SEBO LITERÁRIO

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O SABOR OCULTO DA PAIXÃO

Gosto de Barcelona. Desde sempre que sinto uma espécie de fascínio, de magnetismo irresistível, que me atrai para aquela estranha cidade. O próprio nome possui uma sonoridade exótica, romântica, criadora de expectativas… E, no entanto, depois do que por lá me aconteceu, não sei se alguma vez tornarei a pisar aquele chão profano e a respirar aquela atmosfera extravagante.
Era uma atração difícil de explicar. Eu já lá tinha estado muitas vezes. E, em todas elas, achava que não haveria razões para voltar. Com efeito, as águas do Mediterrâneo sempre me inspiraram desconfiança e, em rigor, não apreciava a estética da Art Nouveau.
Todavia, o certo é que, com uma periodicidade regular, era levado a fazer as malas e a ir instalar-me durante uns dias num hotel das Ramblas. E, cada vez que o fazia, não deixava de constatar a trivialidade do que me rodeava. A paisagem humana era similar à de tantas outras cidades. A insegurança também. E as numerosas esplanadas repletas de gente alegre e faladora, entregue à bebida e às tapas ao fim da tarde, encontravam-se presentes em muitos outros locais de Espanha.
No entanto, não obstante a minha natureza pouco fantasiosa, captava algo de sinistro naqueles prédios bizarros do Passeig de Gracia. À noite, iluminados por focos bem posicionados, eram inteiramente falsos, extraordinários, contra a natureza. Trocistas e provocadores, lembravam-me erupções vulcânicas ou gritos de revolta. E percebia neles qualquer coisa de pervertido. Sempre que os olhava atingiam-me como uma queimadura. Eram belos, sem dúvida. Mas não de uma beleza que apaziguasse ou que se pudesse tratar com intimidade. Porém, sentia uma incontornável afinidade com eles, como uma atração semelhante à que temos por algo que nos aterroriza e que contudo desejamos desafiar, provar, degustar até à exaustão. Parecia até que eram senhores do meu destino – um destino irremediavelmente traçado - do qual nada me fosse permitido entrever.
Repito que não sou um ser crédulo ou facilmente impressionável. Contudo, por uma razão que não sei justificar, sempre que eu estava em Barcelona a minha disposição era excêntrica. Um inefável manto de fantasia envolvia todo o meu ser. E a minha racionalidade abandonava-me, deixando-me predisposto a aceitar aquilo que os meus sentidos captassem e me dessem para digerir.
Tudo sucedeu há três anos. Apenas três anos. Mas, sempre que olho para trás, verifico que uma névoa seletiva e de densidade crescente começa a envolver aquele setor específico da minha memória. Lembro-me com nitidez de episódios, acasos e ocorrências muito anteriores. Mas aqueles a que me refiro tornam-se cada vez mais longínquos, fátuos, esbatidos por uma bruma espessa. Ignoro durante quanto tempo mais serei capaz de recordar aquela noite com exatidão. E, não sei porquê, assalta-me o pavor de ela ficar sepultada para sempre.
Por consequência, dia após dia, sinto crescer dentro de mim um impulso que me obriga a patentear ao mundo tudo o que ali sucedeu. Acreditar-me-ão? Provavelmente não. Mas isso não é relevante. Não posso fugir a uma revelação completa. E, já que o Criador me concedeu o dom de escrever, vejo-me impelido a traduzir em palavras os estranhos acontecimentos em que me vi envolvido.
Sou hoje um escritor consagrado, amado pelo público e respeitado pelos críticos. Em três anos escrevi outros tantos best sellers que me tornaram rico e famoso. Exatamente aquilo que eu desejava. Os meus livros estão traduzidos em todas as línguas. Dou-me ao luxo de escolher as editoras que me oferecem melhores condições e de exigir elevadíssimos direitos de autor. Além disso, as opiniões são unânimes em afirmar que não se trata somente de êxito comercial. Este, se baseado em fórmulas fáceis de consumo rápido, depressa desaparece do firmamento. Livros de um tal cariz, por muito que vendam em determinada altura, estão condenados a desaparecer e, vinte anos depois do êxito, ninguém se lembrará deles. Os meus, pelo contrário, parecem destinados à glória duradoira dos clássicos. Os temas não são muito originais – a vida, a morte, a vida depois da morte - enfim, nada mais que as eternas incógnitas da condição humana, ao pé das quais tudo o resto perde a importância. No entanto, são revolucionários. Possuem a particularidade de evidenciar ao leitor a trivialidade das tramas comezinhas da espécie e transportá-lo para um universo superior, onde tudo faz sentido, tudo é aceitável, tudo é explicável. Nos meus livros, as duas peças basilares do puzzle da existência, a material e a sobrenatural, encaixam-se sem esforço. E, segundo os peritos na matéria, a isso se deve o seu êxito e a sua provável perdurabilidade.
Há três anos, eu era apenas um jovem escritor lisboeta, obscuro e desiludido. Tinha várias obras publicadas, mas nenhuma me granjeara a admiração do público ou o elogio dos críticos. Os meus romances, de caráter realista, todos edições de autor, escritos à custa do meu talento e do meu esforço, não vendiam. Ninguém ouvira falar de mim. Porém, eu acreditava no meu valor e perseguia a quimera de sair do anonimato literário e conseguir viver da escrita. Enquanto isso, gozava a vida com desafogo e sustentava o meu sonho, trabalhando arduamente num setor profissional que, embora prosaico, era muito lucrativo - a venda de imóveis.
Para dizer a verdade, além de ambicioso, era vaidoso. Queria fama, reconhecimento, consagração. Em vida. E sentia um frio no peito quando pensava nos artistas que tinham arrostado com uma existência anónima e só haviam sido admirados depois de mortos.
Ciente de que na vida é preciso fazer opções, não me entusiasmava demasiado com as diversões e prazeres que costumam preencher a vida de um macho jovem, normal e saudável. As mulheres ocupavam um lugar secundário na minha vida. A mesma coisa se pode dizer de pândegas e futebol. Não quer isto dizer que fosse puritano, ingénuo ou abstémio. Simplesmente, não deixava que atividades acessórias roubassem muito tempo à única que considerava verdadeiramente importante. Não me queria prender. Sim, eu buscava uns horizontes mais vastos. E só por exceção não dedicava todo o tempo livre à minha arte. Ao mesmo tempo, tinha os pés bem assentes no chão. Por isso, enquanto perseverava na produção literária, esforçava-me, como tantos outros, por conseguir uma migalha de atenção de uma figura pública da sociedade. Num mundo cada vez mais mediatizado, sem ajuda, nada conseguiria.
