O SABOR
OCULTO DA PAIXÃO
Gosto de Barcelona. Desde sempre que sinto uma
espécie de fascínio, de magnetismo irresistível, que
me atrai para aquela estranha cidade. O próprio nome
possui uma sonoridade exótica, romântica, criadora
de expectativas… E, no entanto, depois do que por lá
me aconteceu, não sei se alguma vez tornarei a pisar
aquele chão profano e a respirar aquela atmosfera
extravagante.
Era uma atração difícil de explicar. Eu já lá tinha
estado muitas vezes. E, em todas elas, achava que
não haveria razões para voltar. Com efeito, as águas
do Mediterrâneo sempre me inspiraram desconfiança e,
em rigor, não apreciava a estética da Art Nouveau.
Todavia, o certo é que, com uma periodicidade
regular, era levado a fazer as malas e a ir
instalar-me durante uns dias num hotel das Ramblas.
E, cada vez que o fazia, não deixava de constatar a
trivialidade do que me rodeava. A paisagem humana
era similar à de tantas outras cidades. A
insegurança também. E as numerosas esplanadas
repletas de gente alegre e faladora, entregue à
bebida e às tapas ao fim da tarde, encontravam-se
presentes em muitos outros locais de Espanha.
No entanto, não obstante a minha natureza pouco
fantasiosa, captava algo de sinistro naqueles
prédios bizarros do Passeig de Gracia. À noite,
iluminados por focos bem posicionados, eram
inteiramente falsos, extraordinários, contra a
natureza. Trocistas e provocadores, lembravam-me
erupções vulcânicas ou gritos de revolta. E percebia
neles qualquer coisa de pervertido. Sempre que os
olhava atingiam-me como uma queimadura. Eram belos,
sem dúvida. Mas não de uma beleza que apaziguasse ou
que se pudesse tratar com intimidade. Porém, sentia
uma incontornável afinidade com eles, como uma
atração semelhante à que temos por algo que nos
aterroriza e que contudo desejamos desafiar, provar,
degustar até à exaustão. Parecia até que eram
senhores do meu destino – um destino
irremediavelmente traçado - do qual nada me fosse
permitido entrever.
Repito que não sou um ser crédulo ou facilmente
impressionável. Contudo, por uma razão que não sei
justificar, sempre que eu estava em Barcelona a
minha disposição era excêntrica. Um inefável manto
de fantasia envolvia todo o meu ser. E a minha
racionalidade abandonava-me, deixando-me predisposto
a aceitar aquilo que os meus sentidos captassem e me
dessem para digerir.
Tudo sucedeu há três anos. Apenas três anos. Mas,
sempre que olho para trás, verifico que uma névoa
seletiva e de densidade crescente começa a envolver
aquele setor específico da minha memória. Lembro-me
com nitidez de episódios, acasos e ocorrências muito
anteriores. Mas aqueles a que me refiro tornam-se
cada vez mais longínquos, fátuos, esbatidos por uma
bruma espessa. Ignoro durante quanto tempo mais
serei capaz de recordar aquela noite com exatidão.
E, não sei porquê, assalta-me o pavor de ela ficar
sepultada para sempre.
Por consequência, dia após dia, sinto crescer dentro
de mim um impulso que me obriga a patentear ao mundo
tudo o que ali sucedeu. Acreditar-me-ão?
Provavelmente não. Mas isso não é relevante. Não
posso fugir a uma revelação completa. E, já que o
Criador me concedeu o dom de escrever, vejo-me
impelido a traduzir em palavras os estranhos
acontecimentos em que me vi envolvido.
Sou hoje um escritor consagrado, amado pelo público
e respeitado pelos críticos. Em três anos escrevi
outros tantos best sellers que me tornaram rico e
famoso. Exatamente aquilo que eu desejava. Os meus
livros estão traduzidos em todas as línguas. Dou-me
ao luxo de escolher as editoras que me oferecem
melhores condições e de exigir elevadíssimos
direitos de autor. Além disso, as opiniões são
unânimes em afirmar que não se trata somente de
êxito comercial. Este, se baseado em fórmulas fáceis
de consumo rápido, depressa desaparece do
firmamento. Livros de um tal cariz, por muito que
vendam em determinada altura, estão condenados a
desaparecer e, vinte anos depois do êxito, ninguém
se lembrará deles. Os meus, pelo contrário, parecem
destinados à glória duradoira dos clássicos. Os
temas não são muito originais – a vida, a morte, a
vida depois da morte - enfim, nada mais que as
eternas incógnitas da condição humana, ao pé das
quais tudo o resto perde a importância. No entanto,
são revolucionários. Possuem a particularidade de
evidenciar ao leitor a trivialidade das tramas
comezinhas da espécie e transportá-lo para um
universo superior, onde tudo faz sentido, tudo é
aceitável, tudo é explicável. Nos meus livros, as
duas peças basilares do puzzle da existência, a
material e a sobrenatural, encaixam-se sem esforço.
E, segundo os peritos na matéria, a isso se deve o
seu êxito e a sua provável perdurabilidade.
Há três anos, eu era apenas um jovem escritor
lisboeta, obscuro e desiludido. Tinha várias obras
publicadas, mas nenhuma me granjeara a admiração do
público ou o elogio dos críticos. Os meus romances,
de caráter realista, todos edições de autor,
escritos à custa do meu talento e do meu esforço,
não vendiam. Ninguém ouvira falar de mim. Porém, eu
acreditava no meu valor e perseguia a quimera de
sair do anonimato literário e conseguir viver da
escrita. Enquanto isso, gozava a vida com desafogo e
sustentava o meu sonho, trabalhando arduamente num
setor profissional que, embora prosaico, era muito
lucrativo - a venda de imóveis.
Para dizer a verdade, além de ambicioso, era
vaidoso. Queria fama, reconhecimento, consagração.
Em vida. E sentia um frio no peito quando pensava
nos artistas que tinham arrostado com uma existência
anónima e só haviam sido admirados depois de mortos.
Ciente de que na vida é preciso fazer opções, não me
entusiasmava demasiado com as diversões e prazeres
que costumam preencher a vida de um macho jovem,
normal e saudável. As mulheres ocupavam um lugar
secundário na minha vida. A mesma coisa se pode
dizer de pândegas e futebol. Não quer isto dizer que
fosse puritano, ingénuo ou abstémio. Simplesmente,
não deixava que atividades acessórias roubassem
muito tempo à única que considerava verdadeiramente
importante. Não me queria prender. Sim, eu buscava
uns horizontes mais vastos. E só por exceção não
dedicava todo o tempo livre à minha arte. Ao mesmo
tempo, tinha os pés bem assentes no chão. Por isso,
enquanto perseverava na produção literária,
esforçava-me, como tantos outros, por conseguir uma
migalha de atenção de uma figura pública da
sociedade. Num mundo cada vez mais mediatizado, sem
ajuda, nada conseguiria.
