escutei sem perguntar grande coisa, apenas dando
um empurrãozito aqui e além, aparentando um total
desprendimento. Contudo, por dentro, estava banzada.
Tudo aquilo só podia ser obra de um génio. Por fim,
atrevi-me a perguntar:
- Mas porque é que todas essas ligações, com todas
essas mulheres fantásticas, acabaram?...
- Porque tudo tem princípio e fim. É a entropia, a
lei mais universal da Física… – respondeu, com a
maior naturalidade e sem hesitações.
Que é que se pode obstar a isto?...
Claro que, da posse destes preciosos dados, a minha
curiosidade em relação à esposa do professor Arlindo
dos Reis acentuara-se. Ao mesmo tempo, despertava-me
sentimentos contraditórios. Quem seria? Como seria?
Eu sentia-me incapaz de especular sobre a criatura.
Todas as hipóteses se me afiguravam viáveis. Ou uma
grande intelectual, com um cérebro equiparado ao do
marido e tão autónoma e independente como ele, ou
uma criatura simplória, sofredora e indefesa,
esmagada pelo desgosto das traições. Entre estes
dois extremos, uma série de cambiantes intermédios
eram possíveis.
Aproximava-se o fim do ano lectivo e a minha relação
com o Professor Arlindo dos Reis estava ao rubro. Em
breve, seria submetida ao exame final e terminaria a
pós-graduação. Por isso, as aulas tinham adquirido
um ritmo mais acelerado, sob todos os aspectos. E,
bem no fundo do meu coração, contrariando todas as
regras de actuação por que me norteara até aí,
interrogava-me sobre o futuro da minha relação com o
meu mestre. Que aconteceria?... Terminaria
também?... Confesso que essa perspectiva me fazia
estremecer…
Acabei por ganhar coragem. Num sereno fim de tarde
de primavera, sentada ao seu colo, depois de uma
espectacular prelecção entrecortada por carícias
loucas, não me contive e disparei:
- Tiveste tantas mulheres!... Porque nunca deixaste
a tua esposa?... Que tem ela de tão
extraordinário?...
Mas o Professor Arlindo dos Reis não me respondeu.
Contudo, as minhas palavras não caíram em saco roto.
Uma semana depois, precisamente na véspera da prova
final, no seu gabinete, o Professor Arlindo dos Reis
olhou-me nos olhos com aquela expressão inocente que
me dava a volta ao miolo e deixou sair estas
palavras:
- É verdade que nunca deixei a minha esposa. Mas
agora estou a pensar seriamente em fazê-lo…
Ao ouvir isto, o meu coração disparou. Meu Deus! Ele
está a pensar em abandonar a mulher por minha
causa!, pensei.
No entanto, procurei disfarçar o meu arrebatamento e
respondi apenas:
- E… achas que ela te concederá o divórcio de bom
grado?...
Ele olhou para cima durante alguns segundos, de
olhos semicerrados, como quem reflecte
profundamente. Por fim, acabou por responder:
- Não! Claro que não!... – e, com um suspiro,
acrescentou – Na verdade, não chegará a haver
divórcio. Quando eu a deixar, ela pura e
simplesmente morrerá!...
Olhei-o estupefacta:
- Que queres dizer com isso?...
- Que não aguentará.
- Que horror!... – eu não queria crer no que ouvia.
– Estás a falar a sério?...
- Não tenho a menor dúvida. Ela é uma pessoa fraca e
carente. E gosta demasiado de mim.
- Mesmo assim... Que coisa horrível!...
No entanto, eu quase que compreendia. Sim, estava
completamente apanhada. Eu, a gestora, a racional, a
equilibrada!... Como diabo me deixara enredar
daquela maneira absurda? Olhei para o meu amante e
percebi que não conseguiria resistir-lhe. Tudo o que
me propusesse, aprovaria.
- Como deves compreender – continuou o Professor
Arlindo dos Reis com um ar absolutamente inocente –
eu nunca me perdoaria se acontecesse alguma coisa à
minha esposa sem uma razão válida. Portanto, antes
de dar o passo decisivo, preciso de ter a certeza
absoluta de que tu és realmente a mulher da minha
vida.
- E… como é que pretendes obter essa certeza?... –
eu começava a ficar preocupada.
