SEBO LITERÁRIO

Contos

autor

Adelina Velho da Palma
 
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A Última Questão in "A Boa, a Má e a Vilã"


Nem toda a gente sabe como são marcadas as férias móveis. Há até quem julgue que o posicionamento do Domingo de Páscoa (data que determina todas as outras) no calendário de cada ano se subordina a uma espécie de capricho aleatório da Igreja Católica. Nada mais falso. Muito antes de Cristo, os judeus comemoravam na Páscoa a fuga do seu povo escravizado do Egipto, conduzido por Moisés através do Mar Vermelho rumo à Terra Prometida. A festividade tinha lugar na primeira lua cheia de primavera do hemisfério norte. Só dezassete séculos depois a Igreja Católica (que já tinha absorvido grande parte da cosmologia judaica) no Concílio de Niceia, em 325 DC, fixou para a data da Páscoa cristã (festejo oficial da Morte e Ressurreição de Cristo) “o primeiro domingo após a primeira lua cheia que ocorre após ou durante o equinócio da primavera boreal”. Para o seu cálculo existe um algoritmo matemático devido a Gauss, que pode ser obtido em certos compêndios de astronomia ou, mais facilmente, na Internet.
Poder-se-iam citar muitos outros exemplos, todos eles ilustrativos da generalizada ignorância que grassa por aí. Porém, não me vou alongar nesta matéria, sob pena de enfastiar o leitor. A realidade é que a maioria das pessoas desconhece a explicação dos mais simples fenómenos do quotidiano. Nem se interessa por eles. Estão tão ocupados a viver as suas vidas, centradas exclusivamente em si próprias, que adquirem uma espécie de miopia mental e não conseguem enxergar num raio superior a dois metros. E (confesso-o!) eu própria nunca teria sabido muito do que hoje sei se não tem acontecido travar conhecimento com o Professor Arlindo dos Reis.
Porém, comecemos pelo princípio. Sou gestora e (perdoar-me-ão pela redundância) orgulho-me de saber gerir a minha vida. Prezo a independência e o equilíbrio. Não é a própria existência uma travessia no arame, sem rede, onde qualquer desatenção pode ser fatal? Por ter essa percepção tão profundamente inculcada, procuro seguir uma trajectória suave, harmoniosa, sem movimentos bruscos.
Pondo de lado falsas modéstias, sou inteligente. E, como todas as mulheres de craveira superior, tenho sentido na pele, desde sempre, uma imensa dificuldade em encontrar um homem à altura. Refiro-me a alguém que preencha os requisitos necessários para se assumir uma ligação quotidiana e duradoura. Alguém dotado de um cérebro autêntico e cujo convívio permanente não me enfastie ao fim de duas semanas.
No entanto, gosto do amor. Por isso, de quando em quando, tomo um amante, de preferência um homem casado. Porquê? Porque, enquanto não encontro o meu eleito, os homens casados oferecem vantagens inquestionáveis. São como um fato acabado de sair de uma lavandaria, sempre impecável, sem uma nódoa, sem um vinco. Quando vêm ter connosco o seu enlevo é total. Mimam-nos, apaparicam-nos, dão-nos os melhores momentos das suas vidas, aqueles em que se sentem libertos de problemas e preocupações. Somos o seu refúgio, a sua consolação, a sua fuga da rotina, e querem verdadeiramente ver-nos felizes.
Por estas razões, quando penso na roupa suja e nas zangas domésticas, tenho uma sincera pena das mulheres casadas. E chego a sentir uma simpática comiseração pelas esposas dos meus amantes. Pobrezinhas, que lhes aturam os podres, que têm de os tratar quando estão doentes ou pacificar quando estão mal-humorados! Enquanto é a mim, na qualidade de amante, que estão reservados os jantares à luz de velas, os presentes românticos e as idílicas viagens de negócios.
Quando decidi fazer uma pós-graduação, encontrava-me numa fase algo obscura da minha vida, tanto pessoal como profissionalmente. Não que considerasse a obtenção de um grau académico adicional como um requisito para um incremento do atractivo das funções que na altura desempenhava. Contudo, sentia-me imersa num entediante lusco-fusco. E o meu espírito assemelhava-se a um cavalo indomável, palpitante de clarividência e ávido de novos conhecimentos.
Imbuída de entusiasmo, dirigi-me à Faculdade de Ciências de Gestão e consultei a lista de mestrados e pós-graduações previstos para o ano lectivo seguinte, cujo início se avizinhava. O rol era extenso e uma linha, apenas uma, ressaltou de imediato aos meus olhos:

O CARACTER FALACIOSO DA PREVISÃO NA GESTÃO ESTRATÉGICA

E, do lado direito da lista, o nome do orientador - Professor Doutor Arlindo dos Reis.
Não tive um segundo de hesitação. Impulsionada por uma espécie de espírito premonitório, inscrevi-me. E, durante as três semanas que durou a espera, imaginei curiosa qual seria o conteúdo da temática que se subordinava a uma denominação tão extraordinária. Afigurava-se-me que me iriam ser transmitidos conhecimentos valiosíssimos, plenos de aplicabilidade prática, sobejamente merecedores do tempo e do dinheiro com eles consumido.
Quando as aulas começaram, verifiquei que registavam uma grande aderência. Pelo menos, pelos meus parâmetros. Havia dezenas de alunos inscritos, de ambos os sexos, todos jovens recém licenciados ávidos de diplomas, na posse dos quais se adivinhavam mais bem apetrechados para vencer no mundo de hoje, de generalizada e desenfreada concorrência. E, embora em rigor não tivesse onde fundamentar as minhas expectativas, não deixei de considerar o número surpreendente.