Publicara eu, havia poucos meses, mais um livro, ao qual me entregara de alma e coração e no qual acreditava mostrar todas as minhas potencialidades de escritor (e que constituíra mais uma desilusão) quando me surgiu uma oportunidade. Tratava-se de uma jornalista. Uma mulher conhecida de meio mundo, chefe de redação de um jornal de grande tiragem e de distribuição nacional. Aliás, com fama de dedicar a vida à profissão e uma certa reputação de defensora da cultura. Por interposta pessoa, condescendera em ler o meu último livro e entrevistar-me a esse respeito.
Quando essa notícia me chegara, eu ficara na expectativa do que se seguiria. E, embora me repugnasse recorrer a esse tipo de gente, com cuja arrogância já me vira confrontado por diversas vezes, eu abafava os meus escrúpulos com o pensamento de que, se tudo corresse bem, seria um considerável empurrão na minha carreira. Como disse Maquiavel “os fins justificam os meios”. Porém, tratei de minimizar as minhas esperanças. Já por diversas vezes no passado me tinham sido feitas promessas idênticas que não chegariam a concretizar-se.
Não obstante a minha índole otimista (a que se juntava uma boa parcela de confiança em mim próprio), sentia eu, naquela altura, uma certa frieza em relação aos outros seres humanos, que oscilava entre o desapontamento e a revolta. De natureza perseverante e determinada, começava finalmente a esmorecer, traumatizado com o árduo caminho já percorrido. Não conseguia perdoar a todos quantos me haviam enganado com falsas promessas de apoio. Muito menos àqueles que, tendo vislumbrado em mim a centelha do talento, tudo faziam para me abafar a voz e levar a desistir, a fim de não ensombrar os astros já acomodados no estrelato. Por isso, imaginava-me a pairar acima do meu semelhante, que procurava olhar com um interesse puramente profissional. A observação dos seus golpes, paixões e baixezas servir-me-ia para criar enredos magistrais, onde pusesse a nu a selvática natureza humana. Natureza humana essa, na qual, diga-se de passagem, me sabia incluído.
Todavia, enquanto me atolava no charco do desengano, o milagre aconteceu. Incrédulo, fui convocado para a entrevista. A jornalista recebeu-me no seu gabinete na redação do jornal. Quando entrei, a minha predisposição oscilava entre o desejo de agradar e a desconfiança. Queria convencer, impressionar, brilhar! Mas só se a interlocutora valesse a pena.
Assim que a vi, fiquei agradavelmente surpreendido. Supunha eu que, como é frequente nas figuras conhecidas, a pessoa real ficasse muito aquém da imagem pública. Fotografias e poses televisivas são captadas de modo a favorecer as pessoas. O que, no caso presente, era falso. Apesar de pouco propenso a deixar-me maravilhar, tive de reconhecer que o encanto de Sara B (prefiro não referir aqui o seu nome verdadeiro) era autêntico. Embora mais velha que eu, poder-se-ia considerar jovem ainda. Uma mulher madura, na força da vida. E bonita. Muito bonita.
Recebeu-me com à vontade. Começámos a falar e verifiquei que Sara não se exprimia no tom afetado nem com a exuberância exagerada tão habitual nos media. De início, confesso que estava um pouco tenso. Porém, depressa me descontraí, suavemente embalado por um agradável e fluente diálogo acerca de minha pessoa (quem é que não gosta de falar de si próprio?!). E, enquanto respondia à minha interlocutora, tentava dominar o turbilhão de sensações que me submergia. Sentia-me seduzido. E não só pela sua beleza. Claro que ela tinha uns belos olhos, um cabelo lindíssimo e uma pele magnífica. E um corpo… No entanto, havia algo mais na sua fisionomia inteligente, na sua voz musical e nos seus modos serenos que exercia uma poderosa impressão na minha pessoa. De algum modo, tive a certeza de que aquela mulher e eu estávamos indissoluvelmente ligados. Como se o meu íntimo o soubesse de antemão e me tivesse proporcionado a clarividência, servindo-me essa revelação de chofre, em todo o seu esplendor. Quanto a Sara, julgava notar-lhe um certo fulgor no olhar, sempre que me fitava diretamente. Seria pretensioso presumir que sentira o mesmo que eu?...
Evidentemente, nada disto era especial. Tratava-se simplesmente daquilo que se costuma designar por uma forte “química”, embora os mais sonhadores lhe chamem “amor à primeira vista”. Já por diversas vezes eu descrevera este fenómeno nos meus romances, sem nunca o haver experimentado. E, no fundo, sem acreditar que tal pudesse acontecer…
Sara começou por me dizer que o meu livro, que eu entretanto lhe fizera chegar às mãos, tinha sido muito apreciado. E os seus elogios fizeram-me sentir particularmente orgulhoso. Também ela, segundo afirmou, gostaria de escrever. Mas as boas ideias escasseavam… Num tom casual, sem qualquer formalismo, foi-me dirigindo um vasto rol de perguntas, decerto pré definidas, mas que mais pareciam decorrentes da conversação. E, caso curioso, eram exatamente as que eu desejaria, pois sabia que me fariam mostrar o meu potencial e a minha originalidade.
Raciocinei com inteligência. Dissertei com elegância. Expus com rigor as minhas conceções sobre a escrita. Era uma oportunidade magnífica e havia que aproveitá-la. Quando, por fim, Sara deu a entrevista por terminada, fiquei admirado ao verificar que haviam decorrido mais de duas horas. Despedimo-nos e eu saí para a rua. Estava impante, de bem com o mundo e com a humanidade. Dera uma excelente entrevista. Assim que esta fosse publicada, acabaria o meu anonimato. Quanto a Sara… Enfim, não vou dizer que estivesse apaixonado. Ninguém se enamora ao fim de duas horas. E, no entanto, que outro nome poderia dar aquilo que sentia?... Desejava-a, claro... Mas não estava certo de que o meu sentimento se resumisse a desejo…
Com efeito, ela não mais abandonaria o meu pensamento. Todos os dias, eu comprava o jornal onde a entrevista sairia, na esperança de a ver publicada. E devo confessar que não sei o que mais ambicionava: Se ver o meu nome nos jornais (o que me faria pela primeira vez alcançar uns laivos de notoriedade), se arranjar um pretexto para rever a minha entrevistadora. Sim, logo que as minhas expectativas fossem satisfeitas, procurá-la-ia para lhe agradecer. E, quem sabe, talvez no decorrer da conversa surgisse o ensejo para mais qualquer coisa. Um café, um drink, um jantar...