- Oh, não tenhas medo! – retorquiu com um daqueles
sorrisos que me derretiam todas as dúvidas – Sabes,
até hoje, acabei sempre por me enfastiar na
companhia das mulheres… Com todas elas, de início,
sentia-me bem. Eram espertas, cultas, interessantes.
Porém, ao fim de algum tempo, mudava de opinião. Era
como se lhes caísse o véu e eu, de repente, visse a
realidade. E chegava à conclusão de que eram
incapazes de um raciocínio elaborado, fracas de
memória e de conhecimentos. E perdia a coragem de as
ensinar. Mas… - e os seus olhos melancólicos
encontraram os meus - contigo é diferente. Estou
absolutamente convencido de que superarás o teste…
- Claro que vou superar! Que disparate é este?... –
Eu já sabia de cor toda a matéria do “Carácter
Falacioso da Previsão na Gestão Estratégica”. – de
que é que estás a falar?...
- De nada, de nada!... – respondeu com um ar
travesso - Quanto às nossas aulas, acabam aqui. Boa
sorte para o exame de amanhã! – e pespegou-me um
caloroso beijo nos lábios, cujo sabor permaneceu na
minha boca durante várias horas.
No dia seguinte fui submetida ao teste final da
pós-graduação.
Passou-se uma semana durante a qual não vi o
Professor Arlindo dos Reis. Decerto andava atarefado
com a correcção das provas e eu não queria
perturbá-lo. Com efeito, além da minha, ele tinha de
corrigir as das várias dezenas de alunos que haviam
desertado logo no início do ano lectivo. Portanto
não o procurei.
Quando finalmente foram afixadas as pautas com as
classificações do exame, busquei a minha com
ansiedade. Eu sabia que o resultado obtido era
decisivo para o Professor Arlindo dos Reis. Quando
encontrei o meu nome, li-o até ao fim e, como num
sonho, interpretei o melhor que pude os caracteres
que estavam escritos à sua frente: 20 valores!
Era chegada a altura de voltar a ver o Professor
Arlindo dos Reis. Portanto, fui até ao pequeno
gabinete que tão bem conhecia. Bati à porta e
esperei. Decorreram alguns segundos que me pareceram
horas. Aguardava eu pelo costumeiro “Entre” quando
de repente vi a porta abrir-se e o meu amante diante
de mim:
- Ora viva!
- Posso entrar?...
- Claro.
E afastou-se para eu passar.
- Então?... – eu estava impante e esperava um
cumprimento especial
- Então… - murmurou com um ar muito sério. Porém, de
repente, a sua boca abriu-se num sorriso
irresistível, puxou-me para si e abraçou-me com
força – parabéns pela brilhante nota do exame!...
- Oh! Obrigada! Mas então… então…
- Então – disse o Professor Arlindo dos Reis vindo
em meu auxílio - Nós nunca estivemos mais de vinte e
quatro horas juntos. Proponho-te uma experiência de
três ou quatro dias. Que dizes?...
- Esplêndido.
Partimos na sexta-feira seguinte, com retorno
agendado para o quarto dia. Íamos passar três dias,
três longos dias (setenta e duas horas, quatro mil
trezentos e vinte minutos) completamente sós. O
nosso destino era uma belíssima pousada nas
montanhas, isolada do resto do mundo, judiciosamente
escolhida pelo meu companheiro.
Não consigo exprimir a imensa ventura daqueles dias.
Tudo eram rosas. O Professor Arlindo dos Reis
abandonara a postura de mestre e tratava-me de igual
para igual. Amávamo-nos de corpo e espírito. A nossa
mútua entrega era total. Claro que, de quando em
quando, ele não podia impedir-se de me explicar
alguma coisa. Era mais forte do que ele, estava-lhe
na massa do sangue. Todavia, fazia-o com a expressão
benigna de quem apenas pretende recordar algo que
está esquecido. Por outro lado, uma vez por outra,
descaía-se com uma pergunta. Matérias adiantadas,
como é evidente. E eu respondia prontamente e com
acerto. Percebia um lampejo de satisfação no seu
olhar e quedava-me ufana. No fundo, sentia que a
decisão dele estava tomada, e que aquela experiência
não passava de uma agradável diversão.
No meio da minha imensa felicidade, os três dias
chegaram ao fim e tudo tinha corrido magnificamente.
Na véspera da nossa partida, depois de um
maravilhoso passeio ao luar, arrumámos as malas,
fizemos amor e adormecemos felizes nos braços um do
outro. Todavia, a meio da noite algo me despertou. O
meu amante mexia-se na cama, incomodado. Os seus
movimentos eram bruscos e faziam a cama estremecer.