Publicara eu, havia poucos meses, mais um livro, ao
qual me entregara de alma e coração e no qual
acreditava mostrar todas as minhas potencialidades
de escritor (e que constituíra mais uma desilusão)
quando me surgiu uma oportunidade. Tratava-se de uma
jornalista. Uma mulher conhecida de meio mundo,
chefe de redação de um jornal de grande tiragem e de
distribuição nacional. Aliás, com fama de dedicar a
vida à profissão e uma certa reputação de defensora
da cultura. Por interposta pessoa, condescendera em
ler o meu último livro e entrevistar-me a esse
respeito.
Quando essa notícia me chegara, eu ficara na
expectativa do que se seguiria. E, embora me
repugnasse recorrer a esse tipo de gente, com cuja
arrogância já me vira confrontado por diversas
vezes, eu abafava os meus escrúpulos com o
pensamento de que, se tudo corresse bem, seria um
considerável empurrão na minha carreira. Como disse
Maquiavel “os fins justificam os meios”. Porém,
tratei de minimizar as minhas esperanças. Já por
diversas vezes no passado me tinham sido feitas
promessas idênticas que não chegariam a
concretizar-se.
Não obstante a minha índole otimista (a que se
juntava uma boa parcela de confiança em mim
próprio), sentia eu, naquela altura, uma certa
frieza em relação aos outros seres humanos, que
oscilava entre o desapontamento e a revolta. De
natureza perseverante e determinada, começava
finalmente a esmorecer, traumatizado com o árduo
caminho já percorrido. Não conseguia perdoar a todos
quantos me haviam enganado com falsas promessas de
apoio. Muito menos àqueles que, tendo vislumbrado em
mim a centelha do talento, tudo faziam para me
abafar a voz e levar a desistir, a fim de não
ensombrar os astros já acomodados no estrelato. Por
isso, imaginava-me a pairar acima do meu semelhante,
que procurava olhar com um interesse puramente
profissional. A observação dos seus golpes, paixões
e baixezas servir-me-ia para criar enredos
magistrais, onde pusesse a nu a selvática natureza
humana. Natureza humana essa, na qual, diga-se de
passagem, me sabia incluído.
Todavia, enquanto me atolava no charco do desengano,
o milagre aconteceu. Incrédulo, fui convocado para a
entrevista. A jornalista recebeu-me no seu gabinete
na redação do jornal. Quando entrei, a minha
predisposição oscilava entre o desejo de agradar e a
desconfiança. Queria convencer, impressionar,
brilhar! Mas só se a interlocutora valesse a pena.
Assim que a vi, fiquei agradavelmente surpreendido.
Supunha eu que, como é frequente nas figuras
conhecidas, a pessoa real ficasse muito aquém da
imagem pública. Fotografias e poses televisivas são
captadas de modo a favorecer as pessoas. O que, no
caso presente, era falso. Apesar de pouco propenso a
deixar-me maravilhar, tive de reconhecer que o
encanto de Sara B (prefiro não referir aqui o seu
nome verdadeiro) era autêntico. Embora mais velha
que eu, poder-se-ia considerar jovem ainda. Uma
mulher madura, na força da vida. E bonita. Muito
bonita.
Recebeu-me com à vontade. Começámos a falar e
verifiquei que Sara não se exprimia no tom afetado
nem com a exuberância exagerada tão habitual nos
media. De início, confesso que estava um pouco
tenso. Porém, depressa me descontraí, suavemente
embalado por um agradável e fluente diálogo acerca
de minha pessoa (quem é que não gosta de falar de si
próprio?!). E, enquanto respondia à minha
interlocutora, tentava dominar o turbilhão de
sensações que me submergia. Sentia-me seduzido. E
não só pela sua beleza. Claro que ela tinha uns
belos olhos, um cabelo lindíssimo e uma pele
magnífica. E um corpo… No entanto, havia algo mais
na sua fisionomia inteligente, na sua voz musical e
nos seus modos serenos que exercia uma poderosa
impressão na minha pessoa. De algum modo, tive a
certeza de que aquela mulher e eu estávamos
indissoluvelmente ligados. Como se o meu íntimo o
soubesse de antemão e me tivesse proporcionado a
clarividência, servindo-me essa revelação de chofre,
em todo o seu esplendor. Quanto a Sara, julgava
notar-lhe um certo fulgor no olhar, sempre que me
fitava diretamente. Seria pretensioso presumir que
sentira o mesmo que eu?...
Evidentemente, nada disto era especial. Tratava-se
simplesmente daquilo que se costuma designar por uma
forte “química”, embora os mais sonhadores lhe
chamem “amor à primeira vista”. Já por diversas
vezes eu descrevera este fenómeno nos meus romances,
sem nunca o haver experimentado. E, no fundo, sem
acreditar que tal pudesse acontecer…
Sara começou por me dizer que o meu livro, que eu
entretanto lhe fizera chegar às mãos, tinha sido
muito apreciado. E os seus elogios fizeram-me sentir
particularmente orgulhoso. Também ela, segundo
afirmou, gostaria de escrever. Mas as boas ideias
escasseavam… Num tom casual, sem qualquer
formalismo, foi-me dirigindo um vasto rol de
perguntas, decerto pré definidas, mas que mais
pareciam decorrentes da conversação. E, caso
curioso, eram exatamente as que eu desejaria, pois
sabia que me fariam mostrar o meu potencial e a
minha originalidade.
Raciocinei com inteligência. Dissertei com
elegância. Expus com rigor as minhas conceções sobre
a escrita. Era uma oportunidade magnífica e havia
que aproveitá-la. Quando, por fim, Sara deu a
entrevista por terminada, fiquei admirado ao
verificar que haviam decorrido mais de duas horas.
Despedimo-nos e eu saí para a rua. Estava impante,
de bem com o mundo e com a humanidade. Dera uma
excelente entrevista. Assim que esta fosse
publicada, acabaria o meu anonimato. Quanto a Sara…
Enfim, não vou dizer que estivesse apaixonado.
Ninguém se enamora ao fim de duas horas. E, no
entanto, que outro nome poderia dar aquilo que
sentia?... Desejava-a, claro... Mas não estava certo
de que o meu sentimento se resumisse a desejo…
Com efeito, ela não mais abandonaria o meu
pensamento. Todos os dias, eu comprava o jornal onde
a entrevista sairia, na esperança de a ver
publicada. E devo confessar que não sei o que mais
ambicionava: Se ver o meu nome nos jornais (o que me
faria pela primeira vez alcançar uns laivos de
notoriedade), se arranjar um pretexto para rever a
minha entrevistadora. Sim, logo que as minhas
expectativas fossem satisfeitas, procurá-la-ia para
lhe agradecer. E, quem sabe, talvez no decorrer da
conversa surgisse o ensejo para mais qualquer coisa.