A princípio não estranhei que nada aparecesse no periódico. Havia decerto compromissos anteriores a honrar. Continuei a comprar o jornal todos os dias e a percorrer as suas páginas com os meus olhos ávidos. Porém, ao fim de um mês, comecei a estranhar o mutismo daquelas letras impressas. Passar-se-ia alguma coisa? Teria a minha entrevista sido posteriormente relegada por alguma razão? Mistério. Pensei então em telefonar para o número que Sara me havia dado. Assim fiz. Mas aquele encontrava-se permanentemente inacessível. E nem a pessoa que me conseguira o encontro lograva falar com ela.
Passavam as semanas e a minha ansiedade ia crescendo. Todavia, Sara impressionara-me tão favoravelmente que nem me passava pela cabeça que me tivesse enganado. Ela assegurara-me que a entrevista seria publicada. E eu confiava que só um entrave muito forte a impedia de, até à data, não ter ainda cumprido a promessa feita.
Que cândido fui! Creio que teria continuado a aguardar indefinidamente a publicação da fatídica entrevista, se não se tem dado o caso de ser lançado um livro – um romance - da autoria de Sara. Claro que o respetivo lançamento se cercou de uma tremenda publicidade. Ela era uma pessoa conhecida e, desde que o livro tivesse um mínimo de qualidade, o sucesso estava garantido.
Ao saber da notícia, senti um misto de surpresa e mal-estar. Por um lado, o simples facto de Sara ter escrito um romance tornava a nossa empatia ainda maior. Porém, algo me dizia que havia demasiada coincidência em tudo aquilo. Era, no mínimo, curioso, que estando ela a escrever um romance quando me entrevistara, não o houvesse mencionado. Mas tentei sacudir a perplexidade que me invadia. Talvez ela só o tivesse iniciado depois da nossa conversa, e o tivesse redigido em tempo record. Afinal, é sabido que todos os jornalistas anseiam tornar-se escritores. Ela própria o afirmara. Mais tarde ou mais cedo, acabam por ter consciência do caráter prosaico e transitório da sua profissão e desejam dar o salto para terreno mais criativo e duradoiro. Porém, poucos o conseguem. Teria ela logrado ultrapassar a linha divisória que separa aqueles dois universos? Só havia uma maneira de o saber.
Comprei o livro. Assim que o segurei entre as mãos fiquei estranhamente angustiado. Folheei-o e os carateres impressos nas páginas (aliás num belíssimo e cuidado tipo de letra) pareciam fitar-me, como se estivessem pestes a despegar-se do papel e a saltar para o meu colo. Poder-se-ia quase supor que me quereriam dizer alguma coisa!...
Perturbado, dirigi-me para casa. Uma vez aí, atirei-me para cima da cama e abri o livro na primeira página. As letras perfilavam-se perfeitamente estáticas, ordeiras. Descontente, abanei a cabeça. Quão bizarras ilusões a agitação consegue criar!...
Comecei a ler. O livro estava muito bem escrito. Em boa verdade, era excecional. Sem sombra de dúvida, ali estava uma obra produzida por uma autêntica mestra da palavra. Porém, apesar do enredo engenhoso, tudo o que eu apreendia parecia-me familiar. Como se, aparte a trama propriamente dita, não houvesse ali uma única ideia original. Continuei a leitura e, à medida que avançava, esta impressão acentuava-se. Até que, de repente, percebi porquê.
O livro era um plágio. Embora se baseasse numa história criada para o efeito, não havia ali uma única ilação nova, fresca. Todos os conceitos expostos tinham por substrato as ideias que eu andava a desenvolver com vista ao meu próximo livro. Sim, o livro plagiado era o meu! Um livro que ainda não escrevera, a não ser na minha mente. Sara agarrara nas minhas reflexões a esse respeito, embrulhara-as com palavras bonitas e frases bem construídas, e disseminara-as numa nova história. E, ainda por cima, (como me custava reconhecê-lo!) fizera um ótimo trabalho.
De tão indignado, senti-me prestes a explodir!... Sara aproveitara-se de mim, um jovem escritor desconhecido. Condescendera em me entrevistar com o único propósito de tomar conhecimento dos meus projetos. Uma vez satisfeita, rasgara a entrevista e atirara-se à escrita usando os meus conceitos, juízos e noções. Todavia, eu nunca poderia provar a artimanha. O livro dela estava ali e o meu ainda só existia na minha cabeça.
É impossível exprimir a raiva que tomou conta de mim. Odiava-a. E odiava-a tanto quanto acreditava tê-la amado (enfim… pelo menos ocupado o meu pensamento com ela) durante semanas. Tudo me doía por dentro. Era inconcebível que alguém fosse tão frio e calculista. Sentia-me uma mosca apanhada na teia de uma aranha dissimulada e sanguinária. Por outro lado, arrependia-me amargamente do meu desejo de notoriedade. Não fora por ele, nunca me teria encarniçado na procura de entrevistas ou notícias nos jornais. Senti-me ridículo. E, pela primeira vez na vida, desejei verdadeiramente distanciar-me do meu semelhante, viver num plano superior da existência, imune a paixões e dependências. Olharia para os outros seres humanos como o médico olha para o doente - sem emoções. E imaginei-me a protagonizar uma inflexão de cento e oitenta graus na minha meta de vida. Escreveria por puro amor à arte. Não mais depositaria esperanças em ninguém e alimentar-me-ia da certeza de me encontrar na senda da perfeição. Poria de lado a vaidade. Seria modesto. E, acima de qualquer outra coisa, esqueceria o papel de tolo que desempenhara em toda esta história.
Claro que estas intenções, tão contrárias à minha maneira de ser, não chegariam a ganhar raízes dentro de mim. No entanto, foi nesta disposição de espírito que fui acometido por um dos meus periódicos desejos de evasão. Nada como umas férias para esquecer as tribulações. Só de pensar nisso, conseguia esboçar um sorriso e sentia o meu otimismo regressar. E foi assim que, logo que a vida profissional mo permitiu, como se não houvesse outro sítio no mundo para onde ir gastar tempo e dinheiro, me meti no avião e fui passar uns dias a Barcelona.