O Professor Arlindo dos Reis era um homem moreno, alto e entroncado. Para o título que ostentava, era curiosamente jovem, pois não devia contar mais de trinta e cinco anos. Tinha uma barba negra, curta e espessa, que emoldurava uma boca de lábios grossos e sensuais, e cabelo preto encaracolado que começava a rarear nas têmporas. A testa era alta e o nariz um pouco grosseiro. Usava uns óculos grandes, com uma armação em massa, que não escondiam a melancolia do seu olhar. Trajava informalmente. Talvez demasiado, se se atendesse à sua posição. E, embora fosse óbvio o seu asseio irrepreensível, transmitia uma certa impressão de desalinho. Trazia amiúde a camisa meio por dentro meio por fora das calças. Não raro, aquela encontrava-se mal abotoada, com os botões nas casas erradas. A barba apresentava-se escanhoada de forma irregular. E a combinação das cores das diversas peças da sua indumentária não era das mais felizes. Na realidade, vestia-se mal, sem gosto nem aprumo. Em resumo, poder-se-ia dizer que exibia o estereótipo do homem de ciência (hoje em franco declínio), distraído, desleixado e desligado por completo das aparências.
Apesar de seduzida pela terminologia que fora dada à pós-graduação, assim como pela invulgar aparência do professor, cedo me apercebi de que a matéria da mesma era insípida e sem rasgo. No entanto, não se conclua daqui que as aulas fossem enfadonhas. Pelo contrário, eram fabulosas. O Professor Arlindo dos Reis falava alto, com à vontade e gestos exuberantes. Era de uma cultura sem limites e, não raro, as suas exposições fugiam ao tema inicial e versavam outras matérias, quase sempre ligadas à Física, à Matemática, à História e até à Astronomia. Então vibrava de exaltação, a sua voz tornava-se mais estridente e percebia-se que eram estes conteúdos (e não os da matéria que era suposto transmitir) que verdadeiramente o empolgavam. Compreendia o Universo e as leis que o regiam. Para todo o fenómeno tinha uma explicação. A propósito de qualquer acontecimento emitia um juízo acertado e de cada descoberta ou invenção conhecia o enquadramento histórico. Para rematar, era muito simpático. Percebia-se que gostava de ensinar. E, quando dissertava, era difícil despegar os olhos dele, tal o seu dom de palavra.
No entanto, apesar da inquestionável qualidade das aulas, depressa começou a grassar entre os alunos um certo desinteresse. Sentiam-se defraudados. Estavam ali para conseguir um grau académico e não para ouvir as prelecções do professor. Muito menos para adquirir conhecimentos sobre os quais não iriam ser examinados. Por conseguinte, depois de terem conseguido fotocópias da matéria propriamente dita, foram, um a um, abandonando as aulas.
Eu, pelo contrário, dada a minha postura antagónica, não perdia uma única lição. Dava-me conta do carácter excepcional do professor e da preciosidade dos ensinamentos que transmitia. Estes, mesmo desprovidos de aplicabilidade prática imediata, valiam pela sua intrínseca raridade. E, quando me vi sozinha na aula, o meu principal receio foi o de que o Professor Arlindo dos Reis não estivesse disposto a ensinar um quórum reduzido à minha pessoa.
Todavia, enganei-me. Ocorreu uma mudança, sim, mas para melhor. O Professor pareceu ficar agradavelmente surpreendido com as deserções e concentrou em mim toda a sua atenção. Provavelmente, o facto de eu me manter fiel às suas aulas demonstrava-lhe que o meu amor à ciência se sobrepunha à mera sofreguidão por graus académicos. Passou a tratar-me informalmente. Durante as suas exposições eu já não me sentia no extremo de um binómio mas envolvida numa esfera. Continuava a ensinar-me e, contudo, parecia que apenas dialogávamos. E, como que por acaso, evadia-se ainda mais da matéria de gestão para versar quase em exclusivo os temas da sua preferência:
- Está um lindo dia, um céu azul… - exclamou uma vez, com um timbre sonhador na voz, quando íamos começar uma aula
- É verdade – respondi, relanceando a ampla janela da sala de aula.
- A propósito, sabe porque é que o céu é azul?...
- Não. De facto, não.
- Bem, é uma consequência da maneira como os raios solares interagem com a atmosfera…bla, bla, bla…
E, mais uma vez me quedei a escutá-lo, maravilhada.
Poucos dias depois, disse-me:
- Venha comigo. Quero mostrar-lhe o meu gabinete.
Segui-o até às entranhas da faculdade, onde nunca tinha posto os pés. Descemos vários lanços de uma escada recôndita e chegámos a um corredor estreito e escuro, com portas de ambos os lados, equidistantes umas das outras. Cada uma tinha um pequeno dístico ostentando o nome do ocupante. O Professor Arlindo dos Reis parou perto de uma delas, que exibia o seu nome, e sacou da algibeira um imenso molho de chaves. Ergueu-o diante dos olhos (aí pude constatar que se encontrava munido de um porta chaves ostentando o “et pluribus unum” e a águia do Sport Lisboa e Benfica, o que não deixou de me provocar um sorriso de condescendência ante aquela pequena manifestação de fraqueza masculina) e agarrou numa chave que enfiou na fechadura, abrindo a porta.
- Faça favor – disse, afastando-se para eu passar.