Um café, um drink, um jantar...
A princípio não estranhei que nada aparecesse no
periódico. Havia decerto compromissos anteriores a
honrar. Continuei a comprar o jornal todos os dias e
a percorrer as suas páginas com os meus olhos
ávidos. Porém, ao fim de um mês, comecei a estranhar
o mutismo daquelas letras impressas. Passar-se-ia
alguma coisa? Teria a minha entrevista sido
posteriormente relegada por alguma razão? Mistério.
Pensei então em telefonar para o número que Sara me
havia dado. Assim fiz. Mas aquele encontrava-se
permanentemente inacessível. E nem a pessoa que me
conseguira o encontro lograva falar com ela.
Passavam as semanas e a minha ansiedade ia
crescendo. Todavia, Sara impressionara-me tão
favoravelmente que nem me passava pela cabeça que me
tivesse enganado. Ela assegurara-me que a entrevista
seria publicada. E eu confiava que só um entrave
muito forte a impedia de, até à data, não ter ainda
cumprido a promessa feita.
Que cândido fui! Creio que teria continuado a
aguardar indefinidamente a publicação da fatídica
entrevista, se não se tem dado o caso de ser lançado
um livro – um romance - da autoria de Sara. Claro
que o respetivo lançamento se cercou de uma tremenda
publicidade. Ela era uma pessoa conhecida e, desde
que o livro tivesse um mínimo de qualidade, o
sucesso estava garantido.
Ao saber da notícia, senti um misto de surpresa e
mal-estar. Por um lado, o simples facto de Sara ter
escrito um romance tornava a nossa empatia ainda
maior. Porém, algo me dizia que havia demasiada
coincidência em tudo aquilo. Era, no mínimo,
curioso, que estando ela a escrever um romance
quando me entrevistara, não o houvesse mencionado.
Mas tentei sacudir a perplexidade que me invadia.
Talvez ela só o tivesse iniciado depois da nossa
conversa, e o tivesse redigido em tempo record.
Afinal, é sabido que todos os jornalistas anseiam
tornar-se escritores. Ela própria o afirmara. Mais
tarde ou mais cedo, acabam por ter consciência do
caráter prosaico e transitório da sua profissão e
desejam dar o salto para terreno mais criativo e
duradoiro. Porém, poucos o conseguem. Teria ela
logrado ultrapassar a linha divisória que separa
aqueles dois universos? Só havia uma maneira de o
saber.
Comprei o livro. Assim que o segurei entre as mãos
fiquei estranhamente angustiado. Folheei-o e os
carateres impressos nas páginas (aliás num belíssimo
e cuidado tipo de letra) pareciam fitar-me, como se
estivessem pestes a despegar-se do papel e a saltar
para o meu colo. Poder-se-ia quase supor que me
quereriam dizer alguma coisa!...
Perturbado, dirigi-me para casa. Uma vez aí,
atirei-me para cima da cama e abri o livro na
primeira página. As letras perfilavam-se
perfeitamente estáticas, ordeiras. Descontente,
abanei a cabeça. Quão bizarras ilusões a agitação
consegue criar!...
Comecei a ler. O livro estava muito bem escrito. Em
boa verdade, era excecional. Sem sombra de dúvida,
ali estava uma obra produzida por uma autêntica
mestra da palavra. Porém, apesar do enredo
engenhoso, tudo o que eu apreendia parecia-me
familiar. Como se, aparte a trama propriamente dita,
não houvesse ali uma única ideia original. Continuei
a leitura e, à medida que avançava, esta impressão
acentuava-se. Até que, de repente, percebi porquê.
O livro era um plágio. Embora se baseasse numa
história criada para o efeito, não havia ali uma
única ilação nova, fresca. Todos os conceitos
expostos tinham por substrato as ideias que eu
andava a desenvolver com vista ao meu próximo livro.
Sim, o livro plagiado era o meu! Um livro que ainda
não escrevera, a não ser na minha mente. Sara
agarrara nas minhas reflexões a esse respeito,
embrulhara-as com palavras bonitas e frases bem
construídas, e disseminara-as numa nova história. E,
ainda por cima, (como me custava reconhecê-lo!)
fizera um ótimo trabalho.
De tão indignado, senti-me prestes a explodir!...
Sara aproveitara-se de mim, um jovem escritor
desconhecido. Condescendera em me entrevistar com o
único propósito de tomar conhecimento dos meus
projetos. Uma vez satisfeita, rasgara a entrevista e
atirara-se à escrita usando os meus conceitos,
juízos e noções. Todavia, eu nunca poderia provar a
artimanha. O livro dela estava ali e o meu ainda só
existia na minha cabeça.
É impossível exprimir a raiva que tomou conta de
mim. Odiava-a. E odiava-a tanto quanto acreditava
tê-la amado (enfim… pelo menos ocupado o meu
pensamento com ela) durante semanas. Tudo me doía
por dentro. Era inconcebível que alguém fosse tão
frio e calculista. Sentia-me uma mosca apanhada na
teia de uma aranha dissimulada e sanguinária. Por
outro lado, arrependia-me amargamente do meu desejo
de notoriedade. Não fora por ele, nunca me teria
encarniçado na procura de entrevistas ou notícias
nos jornais. Senti-me ridículo. E, pela primeira vez
na vida, desejei verdadeiramente distanciar-me do
meu semelhante, viver num plano superior da
existência, imune a paixões e dependências. Olharia
para os outros seres humanos como o médico olha para
o doente - sem emoções. E imaginei-me a protagonizar
uma inflexão de cento e oitenta graus na minha meta
de vida. Escreveria por puro amor à arte. Não mais
depositaria esperanças em ninguém e alimentar-me-ia
da certeza de me encontrar na senda da perfeição.
Poria de lado a vaidade. Seria modesto. E, acima de
qualquer outra coisa, esqueceria o papel de tolo que
desempenhara em toda esta história.
Claro que estas intenções, tão contrárias à minha
maneira de ser, não chegariam a ganhar raízes dentro
de mim. No entanto, foi nesta disposição de espírito
que fui acometido por um dos meus periódicos desejos
de evasão. Nada como umas férias para esquecer as
tribulações. Só de pensar nisso, conseguia esboçar
um sorriso e sentia o meu otimismo regressar. E foi
assim que, logo que a vida profissional mo permitiu,
como se não houvesse outro sítio no mundo para onde
ir gastar tempo e dinheiro, me meti no avião e fui
passar uns dias a Barcelona.