Era verão e a cidade abarrotava de turistas. Em grupos, aos casais e até sozinhos, estavam por todo o lado. Enxameavam as igrejas e os museus, enchiam as lojas de recuerdos, ocupavam o metro e o Renfe, monopolizavam os self-services e os restaurantes de fast food. Eslavos altos, louros e bronzeados pelo sol, americanos idosos de calções e mochila às costas, japoneses palradores de câmara em punho… A cidade era palco para todas as nacionalidades.
O hotel onde me encontrava estava cheio. Os rececionistas não tinham mãos a medir, dado o imenso fluxo de entrada e de saída de hóspedes. Ouviam-se constantemente as palavras check in e check out. Tanto de manhã como à noite, havia sempre grupos de pessoas no átrio do hotel, aguardando táxis ou autocarros de excursão, assim como bagagem precariamente arrumada num ou noutro canto, à espera de despacho para outro destino.
Eu tudo fazia para gozar a estadia da maneira que nos é permitido usufruir de alguma coisa somente quando já a conhecemos razoavelmente bem. Não pode haver sensação mais deliciosa que a de nos encontrarmos sós numa grande cidade estrangeira que nos é familiar, sem programas pré estabelecidos nem horários a cumprir. Durante o dia escolhia os trajetos a percorrer e os pontos de interesse a visitar ao sabor do improviso, com o à vontade do conhecedor. E degustava um luxo raro - a explícita perca de tempo que deriva do facto de admirarmos uma coisa que já vimos muitas vezes, tentando descobrir-lhe novos contornos, perspetivas e motivos de interesse.
À noite o meu programa não variava muito. Geralmente jantava num restaurante do Port Vell ou da Barceloneta, admirava as luzes do Mediterrâneo, após o que ia até ao Bairro Gótico à procura de um bar aprazível. Outras vezes passava pela Plaza Catalunya, e ficava a observar os artistas de rua que se exibiam por lá.
Claro que, apesar de todas as mentalizações em contrário, a imagem de Sara voltava ao meu pensamento com frequência. Dentro de mim, as emoções sobrepunham-se ao raciocínio, e a minha condição psicológica não era das mais estáveis. Talvez por isso, a aura de misticismo que me dominava sempre que me encontrava em Barcelona, estava particularmente exacerbada. Sobretudo à noite, fora da influência apaziguadora da luz solar, enquanto percorria o Passeig de Grácia, no meio de uma verdadeira turba de mirones, sentia as fantásticas casas de Gaudi fitando-me como a um intruso. E percebia que, apesar da multidão de desconhecidos que deambulavam pelas ruas, me encontrava ali estranhamente sozinho. As pessoas que se cruzavam comigo assemelhavam-se a figurantes. Eram baças, sem substância, como se se movimentassem num universo paralelo, visível mas intocável. Os veículos eram de brincar, as árvores artificiais e as construções cenários. O próprio ar que respirava era uma miragem sensorial, incapaz de oxigenar o meu sangue. Barcelona era uma cidade fantasma. Ali, no meio de tudo e todos, só eu estava vivo.
No entanto, apesar da reincidência destas sensações, eu não resistia a um longo passeio noturno. Calcorreava meia cidade, cruzando-me com hordas de criaturas sem espessura, com a perceção de que o espaço e o tempo, tal como eu os conhecia, haviam sido despedaçados e já não significavam coisa alguma.
Quando regressava ao hotel, a estranheza desaparecia. Como se o ato de transpor a porta de entrada fosse equivalente a penetrar numa câmara de teletransporte, que instantaneamente me fizesse regressar do hiperespaço onde vagueara.
Antes de subir para o meu quarto, passava pela sala de estar. Esta era grande. Como é frequente em Espanha, em particular nos hotéis de três estrelas, tinha uma dimensão e um luxo muito superiores ao dos quartos. Quedava-me então ali sentado, durante uma ou duas horas, com um livro nas mãos. De vez em quando levantava os olhos e, enquanto interiorizava o que acabara de ler, observava a paisagem humana circundante. Apesar da lotação esgotada do hotel, o salão não era muito frequentado. Apenas meia dúzia de pessoas no bar e outro tanto nas poltronas. Destes, quase todos liam jornais cuja língua deixava adivinhar a nacionalidade respetiva. Nem todos eram turistas. Alguns deviam ser homens de negócios ou quadros de empresas deslocados a fim de comparecer nalgum congresso ou reunião importante. Não era difícil identificá-los pois geralmente estavam sozinhos e com um semblante menos descontraído. E, tanto em uns como em outros, eu detetava uma reconfortante humanidade.
Faltava um dia para o meu regresso. Era, pois, a minha última noite naquela cidade fantasiosa. Jantei calmamente e, após o repasto, decidi ir até à Plaza Catalunya. Estava uma noite morna, soberba, e a Plaza encontrava-se apinhada de gente. Num dos lados, havia-se formado uma compacta roda humana que observava algo que se passava no centro. Aproximei-me e fitei os artistas. Eram dois faquires que exibiam a sua habilidade de cuspir fogo. Um era muito alto e magro, e o outro baixo e gorducho, de forma que o conjunto era grotesco. Agitavam no ar archotes acesos e, cada um por sua vez, inclinando a cabeça para trás, abriam a boca e simulavam introduzir lá dentro a chama do archote. Depois sopravam com força e da boca desprendia-se uma imensa labareda. Era um espetáculo hipnótico. As chamas rasgavam a penumbra do ambiente e provocavam exclamações de admiração entre os espectadores. Percorri o público com os olhos e este afigurou-se-me tão extravagante como os artistas. Havia pessoas de todas as raças, com penteados burlescos e vestes estranhas. Quando abriam a boca em interjeições de espanto, para rir ou para falar, deixavam sair uns sons incaracterísticos. E, perante a magia da exibição, ninguém arredava pé.
De súbito, reparei numa mancha branca que se mexia do lado oposto àquele onde eu me encontrava. Alguém se fartara do espetáculo e abandonava o círculo. Desviei o olhar e voltei a concentrar-me nos artistas. Porém, poucos momentos depois, senti uma espécie de baque interior. Havia qualquer coisa… Mas não. Seria uma extraordinária coincidência. E, no entanto… a figura fizera-me lembrar Sara!... Procurei a mancha branca que entrevira somente durante um segundo. Mas ela já não estava lá. Afastei-me da roda e olhei para a larga avenida. O seu aspeto, feito de cambiantes irregulares de luz e sombra, era fantasmagórico. Hordas de pessoas deslocavam-se nas mais diversas direções, dando uma perturbadora sensação de caos. Bem visível, no meio da multidão de transeuntes, a mancha branca, isto é, uma mulher com camisa e calças brancas, cabelos castanhos e silhueta esguia, seguia pelo Passeig acima. Os seus passos eram fluidos. Não parecia pisar o chão. Contudo, avançava rapidamente. Em poucos segundos percorrera um quarteirão e atravessava agora uma rua transversal.