Entrei e tive a sensação de penetrar noutra dimensão. O gabinete era pequeno e frio. Uma janela na parte superior de uma das paredes deixava entrar uma réstia de luz mas não permitia a vista para o exterior. Uma estante metálica de módulos, uma secretária revestida a plástico castanho sobre a qual repousava um computador e duas cadeiras constituíam a totalidade do mobiliário. Todavia, o gabinete não era inóspito. Pelo contrário, transmitia uma reconfortante sensação de acolhimento. E isso devia-se ao facto de estar completamente atravancado de livros. Havia-os na estante, arrumados em filas, bem apertados, em cima da secretária e das cadeiras, e até no chão.
Dei dois passos e o Professor fechou a porta atrás de nós. Olhei ao redor e fui irresistivelmente atraída pelas lombadas dos livros. O meu olhar percorreu-as com atenção e não pude evitar uma exclamação:
- Mas… são livros de Astronomia, de Geografia, de História!…
Eu estava assombrada. Não era aquele homem responsável por uma pós-graduação em Gestão Estratégica?...
Os olhos do Professor Arlindo encontraram os meus. Quando falou, parecia um pouco atrapalhado, como uma criança tímida apanhada em falta.
- Pouca gente sabe que eu sou licenciado em Física… - proferiu em voz baixa, com a entoação de quem revela um segredo.
- Em Física?!... Mas então como é que…
- Oh, não fique aflita! – exclamou, enquanto a boca se abria num sorriso e os seus olhos perdiam a expressão perplexa – Cursei Física há muitos anos, quando ainda tinha ilusões… Mas é preciso viver, de forma que, já com uma formatura completa, resolvi entrar para a Faculdade de Ciências de Gestão, onde me licenciei pela segunda vez. E onde tenho trilhado uma carreira docente bem sucedida.
- Compreendo… - respondi, fitando-o com acrescido interesse.
- E, de qualquer modo, também tenho livros de Gestão… - acrescentou, apontando-me para um sector da estante, por sinal bastante inacessível, onde se viam duas dúzias de volumes esquecidos.
O Professor Arlindo dos Reis retirou os livros que estavam em cima das cadeiras e fez com eles um montinho que colocou no chão, a um canto. Com um gesto amistoso, convidou-me a sentar. Só nessa altura reparei que o seu dedo anelar da mão esquerda exibia uma fina mas inequívoca aliança de casamento.
A partir desse dia, não mais voltei à sala de aulas. O Professor Arlindo dos Reis recebia-me no gabinete. Dedicava-me várias horas por semana do seu (decerto precioso) tempo. Num ambiente de amena cavaqueira, eu assimilava tudo o que ouvia com a facilidade que só um interesse genuíno consegue facultar. Aprendi, entre muitas outras coisas, o funcionamento de um acelerador de partículas, de um detector de mentiras e de um circuito integrado. Assimilei o Efeito Doppler e a Precessão. Compreendi a Contracção do espaço e a Dilatação do tempo.
Embora os novos conhecimentos não tivessem qualquer interesse prático para o desempenho das minhas funções, eu estava a aumentar imensamente a minha cultura, facto que me proporcionava uma inusitada satisfação. E a minha admiração por aquele mestre (na verdadeira acepção da palavra) crescia de dia para dia.
Por outro lado, ele reconhecia as minhas capacidades. Considerava o meu raciocínio exímio e a minha memória fora de série. Qual é o professor que não gosta de ensinar um bom aluno? Por isso, nunca lhe faltava assunto.
Habitualmente o Professor Arlindo dos Reis estava à minha espera no seu gabinete. Eu batia à porta no dia e hora combinados e esperava até ouvir o desejado “Entre”. Então, ao penetrar naquele santuário, era invariavelmente acometida pela percepção de que interrompia um trabalho importante ou um raciocínio complexo. Os olhos do Professor estavam fixos numa página de um livro ou no monitor e assim permaneciam por alguns segundos. Porém, quando finalmente vinham ao encontro dos meus, iluminavam-se. E, com frequência, acabava por discorrer precisamente sobre o trabalho ou raciocínio que eu acabara de interromper. Assim decorria a maior parte do tempo em que estávamos juntos. No entanto, demonstrando um imenso profissionalismo, não deixava de reservar os últimos cinco minutos da nossa conversa para me dar umas pinceladas do Carácter Falacioso da Previsão na Gestão Estratégica.
Certa tarde, quando após escutar o “Entre” abri a porta, vi o Professor Arlindo dos Reis de pé, junto da janela, olhando para cima. Parecia completamente absorto. No entanto, mesmo para a sua elevada estatura, a janela era demasiado alta. Dali, só o céu era visível.
- Boa tarde! – proferi, ao fim de alguns segundos de espera.
- Boa tarde… - respondeu maquinalmente.
Aproximei-me e percebi o motivo do seu interesse. Tinha chovido e um sector circular de um radioso arco-íris desenhava-se sobre um céu azul salpicado de nuvens.
- Minha cara, sabe o que é um arco-íris?... Como se forma?... – acabou por dizer.
- Claro que sei! – respondi, num tom de voz um pouco abespinhado. Afinal, eu não era assim tão ignorante, que diabo!...
- Oh, não se zangue. Há muita gente que não sabe… Aliás, apesar de tudo, talvez desconheça a razão pela qual um arco-íris é sempre circular…
- Tem razão… - respondi depois de pensar um pouco, já arrependida por ter falado de forma desabrida. Até sobre o arco-íris ele tinha de saber tudo...