Era verão e a cidade abarrotava de turistas. Em
grupos, aos casais e até sozinhos, estavam por todo
o lado. Enxameavam as igrejas e os museus, enchiam
as lojas de recuerdos, ocupavam o metro e o Renfe,
monopolizavam os self-services e os restaurantes de
fast food. Eslavos altos, louros e bronzeados pelo
sol, americanos idosos de calções e mochila às
costas, japoneses palradores de câmara em punho… A
cidade era palco para todas as nacionalidades.
O hotel onde me encontrava estava cheio. Os
rececionistas não tinham mãos a medir, dado o imenso
fluxo de entrada e de saída de hóspedes. Ouviam-se
constantemente as palavras check in e check out.
Tanto de manhã como à noite, havia sempre grupos de
pessoas no átrio do hotel, aguardando táxis ou
autocarros de excursão, assim como bagagem
precariamente arrumada num ou noutro canto, à espera
de despacho para outro destino.
Eu tudo fazia para gozar a estadia da maneira que
nos é permitido usufruir de alguma coisa somente
quando já a conhecemos razoavelmente bem. Não pode
haver sensação mais deliciosa que a de nos
encontrarmos sós numa grande cidade estrangeira que
nos é familiar, sem programas pré estabelecidos nem
horários a cumprir. Durante o dia escolhia os
trajetos a percorrer e os pontos de interesse a
visitar ao sabor do improviso, com o à vontade do
conhecedor. E degustava um luxo raro - a explícita
perca de tempo que deriva do facto de admirarmos uma
coisa que já vimos muitas vezes, tentando
descobrir-lhe novos contornos, perspetivas e motivos
de interesse.
À noite o meu programa não variava muito. Geralmente
jantava num restaurante do Port Vell ou da
Barceloneta, admirava as luzes do Mediterrâneo, após
o que ia até ao Bairro Gótico à procura de um bar
aprazível. Outras vezes passava pela Plaza Catalunya,
e ficava a observar os artistas de rua que se
exibiam por lá.
Claro que, apesar de todas as mentalizações em
contrário, a imagem de Sara voltava ao meu
pensamento com frequência. Dentro de mim, as emoções
sobrepunham-se ao raciocínio, e a minha condição
psicológica não era das mais estáveis. Talvez por
isso, a aura de misticismo que me dominava sempre
que me encontrava em Barcelona, estava
particularmente exacerbada. Sobretudo à noite, fora
da influência apaziguadora da luz solar, enquanto
percorria o Passeig de Grácia, no meio de uma
verdadeira turba de mirones, sentia as fantásticas
casas de Gaudi fitando-me como a um intruso. E
percebia que, apesar da multidão de desconhecidos
que deambulavam pelas ruas, me encontrava ali
estranhamente sozinho. As pessoas que se cruzavam
comigo assemelhavam-se a figurantes. Eram baças, sem
substância, como se se movimentassem num universo
paralelo, visível mas intocável. Os veículos eram de
brincar, as árvores artificiais e as construções
cenários. O próprio ar que respirava era uma miragem
sensorial, incapaz de oxigenar o meu sangue.
Barcelona era uma cidade fantasma. Ali, no meio de
tudo e todos, só eu estava vivo.
No entanto, apesar da reincidência destas sensações,
eu não resistia a um longo passeio noturno.
Calcorreava meia cidade, cruzando-me com hordas de
criaturas sem espessura, com a perceção de que o
espaço e o tempo, tal como eu os conhecia, haviam
sido despedaçados e já não significavam coisa
alguma.
Quando regressava ao hotel, a estranheza
desaparecia. Como se o ato de transpor a porta de
entrada fosse equivalente a penetrar numa câmara de
teletransporte, que instantaneamente me fizesse
regressar do hiperespaço onde vagueara.
Antes de subir para o meu quarto, passava pela sala
de estar. Esta era grande. Como é frequente em
Espanha, em particular nos hotéis de três estrelas,
tinha uma dimensão e um luxo muito superiores ao dos
quartos. Quedava-me então ali sentado, durante uma
ou duas horas, com um livro nas mãos. De vez em
quando levantava os olhos e, enquanto interiorizava
o que acabara de ler, observava a paisagem humana
circundante. Apesar da lotação esgotada do hotel, o
salão não era muito frequentado. Apenas meia dúzia
de pessoas no bar e outro tanto nas poltronas.
Destes, quase todos liam jornais cuja língua deixava
adivinhar a nacionalidade respetiva. Nem todos eram
turistas. Alguns deviam ser homens de negócios ou
quadros de empresas deslocados a fim de comparecer
nalgum congresso ou reunião importante. Não era
difícil identificá-los pois geralmente estavam
sozinhos e com um semblante menos descontraído. E,
tanto em uns como em outros, eu detetava uma
reconfortante humanidade.
Faltava um dia para o meu regresso. Era, pois, a
minha última noite naquela cidade fantasiosa. Jantei
calmamente e, após o repasto, decidi ir até à Plaza
Catalunya. Estava uma noite morna, soberba, e a
Plaza encontrava-se apinhada de gente. Num dos
lados, havia-se formado uma compacta roda humana que
observava algo que se passava no centro.
Aproximei-me e fitei os artistas. Eram dois faquires
que exibiam a sua habilidade de cuspir fogo. Um era
muito alto e magro, e o outro baixo e gorducho, de
forma que o conjunto era grotesco. Agitavam no ar
archotes acesos e, cada um por sua vez, inclinando a
cabeça para trás, abriam a boca e simulavam
introduzir lá dentro a chama do archote. Depois
sopravam com força e da boca desprendia-se uma
imensa labareda. Era um espetáculo hipnótico. As
chamas rasgavam a penumbra do ambiente e provocavam
exclamações de admiração entre os espectadores.
Percorri o público com os olhos e este
afigurou-se-me tão extravagante como os artistas.
Havia pessoas de todas as raças, com penteados
burlescos e vestes estranhas. Quando abriam a boca
em interjeições de espanto, para rir ou para falar,
deixavam sair uns sons incaracterísticos. E, perante
a magia da exibição, ninguém arredava pé.
De súbito, reparei numa mancha branca que se mexia
do lado oposto àquele onde eu me encontrava. Alguém
se fartara do espetáculo e abandonava o círculo.
Desviei o olhar e voltei a concentrar-me nos
artistas. Porém, poucos momentos depois, senti uma
espécie de baque interior. Havia qualquer coisa… Mas
não. Seria uma extraordinária coincidência. E, no
entanto… a figura fizera-me lembrar Sara!...
Procurei a mancha branca que entrevira somente
durante um segundo. Mas ela já não estava lá.