Mantive-me imóvel no escuro, sem tugir nem mugir, à
espera que o meu companheiro se acalmasse. Todavia,
o seu desassossego era cada vez maior.
- Que se passa?... – acabei por perguntar, ensonada,
perante aquele evidente estado de agitação.
- Não consigo dormir… - balbuciou o Professor
Arlindo dos Reis, derrotado.
Durante uns segundos o sono não me deixou
raciocinar. Porém, de repente, fez-se luz no meu
cérebro e compreendi o que se estava a passar.
Aquele homem ia abandonar a mulher por minha causa.
Era uma decisão importante, dramática. Era natural
que se sentisse inquieto e preocupado.
- Oh, querido… - respondi, cheia de compreensão –
Isso é apenas ansiedade… Relaxa e depressa
adormecerás - e acariciei-lhe a face olheirenta e
fatigada.
Mas o meu amante suspirou e abanou a cabeça:
- Não adianta… - exclamou com uma voz sumida - estas
insónias são particularmente renitentes. É raro
tê-las mas, quando me atacam, só há um remédio
eficaz para eu voltar a adormecer…
- E qual é?... – perguntei, cheia de interesse.
O Professor Arlindo dos Reis soergueu-se
ligeiramente, acendeu a luz do candeeiro da
mesa-de-cabeceira e recostou e novo a cabeça na
almofada à procura de uma posição confortável:
- Preciso de ouvir falar. É a única maneira de me
acalmar… Fala comigo, com uma voz calma e ritmada,
numa cadência sempre igual…
E olhou fixamente para mim.
Engoli em seco.
- Hã… Pois… Vai tudo correr bem… Descansa… - comecei
a dizer, aos solavancos. O meu cérebro estava
novamente vazio.
- Oh, assim não!... Não te podes calar… Tens de
falar sempre no mesmo ritmo! – e o Professor Arlindo
dos Reis olhava-me suplicante.
- …Descansa… Dorme… Descansa… - continuei,
hesitante.
- Não! Não te podes repetir! Assim não dá… Olha – e
fixou-me com particular intensidade - recita a
tabuada!…
Olhei-o abismada:
- Recito o quê?...
- A tabuada! Canta-a, sempre cadenciada, mas sempre
diferente… Com a tabuada adormeço logo... Mas
atenção, não te enganes! Se te enganas tenho logo um
sobressalto!... – acrescentou, com um brilhozinho
peculiar nos olhos.
Fiquei calada. Por mais que eu tentasse, a minha
boca não se abria.
- Então?... – e o meu amante fitou-me com uma
expressão onde entrevi uma certa tensão.
Fazendo um esforço sobre humano, consegui articular.
- Se é isso que queres… - e, sentindo-me a tremer
por dentro, tartamudeei – Dois vezes um, dois. Dois
vezes dois… Dois vezes dois…
Sentia a cabeça a fraquejar. Havia anos que eu não
fazia uma única conta sem me servir da máquina de
calcular. E, instada a prosseguir, comecei a
gaguejar:
- Dois vezes… Dois vezes…
- Meu Deus! Não posso acreditar! Até tu!... - e o
Professor Arlindo dos Reis lançou-me um olhar de uma
tão grande decepção que me senti gelar por dentro. -
Nunca encontrei uma mulher, por mais culta e
inteligente que fosse, que soubesse a tabuada… E
contudo, a minha esposa, sabe-a!...
- Mas… Mas… Eu consigo deduzi-la! Dá-me um lápis e
eu… eu…
Porém, enquanto eu falava, o Professor Arlindo dos
Reis abanou a cabeça.
- Não adianta! Deixa lá, não adianta… – e pareceu
concentrar-se em qualquer pormenor do tecto.
- Estou muito cansada… Amanhã já me lembro… - sugeri
timidamente.
Mas o Professor Arlindo dos Reis não me respondeu.
E, passados mais alguns segundos, acomodou-se na
cama de costas para mim, apagou a luz e adormeceu.
Permaneci acordada. Agora, tudo era claro no meu
espírito. Eu podia ter tido vinte valores na
pós-graduação. Todavia, tal como todas as outras
antes de mim, no teste que verdadeiramente contava,
falhara miseravelmente.
Adelina Velho da
Palma
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