- Bem, como decerto não ignora – declarou, sentando-se numa das cadeiras - a refracção da luz nas gotas de água esféricas…blá, blá, blá…
Enquanto o Professor Arlindo dos Reis falava, pela primeira vez, abstraí-me do significado das suas palavras. Que homem assombroso! Tão culto! Tão bem falante! Eu continuava de pé. Não me apetecia mesmo nada sentar-me. E, sem me conseguir controlar, aproximei-me e passei-lhe a mão pelo rosto de barba irregular, num incontido gesto de admiração e carinho.
Quando, uma hora depois, saí do gabinete, éramos amantes.

Foi o começo de uma etapa maravilhosa da minha existência. Eu adorava o meu novo amante, o seu ar de cientista louco, o seu gabinete feito um caótico ninho de amor, e a maneira como conseguia discorrer sobre qualquer assunto em qualquer situação. Por outro lado, para um homem da Ciência, teoricamente desprendido em relação aos aspectos prosaicos da vida, o Professor Arlindo dos Reis revelou-se extraordinariamente sensual. E conseguia sê-lo sem perder uma adorável auréola de timidez. Coisa que me arrebatava. Era óbvio que ele me queria satisfazer sob todos os pontos de vista. E conseguia-o plenamente.
Como eu suspeitara, era casado. Mas isso era irrelevante. Nunca fui ciumenta. Nem nunca compreendi a relação geralmente estabelecida entre amor e exclusividade. Eu vivia o aqui e agora, sem passado nem futuro, e o único facto que se me afigurava importante é que finalmente encontrara um homem na companhia do qual acreditava nunca vir a aborrecer-me. Eu, que quase me convencera de que tal não existia, tinha de reconhecer que ali estava o companheiro ideal, em todo o seu esplendor.
Todavia, numa tarde invernosa, depois de termos feito amor numa posição só permitida e possível por uma razoável pujança física, ouvi o Professor Arlindo dos Reis segredar-me a meia voz:
- Vamos passar uma noite numa pousada?... Conheço uma muito sossegada… Que dizes?... Na próxima sexta-feira?...
Sim, apesar do romantismo da situação, o diminuto gabinete do Professor Arlindo dos Reis, onde misturávamos prelecções e carícias, não era o local mais cómodo para estas últimas. No entanto, eu não me queixava. No que me dizia respeito, o desconforto físico era largamente compensado pelo conchego intelectual. E extasiava-me perceber a habilidade com que o meu amante intercalava ternas manifestações de afecto com rigorosos cliques no rato.
Mas a súbita sugestão soprada ao meu ouvido só tinha uma explicação. A nossa relação estava a adquirir importância. E eu não sabia se me devia sentir lisonjeada ou incomodada com o facto. Claro que nem me passava pela cabeça assumir uma relação integral com o Professor Arlindo dos Reis. Aliás, só sabíamos o essencial um do outro. E pela parte que me tocava, não queria saber mais. Seria preciso decorrer muito mais tempo para eu me abalançar a receber um homem em casa, de armas e bagagens. Mas ele era casado. E essa circunstância tranquilizava-me. Ademais, achava extremamente delicado, quase tocante, o facto de ele ter sugerido uma Pousada em vez de me propor, muito simplesmente, dormir em minha casa.
Concordei com a sugestão. No dia combinado, ao fim da tarde, o Professor Arlindo dos Reis foi buscar-me. Quando desci e vislumbrei o carro em que me aguardava à porta de minha casa, fiquei boquiaberta. Era um bom veículo, dos caros, muito diferente do que eu imaginara para um amante da ciência, desprendido de luxos e mordomias.
- Belo bólide! – não pude deixar de exclamar, enquanto me sentava ao lado do condutor..
- Achas?... – e sorriu-me com um irresistível olhar travesso. Parecia tão satisfeito por me ter agradado!... - Gosto de bons carros, manejáveis e rápidos, de cilindrada elevada…
- Ah sim?... E porque escolheste este aqui?... – inquiri, curiosa.
- Bem, a escolha não foi simples. Para começar, a marca devia ter oficinas em locais com bons acessos por meio de transportes públicos. Esta é uma questão fulcral da qual nunca abdico. Mesmo assim, para seleccionar o meu eleito, tive de levar a cabo um estudo completo e rigoroso de algumas dezenas de marcas/modelos. Observei criteriosamente desempenhos de motores, tipos de alimentação, binários e potências. Todavia, um carro não é só motor. Portanto investiguei também sistemas de transmissão, de suspensão e de travagem. Também a qualidade das carroçarias, dos interiores e, claro está, dos equipamentos, não me foi indiferente. Por outro lado, optei por…
- E o facto do carro ser bonito? Não é relevante?... – questionei, interrompendo-o.
- Oh, sim! Obtida uma pequena lista de finalistas da minha selecção preliminar, aprofundei a investigação e incrementando o rigor dos critérios aplicados entrando em linha de conta com outros parâmetros tais como consumos, custos de manutenção, dados estatísticos sobre número e gravidade de acidentes e, como é óbvio, a beleza intrínseca das linhas. E foi este o eleito. Quanto à cor…
Enquanto o escutava, raciocinei. Era tudo de uma lógica inatacável. E, atónita, compreendi que na vida do Professor Arlindo dos Reis, nada era obra do acaso. Todas as escolhas obedeciam a rigorosos critérios de selecção.
Chegámos à Pousada ao cair da noite, depois de uma viagem agradável através de estradas secundárias ladeadas por árvores frondosas. O local era escondido, próprio para quem não quer ser visto. Dirigimo-nos à recepção e um empregado amável e sorridente cumprimentou o meu companheiro:
- Boa noite, senhor.