Irresistivelmente atraído, segui-a. Ela continuou a subir o Passeig, sempre em frente, no seu andamento elástico. O cabelo, escuro e liso, caía-lhe nos ombros. Eu queria ver-lhe a cara. Para tanto teria de a ultrapassar. Estuguei o passo, pois parecia-me que ela ganhava terreno. Porém, uma pequena multidão de turistas do norte da Europa, muito altos e loiros, de aspeto irreal e fala ininteligível, que caminhava em sentido contrário, entrepôs-se entre nós e deixei de a ver. Abri caminho por entre o grupo, a todo o custo, distribuindo cotoveladas que não pareciam atingir ninguém, receoso de perder de vista a minha aparição. Porém, quando me vi novamente livre, a mancha branca havia desaparecido.  
Senti um arrepio de angústia. Tinha de a encontrar! Tinha de ter a certeza! Ela não era uma figurante, era a atriz principal. Eu sabia que ela estava do meu lado do universo, do lado de cá da existência. Acelerei e alcancei um cruzamento. Olhei para um lado e para o outro com atenção. A escuridão das ruas transversais era densa. À esquerda, a cerca de dois quarteirões vi a mancha branca. Parecia flutuar. Mas, logo a seguir, virou à direita e, apenas por um momento, antes de desaparecer novamente, entrevia-a de perfil. Era Sara.
Mergulhei no negrume da rua, andando o mais depressa possível, quase a correr. Quando alcancei o cruzamento onde ela tinha sumido, perscrutei a escuridão, de ambos os lados. Não se via ninguém. A multidão ruidosa e caótica ficara lá para trás, na avenida. Ao fundo, muito ao fundo, entrevi de novo uma mancha branca. Parecia que queria ser seguida, que me indicava um caminho… Ah! Desta vez, não a deixaria fugir. Alcançá-la-ia. Corri sem despegar os olhos do branco que se movia à minha frente, talvez a uns duzentos metros da minha pessoa. Mas, ai de mim, sem olhar para o chão acabei por tropeçar e cair. E, quando me levantei, o branco tinha desaparecido. E, desta vez, não tinha qualquer pista para me orientar.
No entanto, não estava resignado a abandonar as buscas. Por isso, em vez de regressar ao hotel, continuei a andar, percorrendo o Eixample num metódico ziguezague, na esperança de vislumbrar de novo a imagem branca e fugidia. De rua em rua, de esquina em esquina, ladeado por sombras e envolto numa névoa acariciadora, prosseguia sem descanso, passando a pente fino toda aquela imensa quadrícula. Enquanto isso, a noite ia-se tornando cada vez mais escura e tétrica. Não se via vivalma. Parecia-me terem decorrido horas desde que me cruzara com o último ser humano. Nos prédios, as janelas negras pareciam órbitas vazias de caveiras, e as árvores assemelhavam-se a braços descarnados de esqueletos gigantescos executando uma dança grotesca.
Parecia-me já ter andado quilómetros quando, de repente, percebi que estava muito cansado. A tal ponto que me sentia incapaz de prosseguir na busca. Aborrecido, meti por uma rua que, muitos quarteirões à frente, desembocava no Passeig. Então, abrandei o passo. As minhas pernas estavam esgotadas e desejei que me permitissem, pelo menos, alcançar uma praça de táxis.
Fui progredindo, a muito custo, no meio daquele cenário macabro, em direção às luzes da avenida que visualizava muito ao longe. O coração batia-me com força, as pernas pesavam chumbo. E receei não ser capaz de alcançar o hotel e ter de dormir na rua, acoitado no vão de escada de algum prédio. Porém, de súbito, senti atrás de mim uma espécie de sopro, de brisa fresca cortando a mornidão da noite. Voltei-me e vi Sara. A poucos metros de mim, assemelhava-se a uma aparição fantástica. A face refletia a fraca luminosidade circundante. A roupa branca tremeluzia. Aproximei-me, como que hipnotizado. Ela ergueu um dos braços, enquanto com o outro segurava uma bolsa, e estendeu-me a mão. Sorria. Incapaz de raciocinar, ergui também o braço e agarrei na sua mão.
Foi como se me ligassem a um acumulador. As minhas pernas pararam de doer e o cansaço abandonou-me instantaneamente. Olhei-a e, como num sonho, ouvi-a dizer:
- Vamos!...
Por incrível que pareça, não respondi. Ela começou a andar sem largar a minha mão e fui suavemente conduzido através de uma infinidade de artérias, ora profusamente iluminadas, ora escuras como breu. Nos passeios, voltei a cruzar-me com grupos de pessoas envergando vestes bizarras com ar festivo, como se tivessem acabado de sair de um estranho Carnaval. Eu sentia-me cheio de energia e acompanhava-a sem dificuldade. Sara olhava sempre em frente, como se fixasse um ponto longínquo que desejasse alcançar a qualquer preço. Assim, de perfil, uma aura de luz difusa irradiava do seu rosto. Não parecia real. Eu sentia-me inquieto, atento, na expectativa do que se iria passar. Tudo aquilo era extraordinário. Queria falar, dizer qualquer coisa. Mas algo na atitude da minha companheira bloqueava o meu raciocínio e me deixava mudo. Sabia-me protagonista de uma aventura singular e, antes de exigir as explicações a que me julgava com direito, queria perceber o que se estava a passar. Contudo, passado algum tempo, como quem quebra uma espécie de encantamento, decidi-me a romper o silêncio:
- Onde vamos?... Onde é que me leva?... – perguntei friamente, embora uma ligeira tremura na voz me denunciasse a agitação.
- Oh, já vai ver… Não se preocupe… - respondeu Sara, na sua voz musical, sem afrouxar o passo nem voltar a cabeça.