Afastei-me da roda e olhei para a larga avenida. O
seu aspeto, feito de cambiantes irregulares de luz e
sombra, era fantasmagórico. Hordas de pessoas
deslocavam-se nas mais diversas direções, dando uma
perturbadora sensação de caos. Bem visível, no meio
da multidão de transeuntes, a mancha branca, isto é,
uma mulher com camisa e calças brancas, cabelos
castanhos e silhueta esguia, seguia pelo Passeig
acima. Os seus passos eram fluidos. Não parecia
pisar o chão. Contudo, avançava rapidamente. Em
poucos segundos percorrera um quarteirão e
atravessava agora uma rua transversal.
Irresistivelmente atraído, segui-a. Ela continuou a
subir o Passeig, sempre em frente, no seu andamento
elástico. O cabelo, escuro e liso, caía-lhe nos
ombros. Eu queria ver-lhe a cara. Para tanto teria
de a ultrapassar. Estuguei o passo, pois parecia-me
que ela ganhava terreno. Porém, uma pequena multidão
de turistas do norte da Europa, muito altos e
loiros, de aspeto irreal e fala ininteligível, que
caminhava em sentido contrário, entrepôs-se entre
nós e deixei de a ver. Abri caminho por entre o
grupo, a todo o custo, distribuindo cotoveladas que
não pareciam atingir ninguém, receoso de perder de
vista a minha aparição. Porém, quando me vi
novamente livre, a mancha branca havia desaparecido.
Senti um arrepio de angústia. Tinha de a encontrar!
Tinha de ter a certeza! Ela não era uma figurante,
era a atriz principal. Eu sabia que ela estava do
meu lado do universo, do lado de cá da existência.
Acelerei e alcancei um cruzamento. Olhei para um
lado e para o outro com atenção. A escuridão das
ruas transversais era densa. À esquerda, a cerca de
dois quarteirões vi a mancha branca. Parecia
flutuar. Mas, logo a seguir, virou à direita e,
apenas por um momento, antes de desaparecer
novamente, entrevia-a de perfil. Era Sara.
Mergulhei no negrume da rua, andando o mais depressa
possível, quase a correr. Quando alcancei o
cruzamento onde ela tinha sumido, perscrutei a
escuridão, de ambos os lados. Não se via ninguém. A
multidão ruidosa e caótica ficara lá para trás, na
avenida. Ao fundo, muito ao fundo, entrevi de novo
uma mancha branca. Parecia que queria ser seguida,
que me indicava um caminho… Ah! Desta vez, não a
deixaria fugir. Alcançá-la-ia. Corri sem despegar os
olhos do branco que se movia à minha frente, talvez
a uns duzentos metros da minha pessoa. Mas, ai de
mim, sem olhar para o chão acabei por tropeçar e
cair. E, quando me levantei, o branco tinha
desaparecido. E, desta vez, não tinha qualquer pista
para me orientar.
No entanto, não estava resignado a abandonar as
buscas. Por isso, em vez de regressar ao hotel,
continuei a andar, percorrendo o Eixample num
metódico ziguezague, na esperança de vislumbrar de
novo a imagem branca e fugidia. De rua em rua, de
esquina em esquina, ladeado por sombras e envolto
numa névoa acariciadora, prosseguia sem descanso,
passando a pente fino toda aquela imensa quadrícula.
Enquanto isso, a noite ia-se tornando cada vez mais
escura e tétrica. Não se via vivalma. Parecia-me
terem decorrido horas desde que me cruzara com o
último ser humano. Nos prédios, as janelas negras
pareciam órbitas vazias de caveiras, e as árvores
assemelhavam-se a braços descarnados de esqueletos
gigantescos executando uma dança grotesca.
Parecia-me já ter andado quilómetros quando, de
repente, percebi que estava muito cansado. A tal
ponto que me sentia incapaz de prosseguir na busca.
Aborrecido, meti por uma rua que, muitos quarteirões
à frente, desembocava no Passeig. Então, abrandei o
passo. As minhas pernas estavam esgotadas e desejei
que me permitissem, pelo menos, alcançar uma praça
de táxis.
Fui progredindo, a muito custo, no meio daquele
cenário macabro, em direção às luzes da avenida que
visualizava muito ao longe. O coração batia-me com
força, as pernas pesavam chumbo. E receei não ser
capaz de alcançar o hotel e ter de dormir na rua,
acoitado no vão de escada de algum prédio. Porém, de
súbito, senti atrás de mim uma espécie de sopro, de
brisa fresca cortando a mornidão da noite. Voltei-me
e vi Sara. A poucos metros de mim, assemelhava-se a
uma aparição fantástica. A face refletia a fraca
luminosidade circundante. A roupa branca tremeluzia.
Aproximei-me, como que hipnotizado. Ela ergueu um
dos braços, enquanto com o outro segurava uma bolsa,
e estendeu-me a mão. Sorria. Incapaz de raciocinar,
ergui também o braço e agarrei na sua mão.
Foi como se me ligassem a um acumulador. As minhas
pernas pararam de doer e o cansaço abandonou-me
instantaneamente. Olhei-a e, como num sonho, ouvi-a
dizer:
- Vamos!...
Por incrível que pareça, não respondi. Ela começou a
andar sem largar a minha mão e fui suavemente
conduzido através de uma infinidade de artérias, ora
profusamente iluminadas, ora escuras como breu. Nos
passeios, voltei a cruzar-me com grupos de pessoas
envergando vestes bizarras com ar festivo, como se
tivessem acabado de sair de um estranho Carnaval. Eu
sentia-me cheio de energia e acompanhava-a sem
dificuldade. Sara olhava sempre em frente, como se
fixasse um ponto longínquo que desejasse alcançar a
qualquer preço. Assim, de perfil, uma aura de luz
difusa irradiava do seu rosto. Não parecia real. Eu
sentia-me inquieto, atento, na expectativa do que se
iria passar. Tudo aquilo era extraordinário. Queria
falar, dizer qualquer coisa. Mas algo na atitude da
minha companheira bloqueava o meu raciocínio e me
deixava mudo. Sabia-me protagonista de uma aventura
singular e, antes de exigir as explicações a que me
julgava com direito, queria perceber o que se estava
a passar. Contudo, passado algum tempo, como quem
quebra uma espécie de encantamento, decidi-me a
romper o silêncio:
- Onde vamos?... Onde é que me leva?... – perguntei
friamente, embora uma ligeira tremura na voz me
denunciasse a agitação.
- Oh, já vai ver… Não se preocupe… - respondeu Sara,
na sua voz musical, sem afrouxar o passo nem voltar
a cabeça.