Embora o recepcionista se lhe tenha dirigido sem menções especiais, algo na sua atitude me fez acreditar que já conhecia o Professor Arlindo dos Reis. Teria o meu companheiro lá pernoitado alguma vez?... Com quem?... Talvez com a esposa... Como seria ela?... Mas não! Abanei a cabeça tentando sacudir este pensamento. Nada daquilo me interessava. Uma das regras que sempre me norteara era a de manter a mais completa ignorância sobre as esposas dos meus amantes.
Passámos uma noite maravilhosa. No dia seguinte, apesar da beleza da paisagem que apelava a um passeio a pé, permanecemos a maior parte do tempo no quarto. Estávamos de tal modo embrenhados um no outro que nem dávamos pelo passar das horas. Só ao fim da tarde, antes de abandonar a Pousada, é que decidimos caminhar um pouco no jardim exterior. Então pude verificar que o meu companheiro detinha também variados conhecimentos de botânica.
Quando, nessa mesma noite, o Professor Arlindo dos Reis me deixou à porta de minha casa, tínhamos passado juntos vinte e quatro horas seguidas. E nenhum de nós se aborrecera.
A partir daí começámos a dar escapadelas com regularidade. Dormíamos fora de sexta para sábado, tomados de uma espécie de febre de sexta-feira à noite. O Professor Arlindo dos Reis conhecia várias casas de turismo de habitação, em locais aprazíveis, onde a discrição era um requisito. Mais um sector onde ele demonstrava estar muito bem informado. E eu não deixava de me surpreender. Claro que não conseguia perceber se ele já teria ou não pernoitado em todos aqueles locais. Sabia da existência deles, ponto final. E fazia questão de pagar as contas. Era um perfeito cavalheiro.
De aula em aula, de carícia em carícia, de pousada em pousada, acabámos tornando-nos menos cautelosos. Volta e meia encontrávamos pessoas conhecidas, de um ou de outro. Confesso que ficava um pouco atrapalhada. Nunca andara com nenhum amante na rua às claras. Às vezes questionava-o:
- Não te importas que te vejam comigo?...
- Claro que não! És minha aluna, estou a preparar-te para o exame… - respondia.
Como sempre, a sua lógica era incontornável.
À medida que a nossa relação ia adquirindo importância nas nossas vidas, eu ia notando no Professor Arlindo dos Reis uma subtil transformação. Insensivelmente, começara a cuidar da aparência. Vestia-se melhor. Já não se apresentava com a camisa mal abotoada e por fora das calças. A barba e o cabelo andavam bem aparados. Até que um dia, no meio de uma prelecção, me perguntou:
- Queres ir comigo às compras? Precisava da tua ajuda para escolher umas coisas…
Fiquei comovida. Como a esmagadora maioria dos homens, o Professor Arlindo dos Reis detestava ir às compras. E foi com orgulho que anuí ao seu pedido e o ajudei a escolher várias peças de indumentária, em várias lojas da moda, num imenso e super concorrido centro comercial. Foi um regalo dar-lhe a minha opinião e observá-lo enquanto se decidia a aceitar as minhas sugestões, sem olhar a preços. Agora, tinha a certeza de que o meu mestre confiava cegamente em mim. O que constituía, a meu ver, a suprema prova de amor.
Pouco tempo depois o Professor Arlindo dos Reis disse-me que fora convidado para um jantar de antigos colegas de curso, ao qual gostaria que eu o acompanhasse. Estranhei. Já era suficientemente curioso que ele não se importasse de ser visto na minha companhia, a qualquer hora do dia. Mas um jantar… Aí a coisa fiava mais fino. Nenhum amante casado me fizera jamais semelhante proposta.
- E a tua mulher?... – atrevi-me a perguntar, sentindo um gosto esquisito na boca ao pronunciar aquela palavra.
- A minha mulher?!... Oh, não te preocupes. Ela não liga a estas coisas. Nunca comparece.
Não respondi, mas não pude impedir-me de reflectir sobre a estranheza daquela atitude. Até à data, todos os meus amantes casados haviam sido extremamente cuidadosos em relação às esposas. O que, na minha opinião, só lhes ficava bem. Mas a mulher do Professor Arlindo dos Reis devia ser uma criatura absolutamente ímpar. Provavelmente uma super intelectual, fria e displicente, para quem um jantar de convívio representava uma pura perca de tempo.
Todavia, nem me passou pela cabeça recusar. Era um jantar de quadros de empresas, professores universitários, gestores. Em suma, pessoas formadas, cultas, com nível.
Na noite esperada, vesti-me com elegância e sobriedade. Porém, não foi sem uma razoável dose de constrangimento que me apresentei no repasto, como acompanhante do Professor Arlindo dos Reis. Este usava um fato que adquirira na minha companhia e tinha um aspecto aprimorado. Contudo, embora tentasse disfarçá-lo, notei que estava excitado como um adolescente.