Continuámos. Mais uma vez tive a sensação de que Sara não pisava o chão. Só os meus passos eram audíveis. A certa altura, verifiquei que caminhávamos através de uma vasta zona residencial de sumptuosas vivendas, na parte mais alta da cidade. A vista era feérica. E; de súbito, perante aquela visão tão bela, onde se entrelaçavam as obras do Criador e do Homem, fui invadido por uma sensação de confiança e descontraí-me.
Perto de um muro alto e encimado por cedros, Sara abrandou o passo e largou finalmente a minha mão. Então, de algum modo que não compreendi, acionou o mecanismo de abertura de um largo portão frontal. Vi este girar lentamente e, assim que a abertura o permitiu, entrámos. Ultrapassado o portão, este fechou-se suavemente atrás de nós. Então, com uma expressão decidida, Sara olhou para mim. Na obscuridade, os seus olhos brilhavam:
- Espere aqui por mim… - disse ela.
Como um autómato, obedeci. Uma agradável brisa fresca acariciava-me o rosto. Olhei à minha volta e verifiquei que me encontrava no jardim de uma esplêndida moradia de linhas modernistas. As janelas estavam totalmente às escuras. Contudo, divisavam-se estátuas caprichosas revestidas a azulejos vidrados que salpicavam o terreno ornado de árvores frondosas e canteiros de flores. Do lado oposto à encosta da montanha, o panorama era deslumbrante. Barcelona e o Mediterrâneo estendiam-se a meus pés, em todo o seu fulgor noturno.
- Venha por aqui!...
Virei-me para o local donde proviera o chamamento e vi a figura branca de Sara acenando-me da porta principal da vivenda. Caminhei na sua direção, subi os degraus da entrada e parei hesitante. Então ela fez-me sinal que a seguisse e penetrou na casa silenciosa. Segui a sua figura elástica e percebi uma luz fraca a acender-se e a porta de entrada a fechar-se atrás de mim.
O interior da casa era extravagante, de linhas ondulantes e sinuosas, cheio de desníveis e patamares. Era, obviamente, a residência de alguém endinheirado. Contudo, ao mesmo tempo, tinha um ar antigo e abandonado, como se o dono houvesse empobrecido e tivesse posto de lado a sua manutenção.
Sara guiou-me até uma divisão que parecia uma caverna futurista, revestida de uma espécie de material almofadado de cor clara. Então, sem mais preâmbulos, os seus braços rodearam o meu pescoço e beijou-me ternamente nos lábios.
A doçura daquele contacto arrebatou-me. Uma avalanche de emoções tomou conta de mim. Ébrio de desejo, correspondi ao seu abraço retendo o seu corpo junto ao meu. E as minhas mãos tocaram-na com a maior brandura de que eram capazes.
- Amo-a!... - consegui articular, quando o seu abraço afrouxou.
- Eu sei… - respondeu em voz baixa, com um olhar cheio de promessas, colocando as mãos nos meus ombros e beijando-me ao de leve.
A seguir desviou-se um pouco e, com habilidade, desabotoou um dos botões da minha camisa.
Até aí passivo, fiquei subitamente tenso.
- Espere – disse, agarrando-lhe na mão que tentava desnudar-me o peito – antes de continuar, preciso de saber uma coisa… Aliás, várias coisas…
Sara afastou-se e retirou a mão. Durante uma décima de segundo, vi uma nuvem perpassar-lhe o olhar. Não uma nuvem qualquer mas uma névoa gelada, distante, oriunda das profundezas de um mundo desconhecido. A tal ponto que fui percorrido por um ligeiro estremecimento. Depois os nossos olhos encontraram-se e ela fixou-me com uma expressão enigmática.
- Oh, esqueça tudo, sim?... Não temos muito tempo… Já nada disso tem importância… Você vai ter tudo aquilo que merece… - e, aproximando-se, continuou a desabotoar-me a camisa.
Não resisti mais. No meu pensamento já não havia lugar para a amargura da traição nem para a estranheza (ou capricho?) da perseguição a que ela me submetera através do Eixample. As explicações ficariam para depois. Acima de tudo, eu queria-a. E ela entregava-se à minha paixão.
 Quando acordei, ainda era noite. Uma suave penumbra fosforescente embebia todo o quarto. Uma colcha leve e sedosa cobria o meu corpo completamente nu. Sentia-me apaziguado e feliz. Voltei-me e vi que estava só, naquele estranho leito feito de chão almofadado. Contudo, o aroma de Sara permanecia ainda ao meu lado, nos tecidos, na atmosfera, na minha própria pele. Não pude impedir-me de sentir uma certa deceção por ela já não estar ali. Todavia, o desapontamento esfumou-se de imediato quando recordei os momentos que vivera pouco antes, com ela nos braços.
Levantei-me e olhei com atenção ao redor. A minha roupa estava num canto, cuidadosamente dobrada e empilhada. Não gostei. Era um convite informal à despedida. Olhei para o relógio que conservara no pulso e li as horas nos ponteiros fluorescentes. Eram cinco da manhã. O sol não tardaria a nascer. Respirei fundo e numa voz neutra, a meia altura, chamei:
- Sara!... Sara!...
Um eco inesperado devolveu o meu chamamento:
- Sara… Sara…
Mais uma vez, não gostei. Invadido por uma súbita e desconfortável ansiedade, vesti-me à pressa e procurei uma casa de banho. Quando a encontrei, servi-me dela com pouco à vontade e olhei-me no espelho. O meu aspeto era péssimo. Estava com olheiras e tinha a barba por fazer. Passei a mão pelo rosto e pensei que tinha de regressar ao hotel quanto antes. Faltavam poucas horas para partir o meu avião para Lisboa. Contudo, não podia ir sem me despedir de Sara, escutar as suas explicações e (quem sabe?) combinar o nosso próximo encontro.
Demorei um tempo precioso a correr a casa toda, divisão a divisão. À medida que prosseguia nas buscas, a impressão de que se tratava de uma habitação abandonada havia muito, acentuava-se. O ar era pesado, bafiento. A marca da decrepitude estava patente em cada mobília esquisita ou artefacto rocambolesco. E rapidamente percebi que não encontraria ninguém. Estava totalmente sozinho naquele espaço bizarro. O meu cérebro, o meu coração, os meus ossos, todas as minhas células o sabiam. E; no entanto, não podia abandonar aquela casa sem ter a certeza absoluta.