Continuámos. Mais uma vez tive a sensação de que
Sara não pisava o chão. Só os meus passos eram
audíveis. A certa altura, verifiquei que
caminhávamos através de uma vasta zona residencial
de sumptuosas vivendas, na parte mais alta da
cidade. A vista era feérica. E; de súbito, perante
aquela visão tão bela, onde se entrelaçavam as obras
do Criador e do Homem, fui invadido por uma sensação
de confiança e descontraí-me.
Perto de um muro alto e encimado por cedros, Sara
abrandou o passo e largou finalmente a minha mão.
Então, de algum modo que não compreendi, acionou o
mecanismo de abertura de um largo portão frontal. Vi
este girar lentamente e, assim que a abertura o
permitiu, entrámos. Ultrapassado o portão, este
fechou-se suavemente atrás de nós. Então, com uma
expressão decidida, Sara olhou para mim. Na
obscuridade, os seus olhos brilhavam:
- Espere aqui por mim… - disse ela.
Como um autómato, obedeci. Uma agradável brisa
fresca acariciava-me o rosto. Olhei à minha volta e
verifiquei que me encontrava no jardim de uma
esplêndida moradia de linhas modernistas. As janelas
estavam totalmente às escuras. Contudo, divisavam-se
estátuas caprichosas revestidas a azulejos vidrados
que salpicavam o terreno ornado de árvores frondosas
e canteiros de flores. Do lado oposto à encosta da
montanha, o panorama era deslumbrante. Barcelona e o
Mediterrâneo estendiam-se a meus pés, em todo o seu
fulgor noturno.
- Venha por aqui!...
Virei-me para o local donde proviera o chamamento e
vi a figura branca de Sara acenando-me da porta
principal da vivenda. Caminhei na sua direção, subi
os degraus da entrada e parei hesitante. Então ela
fez-me sinal que a seguisse e penetrou na casa
silenciosa. Segui a sua figura elástica e percebi
uma luz fraca a acender-se e a porta de entrada a
fechar-se atrás de mim.
O interior da casa era extravagante, de linhas
ondulantes e sinuosas, cheio de desníveis e
patamares. Era, obviamente, a residência de alguém
endinheirado. Contudo, ao mesmo tempo, tinha um ar
antigo e abandonado, como se o dono houvesse
empobrecido e tivesse posto de lado a sua
manutenção.
Sara guiou-me até uma divisão que parecia uma
caverna futurista, revestida de uma espécie de
material almofadado de cor clara. Então, sem mais
preâmbulos, os seus braços rodearam o meu pescoço e
beijou-me ternamente nos lábios.
A doçura daquele contacto arrebatou-me. Uma
avalanche de emoções tomou conta de mim. Ébrio de
desejo, correspondi ao seu abraço retendo o seu
corpo junto ao meu. E as minhas mãos tocaram-na com
a maior brandura de que eram capazes.
- Amo-a!... - consegui articular, quando o seu
abraço afrouxou.
- Eu sei… - respondeu em voz baixa, com um olhar
cheio de promessas, colocando as mãos nos meus
ombros e beijando-me ao de leve.
A seguir desviou-se um pouco e, com habilidade,
desabotoou um dos botões da minha camisa.
Até aí passivo, fiquei subitamente tenso.
- Espere – disse, agarrando-lhe na mão que tentava
desnudar-me o peito – antes de continuar, preciso de
saber uma coisa… Aliás, várias coisas…
Sara afastou-se e retirou a mão. Durante uma décima
de segundo, vi uma nuvem perpassar-lhe o olhar. Não
uma nuvem qualquer mas uma névoa gelada, distante,
oriunda das profundezas de um mundo desconhecido. A
tal ponto que fui percorrido por um ligeiro
estremecimento. Depois os nossos olhos
encontraram-se e ela fixou-me com uma expressão
enigmática.
- Oh, esqueça tudo, sim?... Não temos muito tempo…
Já nada disso tem importância… Você vai ter tudo
aquilo que merece… - e, aproximando-se, continuou a
desabotoar-me a camisa.
Não resisti mais. No meu pensamento já não havia
lugar para a amargura da traição nem para a
estranheza (ou capricho?) da perseguição a que ela
me submetera através do Eixample. As explicações
ficariam para depois. Acima de tudo, eu queria-a. E
ela entregava-se à minha paixão.
Quando acordei, ainda era noite. Uma suave penumbra
fosforescente embebia todo o quarto. Uma colcha leve
e sedosa cobria o meu corpo completamente nu.
Sentia-me apaziguado e feliz. Voltei-me e vi que
estava só, naquele estranho leito feito de chão
almofadado. Contudo, o aroma de Sara permanecia
ainda ao meu lado, nos tecidos, na atmosfera, na
minha própria pele. Não pude impedir-me de sentir
uma certa deceção por ela já não estar ali. Todavia,
o desapontamento esfumou-se de imediato quando
recordei os momentos que vivera pouco antes, com ela
nos braços.
Levantei-me e olhei com atenção ao redor. A minha
roupa estava num canto, cuidadosamente dobrada e
empilhada. Não gostei. Era um convite informal à
despedida. Olhei para o relógio que conservara no
pulso e li as horas nos ponteiros fluorescentes.
Eram cinco da manhã. O sol não tardaria a nascer.
Respirei fundo e numa voz neutra, a meia altura,
chamei:
- Sara!... Sara!...
Um eco inesperado devolveu o meu chamamento:
- Sara… Sara…
Mais uma vez, não gostei. Invadido por uma súbita e
desconfortável ansiedade, vesti-me à pressa e
procurei uma casa de banho. Quando a encontrei,
servi-me dela com pouco à vontade e olhei-me no
espelho. O meu aspeto era péssimo. Estava com
olheiras e tinha a barba por fazer. Passei a mão
pelo rosto e pensei que tinha de regressar ao hotel
quanto antes. Faltavam poucas horas para partir o
meu avião para Lisboa. Contudo, não podia ir sem me
despedir de Sara, escutar as suas explicações e
(quem sabe?) combinar o nosso próximo encontro.
Demorei um tempo precioso a correr a casa toda,
divisão a divisão. À medida que prosseguia nas
buscas, a impressão de que se tratava de uma
habitação abandonada havia muito, acentuava-se. O ar
era pesado, bafiento. A marca da decrepitude estava
patente em cada mobília esquisita ou artefacto
rocambolesco. E rapidamente percebi que não
encontraria ninguém. Estava totalmente sozinho
naquele espaço bizarro. O meu cérebro, o meu
coração, os meus ossos, todas as minhas células o
sabiam. E; no entanto, não podia abandonar aquela
casa sem ter a certeza absoluta.