O jantar era volante, o que facilitava a movimentação e o diálogo. Por outro lado, a forma irregular e a fraca iluminação do salão onde decorria permitiam-me, se o desejasse, passar razoavelmente despercebida. Eu hesitava sobre como me comportar. Podia mostrar-me às claras ou esconder-me na periferia Acabei por largar o meu companheiro e dirigir-me ao bar onde solicitei uma bebida (ninguém se sente sozinho de copo na mão) após o que me desviei para um canto obscuro, a fim de observar o ambiente. Os convivas, em número de várias dezenas, conversavam saudavelmente uns com os outros em pequenos grupos dispersos. O professor Arlindo dos Reis avançara para o centro e cavaqueava com este e aquele, com o seu ar exuberante. A certa altura aproximou-se dele uma mulher alta e bem vestida, bonita e sorridente. Começaram a falar os dois, num tom amistoso. Reparei que entre eles parecia haver uma grande confiança. Não que fossem muito efusivos mas, quando interceptei o olhar que ela lhe lançava, não me restaram dúvidas. Há uma maneira especial de olhar para uma pessoa que já esteve nos nossos braços. Uma mulher capta estas coisas. Ali estava uma antiga amante do Professor Arlindo dos Reis. Um caso terminado, sem dúvida, e que deixara em ambos os protagonistas felizes recordações. Bastava olhar para eles. Conversavam com a mais óbvia boa disposição. No entanto, o olhar do professor exibia aquela timidez melancólica que tanto me arrebatava. A certa altura o meu companheiro olhou para mim e fez-me sinal de que me aproximasse. Pelos vistos fazia questão de me apresentar. Acerquei-me e fui anunciada pelo meu nome, sem mais explicações. A ex-amante (eu estava absolutamente certa de que o era) cumprimentou-me com simpatia enquanto me examinava com uma certa curiosidade, após o que se afastou.
Aqui e além já se viam pessoas a servir-se, de forma que decidi ir buscar um prato e comer qualquer coisa. Fiz a minha escolha e, quando olhei em volta à procura de um lugar vago numa mesa recatada para me sentar, reparei que o Professor Arlindo dos Reis conversava com outra mulher. Esta não era tão alta nem tão bonita como a primeira. Todavia tinha um rosto interessante e um olhar extraordinariamente vivo. Incrédula, contornei a sala até encontrar uma posição que lhe interceptasse o olhar. Quando o consegui, senti-me gelar.
No fim do jantar, muito agradável aliás, eu contabilizara na totalidade seis, exactamente seis, ex-namoradas implícitas do Professor Arlindo dos Reis. Todas indubitavelmente interessantes. E nenhuma lhe guardava rancor.
Qual é a mulher que, num caso destes, não sucumbe a uma insidiosa curiosidade? Eu não sabia que pensar. Aquele homem era um extraordinário professor, até na arte de bem viver. Durante o jantar eu apercebera-me da existência entre as suas antigas amantes de, se não amizade, pelo menos uma cordial tolerância.
Como é evidente, tinha de questioná-lo. Não por ciúme, rivalidade ou desconfiança, mas pelo mais genuíno interesse. Era mais forte do que eu. Sim, qual era o homem que conseguia aquele prodígio? Qual seria, afinal, o seu segredo?...
Todavia, eu não queria cair na vulgaridade de o submeter a um interrogatório. Por isso aguardei uma oportunidade para o sondar com subtileza. E o ensejo para tal apresentou-se-me mais depressa do que imaginara.
Cerca de um mês depois, o Professor Arlindo dos Reis, no meio duma dissertação (como era seu hábito) atirou-me:
- Sabes quem vai casar?...
Eu não sabia, evidentemente.
- Quem?
- A Anabela. A primeira pessoa que te apresentei no jantar onde estivemos.
- Ah!... Já sei.
- Vai casar por procuração com um paraguaio. E viver para o Paraguai.
- Para o Paraguai?!... Mas que ideia…
- São opções de vida… Cada um é como cada qual. E ela sempre teve espírito de aventura. Quanto a mim, serei o representante do noivo na cerimónia.
- Representante do noivo?... Estranho…
- Não, não é nada estranho – e, olhando-me com aqueles olhos nostálgicos, confessou – ela foi minha namorada. Ficámos amigos.
- E quando é que isso teve lugar?...
- Há dois anos.
A partir deste ponto, sem esforço nem constrangimento, o Professor Arlindo dos Reis deu-me a conhecer a sua vida amorosa dos últimos quatro ou cinco anos. Todas aquelas mulheres tinham efectivamente sido suas amantes. E de todas ficara amigo. Ademais, sabiam dos casos umas das outras e conviviam na maior bonomia.
Eu escutei sem perguntar grande coisa, apenas dando um empurrãozito aqui e além, aparentando um total desprendimento. Contudo, por dentro, estava banzada. Tudo aquilo só podia ser obra de um génio. Por fim, atrevi-me a perguntar:
- Mas porque é que todas essas ligações, com todas essas mulheres fantásticas, acabaram?...
- Porque tudo tem princípio e fim. É a entropia, a lei mais universal da Física… – respondeu, com a maior naturalidade e sem hesitações.
Que é que se pode obstar a isto?...
Claro que, da posse destes preciosos dados, a minha curiosidade em relação à esposa do professor Arlindo dos Reis acentuara-se. Ao mesmo tempo, despertava-me sentimentos contraditórios. Quem seria? Como seria? Eu sentia-me incapaz de especular sobre a criatura. Todas as hipóteses se me afiguravam viáveis. Ou uma grande intelectual, com um cérebro equiparado ao do marido e tão autónoma e independente como ele, ou uma criatura simplória, sofredora e indefesa, esmagada pelo desgosto das traições. Entre estes dois extremos, uma série de cambiantes intermédios eram possíveis.