Quando já não podia perder mais tempo, abri a carteira a fim de verificar o dinheiro que continha, e saí para a rua, tendo o cuidado de deixar portas e portões bem fechados. Agora, vistos do exterior, casa, muro, jardim, tudo tinha um ar arcaico e desamparado. Incomodado, voltei costas e olhei noutra direção. Era forçoso arranjar transporte até ao hotel. Eu tinha apenas uma vaga ideia de onde me encontrava, mas esse facto não era relevante. O sol nascia e, a meus pés, Barcelona estava imersa na neblina própria da madrugada. Soprava um vento frio, cortante. Estuguei o passo, seguindo a alameda no sentido descendente, rumo ao centro da cidade lá em baixo, a fim de me aquecer com a marcha rápida. Caminhava havia cerca de trinta minutos e era já dia claro quando, milagrosamente, passou por mim um táxi livre. Fiz-lhe sinal e, uma vez instalado lá dentro, indiquei a morada do hotel ao motorista.
Pelo caminho, tentei recordar-me do trajeto percorrido na noite anterior, pela mão de Sara, mas não consegui estabelecer nenhuma ligação entre as pacatas vias por onde agora transitava, e as desconformes artérias de poucas horas antes.
Quando finalmente entrei no hotel e cumprimentei o empregado da receção apercebi-me, de súbito, da enormidade de tudo o que me sucedera na noite que acabava de findar. Aquilo que na altura se me afigurara muito natural, aparecia-me agora como uma sucessão de atos imperdoáveis. E eu tomara parte ativa nos mesmos!...
Sim, fora para a cama com uma mulher que me enganara, que se aproveitara de mim e que, ainda por cima, me seduzira como a um adolescente!... Uma criatura sem escrúpulos que, uma vez satisfeito o capricho passageiro de fazer amor comigo, me abandonara de novo, sem uma palavra. Porém, o que mais me amargurava era a consciência de ela nem sequer ter tido necessidade de me mentir, pois eu nem chegara a questioná-la! Era demasiado ilógico. E, contudo, devia haver uma razão…
Indisposto comigo mesmo, entrei no meu quarto, barbeei-me, lavei-me e vesti-me. Mais confortado pela sensação de estar limpo, desci para tomar o pequeno-almoço. Conquanto perplexo, estava cheio de fome. E enquanto saboreava a primeira refeição do dia (ninguém consegue pensar muito bem de estômago vazio), percebi que o mais inteligente a fazer era, uma vez mais, esquecer tudo o que acontecera. Não há mal que o tempo não cure. Nem arte mais consoladora para as desilusões que a da escrita. Talvez em tudo aquilo, um dia, eu descortinasse material para uma boa história. Mais calmo, abanei a cabeça ante a recordação das visões fantasmagóricas da véspera que, sabia-o agora, haviam sido fruto da imaginação, do cansaço e da predisposição para o fantástico que aquela cidade me induzia. Desta vez, estava decidido. Não mais tornaria a Barcelona. Já lá tinha estado tempo demais.
Regressei a Lisboa num voo sem novidades. Porém, à medida que me aproximava do fim da viagem, os estranhos acontecimentos da véspera reavivavam-se no meu espírito. Contra a minha vontade, uma inefável languidez plena de romantismo invadia-me ao recordar as carícias e os beijos de Sara. Que misterioso desvario me fora dado viver!... Que paixão absurda me inspirava aquela mulher!... E como aceitar que não houvesse nada, absolutamente nada, por detrás de tudo aquilo!...
Uma vez em casa, decidi dedicar aquele dia ao descanso. Apercebia-me agora de que estava fatigado. Tinha duas ou três horas de sono. Além disso, fora uma noite fértil em emoções fortes. Assim, arrumei as minhas coisas, deitei-me em cima da cama e adormeci. Acordei duas horas depois e saí para comprar o jornal. Regressei a casa, sentei-me o mais comodamente possível e folheei o diário, principiando, como era meu hábito, pelo suplemento cultural.
Na primeira página, um artigo saltou-me aos olhos. O título em destaque era o do meu último livro. Como subtítulo, o meu nome, evidentemente. Concentrei-me na leitura e, enquanto tentava controlar o galope furioso das minhas sístoles, verifiquei que o artigo constava de uma análise inteligente e minuciosa do meu romance. No cômputo geral, a crítica era muito positiva. Na página seguinte, a versão integral da entrevista conduzida por Sara fazia a sua aparição, acompanhada de uma fotografia minha, captada no seu gabinete, no final da nossa conversa.
Durante uns minutos permaneci quieto, estático, sem pensar em nada, como se o meu cérebro precisasse de tempo para digerir aquela informação tão importante e inesperada. Era fantástico. Eu não poderia desejar mais. Então lembrei-me de Sara e apossou-se de mim uma enorme vontade de falar com ela. A despeito de tudo o resto, devia agradecer-lhe. Ao fim e ao cabo, no que dizia respeito à entrevista, ela cumprira a palavra.
Continuei absorto por mais alguns segundos. E só então atingi o verdadeiro alcance do que acabara de ler. Como fora estúpido! Aquela publicação mudava tudo!... O plágio? Talvez não passasse de um equívoco. Quanto à noite de amor, havia sido uma realidade palpável e maravilhosa. Eu não podia duvidar disso. E senti um frémito de desejo percorrer-me de alto a baixo. Tinha de voltar a possuí-la, a estreitá-la nos meus braços!... E ocorreu-me um pensamento inaudito que me fez sorrir. Talvez ela me amasse… Talvez… Talvez… Porém, para já, não adiantava procurá-la. Muito provavelmente, ainda estava em Barcelona.
Bem disposto com a vida, resolvi ir trabalhar da parte da tarde, contrariamente à decisão inicial. Uma onda de otimismo envolvia-me por completo. Apetecia-me ver gente, falar, pensar no futuro. Fui até ao meu escritório e, mal cheguei, fui efusivamente cumprimentado pelos colegas que lá se encontravam. O artigo e a entrevista eram já do conhecimento geral.
Cônscio de que tinha ainda pela frente um longo caminho a percorrer, procurei reagir com moderação. Contudo, os telefonemas de amigos e conhecidos multiplicavam-se. Era incrível o impacto que uma notícia como aquela podia ter. Toda a gente lera a entrevista. E toda a gente me desejava os maiores sucessos.
Foi um dia inesquecível. À noite adormeci serenamente e, quando acordei, depois de nove horas de um sono repousante, sentia-me calmo e retemperado. Ocorreu-me então que Sara talvez já tivesse regressado.