Quando já não podia perder mais tempo, abri a
carteira a fim de verificar o dinheiro que continha,
e saí para a rua, tendo o cuidado de deixar portas e
portões bem fechados. Agora, vistos do exterior,
casa, muro, jardim, tudo tinha um ar arcaico e
desamparado. Incomodado, voltei costas e olhei
noutra direção. Era forçoso arranjar transporte até
ao hotel. Eu tinha apenas uma vaga ideia de onde me
encontrava, mas esse facto não era relevante. O sol
nascia e, a meus pés, Barcelona estava imersa na
neblina própria da madrugada. Soprava um vento frio,
cortante. Estuguei o passo, seguindo a alameda no
sentido descendente, rumo ao centro da cidade lá em
baixo, a fim de me aquecer com a marcha rápida.
Caminhava havia cerca de trinta minutos e era já dia
claro quando, milagrosamente, passou por mim um táxi
livre. Fiz-lhe sinal e, uma vez instalado lá dentro,
indiquei a morada do hotel ao motorista.
Pelo caminho, tentei recordar-me do trajeto
percorrido na noite anterior, pela mão de Sara, mas
não consegui estabelecer nenhuma ligação entre as
pacatas vias por onde agora transitava, e as
desconformes artérias de poucas horas antes.
Quando finalmente entrei no hotel e cumprimentei o
empregado da receção apercebi-me, de súbito, da
enormidade de tudo o que me sucedera na noite que
acabava de findar. Aquilo que na altura se me
afigurara muito natural, aparecia-me agora como uma
sucessão de atos imperdoáveis. E eu tomara parte
ativa nos mesmos!...
Sim, fora para a cama com uma mulher que me
enganara, que se aproveitara de mim e que, ainda por
cima, me seduzira como a um adolescente!... Uma
criatura sem escrúpulos que, uma vez satisfeito o
capricho passageiro de fazer amor comigo, me
abandonara de novo, sem uma palavra. Porém, o que
mais me amargurava era a consciência de ela nem
sequer ter tido necessidade de me mentir, pois eu
nem chegara a questioná-la! Era demasiado ilógico.
E, contudo, devia haver uma razão…
Indisposto comigo mesmo, entrei no meu quarto,
barbeei-me, lavei-me e vesti-me. Mais confortado
pela sensação de estar limpo, desci para tomar o
pequeno-almoço. Conquanto perplexo, estava cheio de
fome. E enquanto saboreava a primeira refeição do
dia (ninguém consegue pensar muito bem de estômago
vazio), percebi que o mais inteligente a fazer era,
uma vez mais, esquecer tudo o que acontecera. Não há
mal que o tempo não cure. Nem arte mais consoladora
para as desilusões que a da escrita. Talvez em tudo
aquilo, um dia, eu descortinasse material para uma
boa história. Mais calmo, abanei a cabeça ante a
recordação das visões fantasmagóricas da véspera
que, sabia-o agora, haviam sido fruto da imaginação,
do cansaço e da predisposição para o fantástico que
aquela cidade me induzia. Desta vez, estava
decidido. Não mais tornaria a Barcelona. Já lá tinha
estado tempo demais.
Regressei a Lisboa num voo sem novidades. Porém, à
medida que me aproximava do fim da viagem, os
estranhos acontecimentos da véspera reavivavam-se no
meu espírito. Contra a minha vontade, uma inefável
languidez plena de romantismo invadia-me ao recordar
as carícias e os beijos de Sara. Que misterioso
desvario me fora dado viver!... Que paixão absurda
me inspirava aquela mulher!... E como aceitar que
não houvesse nada, absolutamente nada, por detrás de
tudo aquilo!...
Uma vez em casa, decidi dedicar aquele dia ao
descanso. Apercebia-me agora de que estava fatigado.
Tinha duas ou três horas de sono. Além disso, fora
uma noite fértil em emoções fortes. Assim, arrumei
as minhas coisas, deitei-me em cima da cama e
adormeci. Acordei duas horas depois e saí para
comprar o jornal. Regressei a casa, sentei-me o mais
comodamente possível e folheei o diário,
principiando, como era meu hábito, pelo suplemento
cultural.
Na primeira página, um artigo saltou-me aos olhos. O
título em destaque era o do meu último livro. Como
subtítulo, o meu nome, evidentemente. Concentrei-me
na leitura e, enquanto tentava controlar o galope
furioso das minhas sístoles, verifiquei que o artigo
constava de uma análise inteligente e minuciosa do
meu romance. No cômputo geral, a crítica era muito
positiva. Na página seguinte, a versão integral da
entrevista conduzida por Sara fazia a sua aparição,
acompanhada de uma fotografia minha, captada no seu
gabinete, no final da nossa conversa.
Durante uns minutos permaneci quieto, estático, sem
pensar em nada, como se o meu cérebro precisasse de
tempo para digerir aquela informação tão importante
e inesperada. Era fantástico. Eu não poderia desejar
mais. Então lembrei-me de Sara e apossou-se de mim
uma enorme vontade de falar com ela. A despeito de
tudo o resto, devia agradecer-lhe. Ao fim e ao cabo,
no que dizia respeito à entrevista, ela cumprira a
palavra.
Continuei absorto por mais alguns segundos. E só
então atingi o verdadeiro alcance do que acabara de
ler. Como fora estúpido! Aquela publicação mudava
tudo!... O plágio? Talvez não passasse de um
equívoco. Quanto à noite de amor, havia sido uma
realidade palpável e maravilhosa. Eu não podia
duvidar disso. E senti um frémito de desejo
percorrer-me de alto a baixo. Tinha de voltar a
possuí-la, a estreitá-la nos meus braços!... E
ocorreu-me um pensamento inaudito que me fez sorrir.
Talvez ela me amasse… Talvez… Talvez… Porém, para
já, não adiantava procurá-la. Muito provavelmente,
ainda estava em Barcelona.
Bem disposto com a vida, resolvi ir trabalhar da
parte da tarde, contrariamente à decisão inicial.
Uma onda de otimismo envolvia-me por completo.
Apetecia-me ver gente, falar, pensar no futuro. Fui
até ao meu escritório e, mal cheguei, fui
efusivamente cumprimentado pelos colegas que lá se
encontravam. O artigo e a entrevista eram já do
conhecimento geral.
Cônscio de que tinha ainda pela frente um longo
caminho a percorrer, procurei reagir com moderação.
Contudo, os telefonemas de amigos e conhecidos
multiplicavam-se. Era incrível o impacto que uma
notícia como aquela podia ter. Toda a gente lera a
entrevista. E toda a gente me desejava os maiores
sucessos.
Foi um dia inesquecível. À noite adormeci
serenamente e, quando acordei, depois de nove horas
de um sono repousante, sentia-me calmo e
retemperado. Ocorreu-me então que Sara talvez já
tivesse regressado.
Dirigi-me para o escritório e, assim que cheguei,
consultei a agenda. Nada de especial naquele dia.