Aproximava-se o fim do ano lectivo e a minha relação com o Professor Arlindo dos Reis estava ao rubro. Em breve, seria submetida ao exame final e terminaria a pós-graduação. Por isso, as aulas tinham adquirido um ritmo mais acelerado, sob todos os aspectos. E, bem no fundo do meu coração, contrariando todas as regras de actuação por que me norteara até aí, interrogava-me sobre o futuro da minha relação com o meu mestre. Que aconteceria?... Terminaria também?... Confesso que essa perspectiva me fazia estremecer…
Acabei por ganhar coragem. Num sereno fim de tarde de primavera, sentada ao seu colo, depois de uma espectacular prelecção entrecortada por carícias loucas, não me contive e disparei:
- Tiveste tantas mulheres!... Porque nunca deixaste a tua esposa?... Que tem ela de tão extraordinário?...
Mas o Professor Arlindo dos Reis não me respondeu.
Contudo, as minhas palavras não caíram em saco roto. Uma semana depois, precisamente na véspera da prova final, no seu gabinete, o Professor Arlindo dos Reis olhou-me nos olhos com aquela expressão inocente que me dava a volta ao miolo e deixou sair estas palavras:
- É verdade que nunca deixei a minha esposa. Mas agora estou a pensar seriamente em fazê-lo…
Ao ouvir isto, o meu coração disparou. Meu Deus! Ele está a pensar em abandonar a mulher por minha causa!, pensei.
No entanto, procurei disfarçar o meu arrebatamento e respondi apenas:
- E… achas que ela te concederá o divórcio de bom grado?...
Ele olhou para cima durante alguns segundos, de olhos semicerrados, como quem reflecte profundamente. Por fim, acabou por responder:
- Não! Claro que não!... – e, com um suspiro, acrescentou – Na verdade, não chegará a haver divórcio. Quando eu a deixar, ela pura e simplesmente morrerá!...
Olhei-o estupefacta:
- Que queres dizer com isso?...
- Que não aguentará.
- Que horror!... – eu não queria crer no que ouvia. – Estás a falar a sério?...
- Não tenho a menor dúvida. Ela é uma pessoa fraca e carente. E gosta demasiado de mim.
- Mesmo assim... Que coisa horrível!...
No entanto, eu quase que compreendia. Sim, estava completamente apanhada. Eu, a gestora, a racional, a equilibrada!... Como diabo me deixara enredar daquela maneira absurda? Olhei para o meu amante e percebi que não conseguiria resistir-lhe. Tudo o que me propusesse, aprovaria.
- Como deves compreender – continuou o Professor Arlindo dos Reis com um ar absolutamente inocente – eu nunca me perdoaria se acontecesse alguma coisa à minha esposa sem uma razão válida. Portanto, antes de dar o passo decisivo, preciso de ter a certeza absoluta de que tu és realmente a mulher da minha vida.
- E… como é que pretendes obter essa certeza?... – eu começava a ficar preocupada.
- Oh, não tenhas medo! – retorquiu com um daqueles sorrisos que me derretiam todas as dúvidas – Sabes, até hoje, acabei sempre por me enfastiar na companhia das mulheres… Com todas elas, de início, sentia-me bem. Eram espertas, cultas, interessantes. Porém, ao fim de algum tempo, mudava de opinião. Era como se lhes caísse o véu e eu, de repente, visse a realidade. E chegava à conclusão de que eram incapazes de um raciocínio elaborado, fracas de memória e de conhecimentos. E perdia a coragem de as ensinar. Mas… - e os seus olhos melancólicos encontraram os meus - contigo é diferente. Estou absolutamente convencido de que superarás o teste…
- Claro que vou superar! Que disparate é este?... – Eu já sabia de cor toda a matéria do “Carácter Falacioso da Previsão na Gestão Estratégica”. – de que é que estás a falar?...
- De nada, de nada!... – respondeu com um ar travesso - Quanto às nossas aulas, acabam aqui. Boa sorte para o exame de amanhã! – e pespegou-me um caloroso beijo nos lábios, cujo sabor permaneceu na minha boca durante várias horas.

No dia seguinte fui submetida ao teste final da pós-graduação.
Passou-se uma semana durante a qual não vi o Professor Arlindo dos Reis. Decerto andava atarefado com a correcção das provas e eu não queria perturbá-lo. Com efeito, além da minha, ele tinha de corrigir as das várias dezenas de alunos que haviam desertado logo no início do ano lectivo. Portanto não o procurei.
Quando finalmente foram afixadas as pautas com as classificações do exame, busquei a minha com ansiedade. Eu sabia que o resultado obtido era decisivo para o Professor Arlindo dos Reis. Quando encontrei o meu nome, li-o até ao fim e, como num sonho, interpretei o melhor que pude os caracteres que estavam escritos à sua frente: 20 valores!
Era chegada a altura de voltar a ver o Professor Arlindo dos Reis. Portanto, fui até ao pequeno gabinete que tão bem conhecia. Bati à porta e esperei. Decorreram alguns segundos que me pareceram horas. Aguardava eu pelo costumeiro “Entre” quando de repente vi a porta abrir-se e o meu amante diante de mim:
- Ora viva!
- Posso entrar?...
- Claro.
E afastou-se para eu passar.
- Então?... – eu estava impante e esperava um cumprimento especial
- Então… - murmurou com um ar muito sério. Porém, de repente, a sua boca abriu-se num sorriso irresistível, puxou-me para si e abraçou-me com força – parabéns pela brilhante nota do exame!...
- Oh! Obrigada! Mas então… então…
- Então – disse o Professor Arlindo dos Reis vindo em meu auxílio - Nós nunca estivemos mais de vinte e quatro horas juntos. Proponho-te uma experiência de três ou quatro dias. Que dizes?...
- Esplêndido.