Dirigi-me para o escritório e, assim que cheguei, consultei a agenda. Nada de especial naquele dia. Poder-me-ia encontrar com ela, se ela quisesse. Confiante, telefonei para o seu número direto. Ninguém atendeu. Lembrei-me então de ligar para o número genérico do jornal. Talvez alguém me pudesse informar da data prevista para o seu regresso.
Assim fiz. Atendeu-me um telefonista com voz neutra. Identifiquei-me e perguntei pela jornalista Sara B. Do outro lado fez-se um silêncio sepulcral.
- Você não sabe?...
- Não sei o quê?...
Voltou a fazer-se silêncio.
- Que aconteceu?... Que se passa?... – perguntei, com um súbito pressentimento.
- A jornalista Sara B. faleceu…
- O quê?!...
- Foi encontrada morta, no seu apartamento em Cascais, ontem de manhã. A notícia só saiu hoje nos jornais.
Não quis ouvir mais nada. Desliguei o telefone e fui imediatamente comprar o jornal matutino. Assim que o segurei nas minhas mãos trémulas, percebi que não teria coragem de o abrir. Contudo, não seria preciso. A primeira página, no canto inferior esquerdo, apresentava a fatídica notícia: O título “Sara B., escritora e jornalista, encontrada morta” e, em subtítulo, os anos do nascimento e da morte.
Senti as pernas fraquejarem. Ao lado do quiosque havia um banco de rua e sentei-me. Fechei os olhos, voltei a abri-los e só depois tornei a olhar para o jornal. Respirei fundo e tive então a coragem necessária para ler a notícia completa.
Fora a mulher a dias de Sara que possuía uma chave do seu apartamento, que encontrara o corpo na véspera de manhã, e avisara a polícia. Esta comparecera no local mas não havia detetado quaisquer vestígios de roubo ou arrombamento. Aparentemente, Sara morrera durante o sono. O corpo havia seguido para o Instituto de Medicina Legal a fim de ser determinada a causa da morte. De qualquer maneira, tudo apontava para uma paragem cardíaca. A seguir, eram referidos os dados relevantes da vida profissional de Sara, as empresas por onde havia passado e os respetivos cargos, assim como uma nota elogiosa sobre a sua promissora carreira de romancista, iniciada havia poucas semanas, e que era assim tão brutalmente interrompida. A finalizar, um reparo corriqueiro sobre o número cada vez maior de pessoas jovens que são vítimas de doença súbita, apontando como causa provável o stress profissional.
Reli a notícia do princípio ao fim, após o que me levantei e deitei o jornal no lixo. Doía-me a cabeça. Havia ali qualquer coisa que não estava bem. Como diabo é que Sara conseguira chegar a tempo de ser encontrada morta, apenas três ou quatro horas depois de ter estado comigo?... A única possibilidade era ter vindo mais cedo. Mas como, se eu apanhara o primeiro avião do dia de Barcelona para Lisboa?...
Segundo o exame preliminar, Sara estaria morta havia seis a oito horas. O que significava que já não pertencia ao mundo dos vivos quando eu a entrevira e a perseguira através do Eixample. Recordei uma vez mais a minha última noite passada em Barcelona. E senti um arrepio. Com quem estivera eu? Se não era Sara… Mas era. Eu não podia duvidar disso. Então... então… E não me ocorria nenhuma explicação que o meu intelecto não rejeitasse.
O resto da minha história é tão fantástico como a minha inesquecível noite de amor. Morta a autora, ao contrário do que seria expectável, o romance que Sara escrevera depressa foi esquecido. Parecia que só eu era capaz de lhe reconhecer a qualidade. Quanto a mim, catapultado pela crítica, comecei a ser referenciado, citado, convidado. O meu romance seguinte foi um êxito. Ao mesmo tempo, todos os meus livros anteriores foram reeditados, agora por editoras de renome.Cada vez mais empolgado, continuei a escrever. De tal forma, que fiz disso o fim único da minha vida. Escrevia a qualquer hora, febrilmente, como se comandado por uma vontade superior à minha. As ideias germinavam na minha mente, mas as palavras, essas magníficas palavras, sempre apropriadas, sempre exatas, pareciam provir de outra fonte intelectual que não a minha. E, quando relia o que tinha escrito, encontrava uma tão extraordinária parceria de dom de palavra, fluidez e criatividade, que me custava a crer que tudo aquilo tivesse sido congeminado somente por mim.Um ano depois, após um segundo romance com êxito, deixei a venda de imóveis e passei a viver só da escrita. Hoje sou um homem realizado, que viu concretizado o seu sonho mais caro. Quantos podem afirmar o mesmo?... Porém, conservo ainda uma nostalgia muito especial por certa dama… E, às vezes, interrogo-me. Quem, na realidade, escreve os meus livros?... Há quem diga que quando morre uma pessoa, antes da alma abandonar definitivamente este mundo, lhe é dado algum tempo para ultimar assuntos que tenha deixado inacabados. Nada de matérias triviais, claro, mas questões verdadeiramente importantes, sem cuja resolução não lhe seria permitido repousar em paz no Outro Lado, tais como confissões, reparações, ajustes de contas… E a sua vontade de partir livre de escolhos pode ser tão grande que lhe permita materializar-se por algum tempo…Isso é um disparate, uma loucura, dir-me-ão. Contudo, que pode uma pessoa obstar àquilo que os seus sentidos lhe transmitiram?...Deixar de confiar neles?... Ou alargar perspetivas e aceitar o intangível?...A verdade é que ainda hoje não sei o que aconteceu. Às vezes penso que foi tudo um sonho. Mas, poderá uma assombração onírica simular tão bem a realidade? Ou, de facto, durante algumas horas, no meio da fantasiosa ambiência que se respirava em Barcelona, Sara e eu despedaçámos o Espaço e o Tempo?...São estas interrogações sem resposta que me modificaram profundamente. Hoje sei que tudo é possível. De pragmático, passei a visionário. De realista, fiz-me sonhador. E isso reflete-se nos meus livros. Nunca mais fui a Barcelona. Sempre que me apetece mudar de ambiente, recordo-me da Casa Batlló com as suas varandas de caveira e escolho outro destino. E, no entanto, sei que um dia terei de voltar, e ir à procura de uma casa modernista, escondida atrás de um muro alto encimado por cedros. E, não ficarei espantado se, após esquadrinhar toda a encosta da montanha e todos os arquivos existentes, chegar à conclusão de que a casa nunca existiu…

Adelina Velho da Palma

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