Poder-me-ia encontrar com ela, se ela quisesse.
Confiante, telefonei para o seu número direto.
Ninguém atendeu. Lembrei-me então de ligar para o
número genérico do jornal. Talvez alguém me pudesse
informar da data prevista para o seu regresso.
Assim fiz. Atendeu-me um telefonista com voz neutra.
Identifiquei-me e perguntei pela jornalista Sara B.
Do outro lado fez-se um silêncio sepulcral.
- Você não sabe?...
- Não sei o quê?...
Voltou a fazer-se silêncio.
- Que aconteceu?... Que se passa?... – perguntei,
com um súbito pressentimento.
- A jornalista Sara B. faleceu…
- O quê?!...
- Foi encontrada morta, no seu apartamento em
Cascais, ontem de manhã. A notícia só saiu hoje nos
jornais.
Não quis ouvir mais nada. Desliguei o telefone e fui
imediatamente comprar o jornal matutino. Assim que o
segurei nas minhas mãos trémulas, percebi que não
teria coragem de o abrir. Contudo, não seria
preciso. A primeira página, no canto inferior
esquerdo, apresentava a fatídica notícia: O título
“Sara B., escritora e jornalista, encontrada morta”
e, em subtítulo, os anos do nascimento e da morte.
Senti as pernas fraquejarem. Ao lado do quiosque
havia um banco de rua e sentei-me. Fechei os olhos,
voltei a abri-los e só depois tornei a olhar para o
jornal. Respirei fundo e tive então a coragem
necessária para ler a notícia completa.
Fora a mulher a dias de Sara que possuía uma chave
do seu apartamento, que encontrara o corpo na
véspera de manhã, e avisara a polícia. Esta
comparecera no local mas não havia detetado
quaisquer vestígios de roubo ou arrombamento.
Aparentemente, Sara morrera durante o sono. O corpo
havia seguido para o Instituto de Medicina Legal a
fim de ser determinada a causa da morte. De qualquer
maneira, tudo apontava para uma paragem cardíaca. A
seguir, eram referidos os dados relevantes da vida
profissional de Sara, as empresas por onde havia
passado e os respetivos cargos, assim como uma nota
elogiosa sobre a sua promissora carreira de
romancista, iniciada havia poucas semanas, e que era
assim tão brutalmente interrompida. A finalizar, um
reparo corriqueiro sobre o número cada vez maior de
pessoas jovens que são vítimas de doença súbita,
apontando como causa provável o stress profissional.
Reli a notícia do princípio ao fim, após o que me
levantei e deitei o jornal no lixo. Doía-me a
cabeça. Havia ali qualquer coisa que não estava bem.
Como diabo é que Sara conseguira chegar a tempo de
ser encontrada morta, apenas três ou quatro horas
depois de ter estado comigo?... A única
possibilidade era ter vindo mais cedo. Mas como, se
eu apanhara o primeiro avião do dia de Barcelona
para Lisboa?...
Segundo o exame preliminar, Sara estaria morta havia
seis a oito horas. O que significava que já não
pertencia ao mundo dos vivos quando eu a entrevira e
a perseguira através do Eixample. Recordei uma vez
mais a minha última noite passada em Barcelona. E
senti um arrepio. Com quem estivera eu? Se não era
Sara… Mas era. Eu não podia duvidar disso. Então...
então… E não me ocorria nenhuma explicação que o meu
intelecto não rejeitasse.
O resto da minha história é tão fantástico como a
minha inesquecível noite de amor. Morta a autora, ao
contrário do que seria expectável, o romance que
Sara escrevera depressa foi esquecido. Parecia que
só eu era capaz de lhe reconhecer a qualidade.
Quanto a mim, catapultado pela crítica, comecei a
ser referenciado, citado, convidado. O meu romance
seguinte foi um êxito. Ao mesmo tempo, todos os meus
livros anteriores foram reeditados, agora por
editoras de renome.Cada vez mais empolgado,
continuei a escrever. De tal forma, que fiz disso o
fim único da minha vida. Escrevia a qualquer hora,
febrilmente, como se comandado por uma vontade
superior à minha. As ideias germinavam na minha
mente, mas as palavras, essas magníficas palavras,
sempre apropriadas, sempre exatas, pareciam provir
de outra fonte intelectual que não a minha. E,
quando relia o que tinha escrito, encontrava uma tão
extraordinária parceria de dom de palavra, fluidez e
criatividade, que me custava a crer que tudo aquilo
tivesse sido congeminado somente por mim.Um ano
depois, após um segundo romance com êxito, deixei a
venda de imóveis e passei a viver só da escrita.
Hoje sou um homem realizado, que viu concretizado o
seu sonho mais caro. Quantos podem afirmar o
mesmo?... Porém, conservo ainda uma nostalgia muito
especial por certa dama… E, às vezes, interrogo-me.
Quem, na realidade, escreve os meus livros?... Há
quem diga que quando morre uma pessoa, antes da alma
abandonar definitivamente este mundo, lhe é dado
algum tempo para ultimar assuntos que tenha deixado
inacabados. Nada de matérias triviais, claro, mas
questões verdadeiramente importantes, sem cuja
resolução não lhe seria permitido repousar em paz no
Outro Lado, tais como confissões, reparações,
ajustes de contas… E a sua vontade de partir livre
de escolhos pode ser tão grande que lhe permita
materializar-se por algum tempo…Isso é um disparate,
uma loucura, dir-me-ão. Contudo, que pode uma pessoa
obstar àquilo que os seus sentidos lhe
transmitiram?...Deixar de confiar neles?... Ou
alargar perspetivas e aceitar o intangível?...A
verdade é que ainda hoje não sei o que aconteceu. Às
vezes penso que foi tudo um sonho. Mas, poderá uma
assombração onírica simular tão bem a realidade? Ou,
de facto, durante algumas horas, no meio da
fantasiosa ambiência que se respirava em Barcelona,
Sara e eu despedaçámos o Espaço e o Tempo?...São
estas interrogações sem resposta que me modificaram
profundamente. Hoje sei que tudo é possível. De
pragmático, passei a visionário. De realista, fiz-me
sonhador. E isso reflete-se nos meus livros. Nunca
mais fui a Barcelona. Sempre que me apetece mudar de
ambiente, recordo-me da Casa Batlló com as suas
varandas de caveira e escolho outro destino. E, no
entanto, sei que um dia terei de voltar, e ir à
procura de uma casa modernista, escondida atrás de
um muro alto encimado por cedros. E, não ficarei
espantado se, após esquadrinhar toda a encosta da
montanha e todos os arquivos existentes, chegar à
conclusão de que a casa nunca existiu…
Adelina Velho da Palma
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