Partimos na sexta-feira seguinte, com retorno agendado para o quarto dia. Íamos passar três dias, três longos dias (setenta e duas horas, quatro mil trezentos e vinte minutos) completamente sós. O nosso destino era uma belíssima pousada nas montanhas, isolada do resto do mundo, judiciosamente escolhida pelo meu companheiro.
Não consigo exprimir a imensa ventura daqueles dias. Tudo eram rosas. O Professor Arlindo dos Reis abandonara a postura de mestre e tratava-me de igual para igual. Amávamo-nos de corpo e espírito. A nossa mútua entrega era total. Claro que, de quando em quando, ele não podia impedir-se de me explicar alguma coisa. Era mais forte do que ele, estava-lhe na massa do sangue. Todavia, fazia-o com a expressão benigna de quem apenas pretende recordar algo que está esquecido. Por outro lado, uma vez por outra, descaía-se com uma pergunta. Matérias adiantadas, como é evidente. E eu respondia prontamente e com acerto. Percebia um lampejo de satisfação no seu olhar e quedava-me ufana. No fundo, sentia que a decisão dele estava tomada, e que aquela experiência não passava de uma agradável diversão.
No meio da minha imensa felicidade, os três dias chegaram ao fim e tudo tinha corrido magnificamente. Na véspera da nossa partida, depois de um maravilhoso passeio ao luar, arrumámos as malas, fizemos amor e adormecemos felizes nos braços um do outro. Todavia, a meio da noite algo me despertou. O meu amante mexia-se na cama, incomodado. Os seus movimentos eram bruscos e faziam a cama estremecer. Mantive-me imóvel no escuro, sem tugir nem mugir, à espera que o meu companheiro se acalmasse. Todavia, o seu desassossego era cada vez maior.
- Que se passa?... – acabei por perguntar, ensonada, perante aquele evidente estado de agitação.
- Não consigo dormir… - balbuciou o Professor Arlindo dos Reis, derrotado.
Durante uns segundos o sono não me deixou raciocinar. Porém, de repente, fez-se luz no meu cérebro e compreendi o que se estava a passar. Aquele homem ia abandonar a mulher por minha causa. Era uma decisão importante, dramática. Era natural que se sentisse inquieto e preocupado.
- Oh, querido… - respondi, cheia de compreensão – Isso é apenas ansiedade… Relaxa e depressa adormecerás - e acariciei-lhe a face olheirenta e fatigada.
Mas o meu amante suspirou e abanou a cabeça:
- Não adianta… - exclamou com uma voz sumida - estas insónias são particularmente renitentes. É raro tê-las mas, quando me atacam, só há um remédio eficaz para eu voltar a adormecer…
- E qual é?... – perguntei, cheia de interesse.
O Professor Arlindo dos Reis soergueu-se ligeiramente, acendeu a luz do candeeiro da mesa-de-cabeceira e recostou e novo a cabeça na almofada à procura de uma posição confortável:
- Preciso de ouvir falar. É a única maneira de me acalmar… Fala comigo, com uma voz calma e ritmada, numa cadência sempre igual…
E olhou fixamente para mim.
Engoli em seco.
- Hã… Pois… Vai tudo correr bem… Descansa… - comecei a dizer, aos solavancos. O meu cérebro estava novamente vazio.
- Oh, assim não!... Não te podes calar… Tens de falar sempre no mesmo ritmo! – e o Professor Arlindo dos Reis olhava-me suplicante.
- …Descansa… Dorme… Descansa… - continuei, hesitante.
- Não! Não te podes repetir! Assim não dá… Olha – e fixou-me com particular intensidade - recita a tabuada!…
Olhei-o abismada:
- Recito o quê?...
- A tabuada! Canta-a, sempre cadenciada, mas sempre diferente… Com a tabuada adormeço logo... Mas atenção, não te enganes! Se te enganas tenho logo um sobressalto!... – acrescentou, com um brilhozinho peculiar nos olhos.
Fiquei calada. Por mais que eu tentasse, a minha boca não se abria.
- Então?... – e o meu amante fitou-me com uma expressão onde entrevi uma certa tensão.
Fazendo um esforço sobre humano, consegui articular.
- Se é isso que queres… - e, sentindo-me a tremer por dentro, tartamudeei – Dois vezes um, dois. Dois vezes dois… Dois vezes dois…
Sentia a cabeça a fraquejar. Havia anos que eu não fazia uma única conta sem me servir da máquina de calcular. E, instada a prosseguir, comecei a gaguejar:
- Dois vezes… Dois vezes…
- Meu Deus! Não posso acreditar! Até tu!... - e o Professor Arlindo dos Reis lançou-me um olhar de uma tão grande decepção que me senti gelar por dentro. - Nunca encontrei uma mulher, por mais culta e inteligente que fosse, que soubesse a tabuada… E contudo, a minha esposa, sabe-a!...
- Mas… Mas… Eu consigo deduzi-la! Dá-me um lápis e eu… eu…
Porém, enquanto eu falava, o Professor Arlindo dos Reis abanou a cabeça.
- Não adianta! Deixa lá, não adianta… – e pareceu concentrar-se em qualquer pormenor do tecto.
- Estou muito cansada… Amanhã já me lembro… - sugeri timidamente.
Mas o Professor Arlindo dos Reis não me respondeu. E, passados mais alguns segundos, acomodou-se na cama de costas para mim, apagou a luz e adormeceu.
Permaneci acordada. Agora, tudo era claro no meu espírito. Eu podia ter tido vinte valores na pós-graduação. Todavia, tal como todas as outras antes de mim, no teste que verdadeiramente contava, falhara miseravelmente.

Adelina Velho da Palma
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